É uma realidade crescente e que tem provocado um debate polarizado sobre os impactos sociais e psicológicos deste fenómeno. Através de relatos de quem foi vítima, é possível perceber as consequências emocionais de ser alvo do julgamento alheio na internet
Corpo do artigo
Lydia Tár era uma das mais admiradas compositoras e maestrinas alemãs vivas até que circunstâncias a tornaram o alvo de críticas ferozes em praça pública. O que era bestial rapidamente passou a besta. A história chegou às salas de cinema em 2022, com Cate Blanchet como protagonista e mereceu várias nomeações para os Óscares. Sem retirar mérito ao filme, à época, as distinções pareciam também ser Hollywood a alertar para um dos fenómenos do estranho mundo da era digital: a cultura do cancelamento. A prática tem vindo a crescer com o objetivo de boicotar uma empresa ou alguém que demonstrou uma posição questionável ou ofensiva. No entanto, torna-se polémica quando o boicote ultrapassa os limites da crítica e transforma-se em assédio, ameaças ou danos irreparáveis na reputação dos “cancelados”. De influencers a políticos, de celebridades a anónimos, ninguém está imune. Aconteceu com Ellen DeGenerous, Blake Lively, Ariana Grande, Justin Bieber, mas a lista poderia ser interminável, e algumas figuras públicas nacionais não escaparam à tendência. Perante o fenómeno, impõem-se perguntar se estamos a assistir a uma forma de censura moderna. Este tem sido um debate aceso nas redes sociais, em que se confrontam duas posições bastante distintas: de um lado os que não veem qualquer necessidade na existência desta cultura, do outro os que a defendem como uma ferramenta legítima de responsabilização social. Carlos Barrigas Rodrigues, psicólogo clínico e neuropsicólogo, alerta para os impactos mentais e emocionais deste fenómeno: “As redes sociais criaram um mundo onde as pessoas podem exacerbar os seus pontos mais narcísicos, porque se a resposta não for de acordo com as expectativas colocadas, sempre se pode eliminar a pessoa, evitando assim confrontar-se." Carolina Callapez, influencer portuguesa de 21 anos, conta com mais de 65 mil seguidores na plataforma digital TikTok. O conteúdo que partilha nas redes sociais é essencialmente humorístico e baseado na ironia, o que, muitas vezes, é mal interpretado. A jovem partilhou uma visão muito pessoal e honesta sobre os efeitos da cultura do cancelamento, sobretudo no contexto do TikTok, plataforma onde concentra maior parte do seu trabalho e divulga conteúdo diariamente. “O digital tem um poder de descontextualização gigante”, alerta. A influencer percebeu na pele que a fama tanto pode elevar como destruir. “Não devemos criticar nada. Simplesmente apoiar e criar um ambiente saudável sem competitividade desnecessária. Quando destilamos ódio uns pelos outros, estamos a fazer com que alguém seja alvo de cancelamento, e ninguém merece passar por isso.”
Impactos de uma tecla
Carolina admite já ter sido cancelada, situação que lhe provocou exaustão emocional: “Os vídeos que fazia no TikTok recebiam muitos comentários de ódio. Numa fase inicial, respondia a todos e tentava justificar-me.” O impacto psicológico do cancelamento também é evidente quando descreve o sentimento de vergonha e tristeza: “Recebia muitos comentários a dizer que eu provocava ‘vergonha alheia’. Senti-me muito triste. Senti-me, de certa forma, censurada, como se estivesse num buraco.” Mais difícil ainda são os ataques pessoais à aparência: “Quando falam da minha aparência física, esses comentários são os piores e mais difíceis de enfrentar.” Quando utilizado por pessoas com fracos recursos psicológicos, este universo virtual não é, no entender de Carlos Barrigas Rodrigues, propício ao desenvolvimento emocional saudável: “Atualmente, grande parte dos usuários da internet são indivíduos com poucos recursos psicológicos, muitos com dificuldades de resistência à frustração e com baixa tolerância ao desconforto emocional. A constante exposição a estímulos digitais rápidos, recompensas imediatas e comparações sociais exacerbadas nas redes sociais acaba por fragilizar ainda mais essas pessoas, criando um círculo vicioso de dependência emocional e validação externa. Em vez de fortalecer a resiliência, a internet, mal utilizada, reforça comportamentos evitativos e impede o enfrentamento saudável de desafios da vida real.” O terapeuta destaca também aquela que é a palavra-chave para entendermos a principal razão pela qual algumas pessoas tendem a experienciar emoções negativas quando são alvo de cancelamento: “Só uma pessoa com uma autoestima baixa é que se vai deixar afetar porque a cancelaram. Essa pessoa não tem recursos psicológicos.” A partir daqui, como explica, dá-se uma reação em cadeia: “O que acontece é que o indivíduo entra em stress, o stress leva ao isolamento. Por outro lado, o isolamento tende a exacerbar comportamentos que podem adquirir um caráter aditivo, como é o caso dos jogos online. Embora haja interação com outras pessoas nesses ambientes virtuais, essa forma de contato raramente se traduz em relacionamentos significativos ou profundos, reforçando, paradoxalmente, a sensação de solidão.” Considerando as repercussões que este fenómeno exerce em quem é afetado, o terapeuta considera que “é uma situação semelhante ao bullying” e alerta para uma característica que tem observado com frequência na sua vida profissional. “Faço avaliação psicológica antes de iniciar o acompanhamento e o que noto, hoje em dia, são aspetos de psicopatologia que não existiam ou que não aparecia há uns anos.” A psicopatia é um conceito a que o neuropsicólogo recorre para ilustrar uma crescente insensibilidade emocional entre os jovens e adultos que utilizam as redes sociais. Sabem da existência do outro, mas não lhe reconhecem o seu sentir. Por norma, identifica-se ausência de empatia e, por vezes, vontade quase impessoal de punir o outro. “Todos nós, ao longo do desenvolvimento emocional, deveríamos passar por várias estruturas de personalidades. Estas estruturas tornam-se mais complexas à medida que maturamos, emocionalmente falando. Se o indivíduo se fixar na estrutura psicopática, que é aquela fase ali, pelos 6 a 8 anos, em que a criança reconhece que existe o outro, mas não reconhece o sentir do outro, porque não teve um cuidador(a) que lhe impusesse limites, vai funcionar numa psicopatia imatura já adulto, levando os seus desejos e vontades avante, sem ter em conta as repercussões nos outros”, explica, ao mesmo tempo que designa este tipo de pessoas como “psicopatas imaturos”. Mais do que a ausência de empatia, o especialista destaca um traço caracterizador particularmente relevante, dado o contexto em que este fenómeno se manifesta: “O que caracteriza a psicopatia é um sentido de justiça extrema aplicada ao outro, isto é, as regras são para os outros cumprirem, podendo ele prevaricar. O discurso da vitimização está sempre presente.”
Alvos do cancelamento
Existem vários exemplos de influencers que foram “cancelados” pelas suas ações. É o caso de Logan Paul, que admitiu, em várias entrevistas e nas redes sociais, sentir-se sobrecarregado e devastado pela pressão social e excessivas ameaças e críticas. Em dezembro de 2017, o influencer digital esteve no centro de uma das maiores controvérsias da história do YouTube, ao publicar um vídeo gravado na Floresta Aokigahara, no Japão: local conhecido por estar associado ao suicídio. No vídeo, Logan e os seus amigos encontraram o corpo de uma pessoa que se havia suicidado e reagiam com expressões de choque misturadas com piadas consideradas o extremo da insensibilidade. A reação foi imediata e devastadora. O vídeo suscitou uma onda de críticas a nível mundial. Envolveu celebridades, organizações de prevenção do suicídio, outros criadores de conteúdo e milhares de audiências. O comportamento do youtuber foi amplamente considerado insensível, desrespeitoso e irresponsável, por tratar uma tragédia humana com tamanha leviandade. As consequências não tardaram: o vídeo foi removido algumas horas depois da publicação, mas os danos à imagem de Logan Paul foram devastadores. O influencer perdeu parcerias com marcas importantes, incluindo o próprio YouTube e a Google, e foi excluído do programa YouTube Red, que oferecia oportunidades para criadores de conteúdo. Logan emitiu vários pedidos de desculpa públicos, alegando que não teve intenção de ofender ninguém, mas muitos consideraram que demorou demasiado a reconhecer a gravidade da situação. A comunidade digital dividiu-se: alguns seguidores defendiam que Logan tentava apenas ser “autêntico”, mas a maioria acusou-o de explorar uma tragédia real para obter visualizações, “cancelando-o”. Face à repercussão, Logan afastou-se temporariamente da sua carreira no YouTube e iniciou um processo de reabilitação da sua imagem, investindo em novos projetos como o boxe e o podcast “Impaulsive”. O caso de Logan Paul na Floresta Aokigahara tornou-se um exemplo emblemático dos perigos e irresponsabilidades associados à influência digital, evidenciando também os limites que a cultura do cancelamento pode impor dentro desse contexto.
O peso das expectativas do “júri”
Carolina Callapez admite que a pressão para agradar o público e evitar ser cancelada tornou-se contínua na produção de conteúdo, como se fosse prisioneira da opinião alheia: “Às vezes, tinha de fazer um certo tipo de conteúdo para as pessoas continuarem a gostar de mim. E agora também tenho de produzir um determinado conteúdo para não ser tão cancelada, é uma mistura dos dois.” Este equilíbrio frágil entre a autenticidade e a aceitação mostra como os criadores de conteúdo são frequentemente moldados pelas expectativas e exigências do público-alvo. O caso mais atual e polémico de como os consumidores exigem cada vez mais posicionalmente ético, até de organizações, talvez seja o boicote à empresa multinacional norte-americana, com a maior cadeia de cafeterias do mundo: a Starbucks. Após o início de novos conflitos na Faixa de Gaza, alguns trabalhadores da Starbucks nos Estados Unidos, organizados no movimento sindical Starbucks Workers United, publicaram mensagens nas redes sociais de apoio ao povo palestiniano. No seguimento das publicações, a Starbucks Corporation assumiu publicamente que as declarações não correspondiam ao posicionamento oficial da marca. Esta reação imediata por parte da empresa-mãe gerou uma forte reação do público, nomeadamente de pessoas relacionadas com organizações pró-Palestina, alegando que estavam a reprimir a liberdade de expressão dos trabalhadores. Como resposta, iniciou-se, por todo o mundo, uma cadeia de boicotes à empresa: desde lojas vandalizadas e protestos à entrada dos seus estabelecimentos com cartazes e bandeiras da Palestina até milhares de pessoas que deixaram de consumir qualquer produto proveniente da marca e, ao mesmo tempo, a incentivarem os outros a fazer o mesmo, através das redes sociais. Desde o início dos anos 2000 que a Starbucks tem enfrentado acusações acerca do seu alegado apoio financeiro a Israel. No entanto, com o regresso da guerra entre o Hamas e Israel em 2023, estas alegações voltaram à superfície, mas desta vez com maiores repercussões. Uma das principais fontes dessas acusações foi uma carta que, supostamente, foi escrita pelo ex-CEO da Starbucks, Howard Schultz, na qual admitia dar esse apoio financeiro ao exército israelita. Essa carta foi, na verdade, criada por um australiano, Andrew Winkler, que acabou por assumir a falsificação da mesma. A origem judaica de Schultz e o facto de ter recebido prémios por promover relações entre os EUA e Israel foi apenas mais um empurrão para o público acreditar nesta premissa. Premissa essa que foi desmentida pela empresa, no seu site oficial: “A Starbucks nunca financiou operações militares com nenhum governo, em qualquer lugar do mundo.” Esta situação demonstra a maneira como a cultura do cancelamento atua em simples ações ou falácias disseminadas nas redes sociais que, neste caso, arrastaram uma marca para consequências que muitos consideraram extremistas.
Do ódio online à paz offline
O psicólogo Carlos Barrigas Rodrigues sublinha a assertividade como um escudo protetor contra as críticas externas, mas também reforça que não devemos confundir assertividade com agressividade. “Ao cultivar esta habilidade, é possível manter o equilíbrio emocional, reagir com confiança e clareza, sem ser influenciado pela opinião de terceiros, e sem se preocupar em agradar a tod@s”. O especialista completa com a ideia de que “há pessoas que, perante situações stressantes, têm recursos psicológicos para fazer frente: são assertivas”. No entanto, o ideal nem sempre reflete a realidade, assim como a prática de cultivar a assertividade pode ser mais desafiadora do que parece. Pela experiência clínica, o terapeuta reconhece que os jovens que acompanha enfrentam dificuldades em desenvolver essa competência: “Nos dias de hoje, é raro o jovem adulto que não apresente o índice psicopatológico de Deficit de Cooping (assertividade) positivo. As pessoas têm muita dificuldade em dizer Não, com medo deixar de ser apreciado(a) pelo outro.” Ao apostar na ironia como estratégia de comunicação, Carolina Callapez encontrou a sua forma de lidar com a situação e aprendeu a ignorar os comentários de ódio. “Foi a melhor coisa que eu fiz”, admite. O próprio público mudou com o tempo: “Tinha muitos seguidores que chegavam ao extremo de fazer ameaças de morte e agora mandam-me comentários como se fossem os meus maiores fãs.” Carlos Barrigas Rodrigues destaca a importância de lidar adequadamente com as reações emocionais geradas por esses acontecimentos: “Para pessoas que lidam com este tipo de situações, recomendo mostrar que não se sentem afetados, porque a forma como as pessoas que são canceladas reagem, muitas vezes, alimenta esse comportamento.”Um simples apoio pode ser determinante na maneira como cada pessoa lida com qualquer situação ao longo da vida. “Em determinados momentos, precisamos de recorrer a um psicólogo. Por vezes, chegará só mostrar como utilizar os recursos psicológicos que possuímos, mas que não são adequadamente usados. Podemos ser muito assertivos com uma simples expressão e, consequentemente, não alimentar as ações do outro”, remata.
Francisca Conde frequenta o 1ºano da licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), em Lisboa. Observadora atenta das várias transformações que a sociedade e as suas próprias experiências proporcionaram, Francisca Conde mostra-se convicta de que o jornalismo terá força suficiente para combater o ambiente de desinformação que se alastrou através das redes sociais.
Margarida Parreira é aluna do 1ºano da licenciatura em Jornalismo, da Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), opção académica que acredita ser a ideal para nunca deixar de aprender, de crescer e de se manter fiel ao que acredita. Ambiciona ter a oportunidade de contar histórias, como um gesto de partilha que a aproxima do mundo.

