Entre o nascimento de uma árvore à barrica onde estagia o vinho podem decorrer 200 anos.
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Da árvore à barrica onde estagia um vinho é um percurso tão aliciante quanto trabalhoso e marcado por etapas que duram cerca de 200 anos.
Este é o tempo que medeia entre o nascimento de um carvalho e a transformação da madeira em barrica, um processo que tem como base a defesa da própria floresta.
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Em França, o Estado possui cerca de 11 milhões de hectares de floresta. Bertranges, como uma área de 7 600 hectares é uma delas, sob a tutela da ONF - Office National des Fôrets, na região de Nevers, 200 km a sul de Paris. Ali, os carvalhos, hirtos, esguios e perfilados em linhas paralelas a perder vista, têm, em média, 160 a 180 anos.
A manhã está fria e chuvosa, e a humidade de região é um antídoto para os fogos. Outro é a vigilância constante, exercida por quem trabalha nas matas. "Uma floresta abandonada é porta aberta para o fogo. É preciso ter gente na floresta", alerta Cyril, técnico da ONF.
A título de exemplo, em França, onde o Estado protege a floresta, há 6.000 guardas florestais, uma categoria há anos extinta em Portugal.
A manutenção da floresta conhece diversas fases; são abatidas parcelas de árvores e poupadas apenas as que asseguram a reflorestação. É necessário garantir a penetração da luz solar para que os carvalhos mais pequenos vinguem.
O crescimento é lento, sinónimo de boa madeira. Cada um deles, com 40 cm de diâmetro médio, pode dar, até ao primeiro nó do tronco, em regra, a 1,30 metros do solo, 4 a 5 m3 de madeira, o que equivale a 10 ou 12 barricas.
Em termos de valor, o preço de cada metro cúbico ronda os 150 euros, ou seja, cada árvore vale, pelo menos, uns 2.000 euros. Mas, nem todos os carvalhos servem para tanoaria.
Um português radicado em França há mais de 30 anos faz a seleção e cubicagem. Apenas 30% de cada árvore é aproveitado, explica António Abade.
Em 2.000 árvores a taxa de aproveitamento é de apenas 40 e o abate de um carvalho não selecionado é punido com multa de 900 euros para evitar abusos e assegurar a sustentabilidade da floresta.
Uma vez cortado, o tronco de carvalho percorre poucos quilómetros até às tanoarias Berthomieu e Ermitage.
São duas modernas unidades do Grupo Charlois, um dos três mais fortes deste universo e que possui sete tanoarias e oito marcas de barricas.
Nuno Cadete, responsável pelo desenvolvimento de novos projetos do grupo francês, explica como se processa um trabalho meticuloso dividido em duas grandes fases, a exploração florestal e a tanoaria.
Há barricas de vários tipos para diferentes produtos. Algumas são produzidas em La Grange, uma tanoaria que funciona como uma relojoaria. Os processos são manuais e fazer uma barrica demora uma hora. Metade deste tempo é gasto para dobrá-la no fogo.
A outra velocidade corre o processo em Berthomieu. No interior da tanoaria, o ritmo de trabalho é maquinal entre as 7 e as 15 horas. As aduelas - 27 a 32 para uma barrica de 225 litros - são testadas; calibradas; levam aperto final antes da colocação dos aros.
As barricas passam ainda pelo teste de estanquicidade, com água a 60 graus a meio bar de pressão; são tostadas e é colocado o tampo antes de ser polido. Este é um ciclo repetido 28 a 30 mil vezes por ano, ou seja, o total de barricas ali produzidas.
Prontas a receber os sauvignon blanc e os pinot noir de produtores da região de Sancerre e de Chavignol - Henri Bourgeois; Michel Girard e Vincent Pinard - que por ali provámos, ou os vinhos com assinatura de Anselmo Mendes, que descobriu os produtos do Grupo francês, e de Diogo Lopes.
Para este enólogo da Adega Mãe, escolher a madeira de determinada floresta pode fazer a diferença. "Podemos selecionar a floresta para o tipo de vinho que queremos fazer", diz. Um caminho traçado rumo à obtenção de vinhos com maior "complexidade".
Outro aspeto fundamental, revela Diogo Lopes - é a secagem da madeira, com um estágio de 30 meses ao ar livre.
Mas, será que, ao provar determinado vinho, é possível dizer em que tipo de barrica estagiou? "Com algum treino e conhecimento, sim", assegura. Para um conhecedor é tarefa fácil, ainda que para consumidor normal seja um objetivo mais difícil de atingir.
"O importante, o que o consumidor quer, é que seja um vinho com autenticidade".