Da cela à oficina: "Uma porta aberta num mundo só de portas fechadas" para os reclusos de Caxias
Os muros são altos e o terreno está cercado por arame farpado. Quem está de fora não consegue ver o que se passa lá dentro, nem o contrário. A partir do momento em que se entra na prisão de Caxias, em Lisboa, são as peças de cerâmica que aproximam alguns reclusos da exterior: "É mais uma porta aberta num mundo onde só tenho portas fechadas."
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É quinta-feira à tarde. Na oficina do Estabelecimento Prisional de Caxias apenas se ouve o barulho das máquinas a trabalhar, não fosse o silêncio "tudo o que uma pessoa precisa e aquilo a que muita gente não dá valor". Pelo menos, para Rui Diogo, que está há um ano e quatro meses privado de liberdade.
Rui Diogo integrou o projeto Reshape Ceramics há cerca de um mês e, apesar de apenas ir à oficina duas vezes por semana, confessa à TSF que esta rotina "até poderia ser a semana toda".
"É um ambiente não hostil e não barulhento. Podemos estar no nosso espaço e trabalhar manualmente... no meio de um estabelecimento prisional só há silencio à noite ou de madrugada e aqui conseguimos tê-lo durante o dia. É quase incredível!", afirma o recluso.
Uns são responsáveis pela fornada, outros da vidração ou de preencher os moldes. São quatro trabalhadores, atualmente presidiários, mas que procuram com esta experiência aproximarem-se da realidade.
O silencio é tudo o que uma pessoa precisa e muita gente não dá valor
Ao lado de Rui, está Pedro Gonçalves. Já passou um ano desde que entrou na prisão de Caxias, tem 23 anos e este é o segundo dia de trabalho.
"Estar aqui é mais uma porta aberta num mundo onde só tenho portas fechadas", conta Pedro, acrescentando que a olaria "tem ajudado a passar o tempo": "Ainda não estou condenado e isto ajuda-me neste processo de ansiedade. Consigo estar focado sem pensar só em problemas."
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Tal como a prisão, o barro é desafiante, exige trabalho para lhe contornar a fealdade. É uma matéria-prima que à primeira vista não apaixona as pessoas, mas com a devida transformação acaba por ganhar cor e utilidade. Pode ser uma chávena de café, uma taça para os cereais ou até uma simples argola segurar os guardanapos. É a partir desta premissa que nasceu a Reshape Ceramics, um projeto de reintegração de reclusos na sociedade, mais concretamente no mercado de trabalho.
Adriano costuma supervisionar o trabalho na oficina, mas esta quinta-feira precisava de sair mais cedo e foi Marco Ribeiro Henriques, diretor-executivo da Reshape, que assumiu a tarefa.
"No início não tivemos muito sucesso, mas nesta busca pelas EP, identificamos esta olaria fechada em Caxias e olhámos para isto como uma oportunidade. Até de forma metafórica olhamos para o barro e para a transformação um pouco como aquilo que a prisão deve ser e fazer na vida das pessoas. A cerâmica permite-nos dar vida e criar oportunidades todos os dias a coisas, está inteiramente ligado àquilo que a Reshape faz", explica Marco Henriques, acrescentando que "os ciclos de reincidência são algo difícil de quebrar e o sistema precisa desta ajuda".
Cada peça é uma peça. É como um livro, tem princípio meio e fim.
Na primeira ponta do balcão está Tiago Rodrigues, um homem reincidente que considera "uma regalia" poder estar a trabalhar. Uma vida complicada na toxicodependência acabou por colocar Tiago atrás das grades, mas o que difere a primeira vez da segunda é que, agora, tem "expectativa" e consegue "acreditar que num novo dia de cadeia com algo para fazer". À medida que passa mais tempo na oficina, o recluso tem cada vez mais certeza de que "cada peça é uma peça" e a cerâmica "é como um livro: tem princípio, meio e fim".
São quase quatro da tarde, o que significa que está quase na hora de regressar à cela. O único barulho que continua a ser possível de se ouvir é o das máquinas a funcionar.
Do EP de Caxias entramos agora na oficina da Reshape, em Arroios, onde é dada a oportunidade a um antigo recluso de continuar o trabalho da olaria. Os espaços são semelhantes, a diferença é que quem por aqui passa pode sentir o prazer da liberdade.
Na fábrica de Arroios apenas há vaga para uma pessoa, com contrato de um ano, mas não significa que as outras pessoas não possam ser reintegradas no mercado de trabalho, antes pelo contrário. O diretor do projeto reforça que uma das formas de ajudar é outras empresas abrirem portas aos antigos reclusos.
"Há um exercício conjugado entre as pessoas e as empresas que as acolhem. Aquilo que fazemos é, do lado de quem procura emprego, trabalhar com elas o seu currículo, por exemplo, pensar que estas pessoas uma vez na prisão tiveram acesso a formação, tiveram trabalho na nossa oficina e então o CV delas não vai ser "estive preso em Caxias", vai ser "fui operário na olaria em Oeiras, na Reshape Ceramics. A necessidade de colocar que esteve preso fica suplantado pela própria realidade", explica Marco Ribeiro Henriques.
Precisamos de conseguir baixar os muros da prisão
Os produtos da Reshape são colocados à venda numa plataforma online, mas também em feiras locais. Há quem pare à frente do stand e, numa primeira instância, fique confuso. No entanto, quando ficam a conhecer o projeto "acabam por comprar as peças, seguir nas redes sociais e apoiar esta causa", remata uma das trabalhadoras da Reshape, Sónia Ferreira, enquanto finaliza os últimos pormenores para as próximas feiras.
"As peças são ferramentas de comunicação. É um indutor da discussão sobre o que são prisões. As peças são quase como uma provocação. A cerâmica é a nosso melhor instrumento de comunicação e demoramos a perceber isso", conclui Marco Ribeiro, que, no futuro, espera que a sociedade entenda que "a prisão não é uma solução finita", mas sim "um instrumento de política pública".
Lembrando que na prisão "há coisas incríveis que acontecem a partir desta ideia feia", o diretor do programa sublinha ainda que as peças de cerâmica são apenas uma forma de integração e que, por exemplo, no estabelecimento prisional de Torres Novas há uma horta vertical "única" a crescer diretamente pela mão dos reclusos.
Dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais indicam que estavam presos nos estabelecimentos prisionais portugueses 12.198 reclusos no final do ano passado, mais 810 do que no mesmo período de 2021, quando a população reclusa totalizava 11.388.
Contactada pela TSF, a diretora do EP de Caxias garante que "o feedback do projeto Reshape Ceramics é muito positivo" e adverte para a necessidade de Portugal continuar a apostar em iniciativas "de apoio à reinserção social com muitas valências e diversificado".
