Da maquilhagem aos teares. A incrível vida de António Carreteiro
António Carreteiro, natural de Reguengos de Monsaraz, comprou a última fábrica de mantas alentejanas do país, enquanto outros teares vão desaparecendo. Em tempos de pandemia, conseguiu aumentar as encomendas com o lançamento de uma loja online. Antes disso, fez carreira internacional enquanto maquilhador, chegando mesmo a trabalhar para videoclipes de artistas como a Madonna.
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Quando se entra na Fábrica Alentejana de Lanifícios, mesmo no centro de Reguengos de Monsaraz, é difícil escolher para onde olhar. As mantas coloridas rivalizam com as malas e os puffs. As almofadas empilhadas mostram os padrões feitos em teares com mais de cem anos.
Em tempos de confinamento, o ambiente está calmo. Só ao atravessar toda a fábrica se sente a algazarra. Com quatro teares em funcionamento, conversar é difícil. Resta-nos observar a dança da lançadeira, que rola por entre as linhas do tear.
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Dentro leva uma canela com fios de lã enrolados. Em forma de barco, feitas de ferro, as lançadeiras nunca se fartam de andar para cá e para lá.
Passagem após passagem vão gravando linhas de cor e em pouco tempo já se consegue ver avanço.
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Dançando com os pés e orientando com as mãos, as tecedeiras dão o ritmo ao tear. "É como conduzir", garante Carmen Margalha. A tecedeira, que trabalha na Fábrica Alentejana de Lanifícios há 25 anos, explica que os pés destinam tudo. "Temos de saber se aceleramos, se travamos, se pomos embraiagem. É fácil."
  
Para Anabela Neto, que se mudou do norte para Reguengos de Monsaraz, trabalhar em teares com mais de cem anos foi um desafio.
"Eu nunca tinha visto um tear, eu nunca tinha tecido na minha vida, eu era administrativa", conta. Cinco anos depois, opera o maior tear da fábrica, que permite fazer panos com 2,40 cm.
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António Carreteiro, que comprou a fábrica no ano passado, teve mesmo de aprender a usar o tear para saber que artigos podia ou não materializar.
"Logo na primeira semana, imaginava coisas que não eram possíveis de se fazer, não sabia como é que se faziam.", relembra.
Depois de aprender, começou a interessar-se cada vez mais pela tecelagem e destaca as capacidades relaxantes das manobras, uma espécie de meditação à base de fios, lançadeiras e mantas que se vão revelando.
"A lançadeira começa a ganhar velocidade, nós começamos a fazer cada vez mais rápido e apercebemo-nos que há ali um exercício de meditação, de relaxamento, seguimos a lançadeira e paramos o pensamento. É mágico."
  
Este fascínio pela tecelagem surgiu agora mas António Carreteiro estava já familiarizado com a tradição das mantas alentejanas.
Saiu de Reguengos de Monsaraz aos 13 anos e regressa agora, 40 anos depois, para comprar a última fábrica de mantas alentejanas do país. "Não podemos deixar morrer isto", defende.
Comprou a fábrica com dois sócios no ano passado. Todos queriam abrandar e fugir da vida corrida da cidade mas a mudança coincidiu com a pandemia. "Foi fazer das tripas coração" porque sem turismo e com a loja fechada, as mantas não se vendiam.
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Deram a volta com as vendas na internet e além das mantas apostaram noutros produtos, como carteiras, malas, almofadas e puffs.
"Começamos a vender em vários sites de vendas internacionais e começamos logo a receber muitas encomendas e foi assim o ano todo", conta António.
"É como uma joia"
Agora, as quatro tecedeiras e a costureira da fábrica não têm mãos a medir mas Carmen Margalha confessa que houve algum receio ao início. "Todas as mudanças e todos os desconhecidos nos fazem pôr o pé atrás. Ali o princípio foi uma adaptação."
Mizette Nielsenm, uma holandesa que salvou a tecelagem alentejana do esquecimento, já tinha manifestado vontade de vender mas apenas a quem quisesse continuar o fabrico manual de mantas alentejanas, o que descansou as funcionárias.
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Anabela Neto acredita que estão no caminho certo. "Se não tivesse havido estas alterações e estas inovações, talvez a fábrica tivesse passado por uma má experiência", afirma.
António quer contratar mais duas pessoas, acredita que está a aumentar o interesse por estes objetos de culto. "Isto é um tesouro, uma pessoa ter uma peça destas é como ter uma joia, é uma coisa para guardar", explica.
  
Ainda assim, o fascínio pelas mantas alentejanas vem de trás. Dos pastores passou para os enxovais e a maior parte das casas tinha pelo menos uma manta alentejana colorida de lã de merino.
A fábrica guarda uma de 1910 e outra de 1915, a icónica manta primavera, a primeira a utilizar lãs tingidas com flores como o lírio, o malmequer ou a papoila.
"Foi feita por encomenda para uma noiva muito abastada, uma peça de enxoval e, desde essa altura, que se vem a fazer", conta António.
As filas de sexta na padaria
Esta mistura entre tradição, modernidade design e moda foi o que mais atraiu António, quando trocou Lisboa por Reguengos. O regresso coincide também com a morte do pai, altura em que teve de tomar as rédeas dos negócios incluindo uma padaria da família.
Se de dia está nos teares, à noite está de mãos na massa. "É um negócio de família, eu trabalhava lá nas férias, desde miúdo. Quando lá cheguei, ao fim de 40 anos, tudo aquilo me era familiar."
Há pão alentejano, queijadas, e padinhas e outras tradições que nunca morrem como a fila de sexta-feira à noite na Padaria Ideal de Monsaraz. A afluência começou com quem ia sair à noite e depois passava na padaria para a ceia, mas a tradição passou para quem também ficava em casa.
Às tantas já não eram aquelas pessoas que iam depois de sair, para as discotecas ou para os bares, mas as que iam ficar em casa a ver filmes. Era agradável comer os bolos quentes, para irem para casa. Ou então, sábado de manhã, não queriam ir de manhã, então iam à noite comprar. Temos umas noites de sexta-feira muito movimentadas.
Moda e maquilhagem
Mas que as mantas e o pão não deixem esconder o outro mundo de António Carreteiro. Saiu de Reguengos para estudar num colégio interno em Tomar. Daí seguiu para Lisboa, onde estudou design de moda. Nunca mais regressou para viver em Reguengos.
  
Fez várias coleções para marcas portuguesas, desde pronto-a-vestir, sportsware, e alta-costura. Ao fim de alguns anos, um convite para maquilhar jovens de um casting para o programa Clube dos Amigos Disney, abriu-lhe as portas para um novo mundo - a maquilhagem e os cabelos.
"O produtor veio falar comigo a dizer que já tinham escolhido os apresentadores e que estavam muito contentes com a imagem e se eu estaria disposto a fazer as filmagens dois dias por mês. De repente, comecei a achar mais graça aqueles dois dias do que o resto do tempo que eu tinha de passar no ateliê", relembra.
Era o início dos anos 90 e a moda ganhava outro fôlego com o aparecimento das revistas e das agências de modelos. Coincidiu também com o aparecimento dos novos canais privados que precisavam de maquilhadores para os programas de entretenimento.
Do Buéréré à música da Madonna
"Fiz o Big Show SIC, fiz o Buéréré, fiz a Noite de Sonho, fiz muitos programas desses. De repente, havia muitos programas para fazer e não havia equipas tinham que ser formadas na hora. Foi muito fácil as coisas acontecerem, tinha trabalho todos os dias e todos os dias estava a aprender."
António Carreteiro foi ganhando nome no mundo da maquilhagem nacional mas também fora do país. Passou pelo Ballet Gulbenkian, como figurinista e cenógrafo. Trabalhou para a L" Oreal e para todas as produtoras e televisões. Acompanhou a delegação do festival da canção por vários anos, viajou em trabalho para todo o mundo e acabou também a maquilhar para videoclipes de artistas como por exemplo a Madonna.
"Eu fiz dois videoclipes para a Madonna mas eu só fiz a equipa toda, os figurantes, todas as pessoas com quem ela contracenava, ela tinha a pessoa que a maquilhava, que a maquilha sempre", conta.
Olhando agora para trás, António admite que a vida deu muitas voltas, que o ajudaram a regressar às raízes.
"Era isto que eu andava à procura sem saber exatamente. Tinha esta calma que eu queria procurar mas também tinha as capacidades artísticas, que podia desenvolver um trabalho muito interessante e foi isso que me fascinou."
  
