Das aldeias mágicas aos banhos quentes no rio. O Gerês aqui tão perto
Cantava o Sérgio Godinho que esteve "quase morto no deserto e o Porto aqui tão perto". A letra serve de mote para uma aventura - mesmo que talvez possa ser sem aventurismo - no Gerês.
Corpo do artigo
O Gerês aqui tão perto! O Gerês que nos salva das consumições quotidianas, dos stresses citadinos, das correrias do trabalho-filhos-casa. O Gerês que nos premeia com a sua natureza exuberante e nos manda fazer "reset". Aqui tão perto.
A Reserva da Biosfera Transfronteiriça Gerês-Xurés (RBTGX), declarada em 2009 pela UNESCO, une-nos a "nuestros hermanos". É conjunto do Parque Nacional da Peneda-Gerês e do Parque Natural Baixa Limia - Serra do Xurés, em Espanha.
Do lado português, um Parque Nacional (o único Parque Nacional, aliás, sendo esta a mais alta classificação do INCF); do lado espanhol, um Parque Natural. A unir os dois, 300 kms de trilhos numa rota circular. 200 kms portugueses e outros 100 kms na Galiza.
Mas se, em Portugal, o Gerês é a joia da coroa dos amantes da natureza, em Espanha o Xurés não tem o mesmo destaque: falta dinamização das atividades e apoio ao nível de alojamentos turísticos. A pensar nisso, o Conselho de Cultura e Turismo da Junta da Galiza aposta agora na divulgação da RBTGX.
Para os mais aventureiros, os que gostam de "pôr toda a carne no assador", a sugestão passa por fazer na íntegra os 300 kms. Por que não? A proposta da Celtia Travel, uma agência de viagens da Galiza especializada em atividades na natureza, atira-nos para 16 dias de caminhada, entre os 12,5 km e os 21,5km cada etapa. Mas é claro que não é obrigatório fazer o percurso completo e, por isso, basta olhar para os mapas e escolher apenas os percursos para um daqueles fins de semana em que o objetivo é desligar.
Com um pé no Gerês e outro no Xurés, deixamos-lhe a sugestão de alguns trilhos para todos os gostos.
Banhos no rio de água quente para acabar um dia de trilhos
Para quem aprecia banhos quentes termais, coloque no GPS Lobios, do lado espanhol, e desfrute das águas quentes do Rio Caldo. Os banhos públicos das Caldas de Lobios, mesmo junto ao Hotel Caldaria, onde pode pernoitar, convidam a retemperar do frio da montanha.
Mas esse pode ser o destino final do Trilho da Corga da Fecha, que aí começa. São cerca de 5 km, ida e volta. O passeio é muito acessível até à primeira cascata, onde a vista vai ficar presa nos azuis turquesa e nos verdes translúcidos da água da piscina natural. Essa, sim, fria, muito fria.
No verão, essas paragens estão cheias de turistas, por isso, se dispensa o banho, o melhor é procurar o deslumbramento da paisagem nas temperaturas mais amenas do outono.
Depois, da primeira cascata para cima, tendo o jeito das cabras, pode ir trepando as rochas que se encavalitam na paisagem e ir descobrindo sucessivas quedas de água. O espanto vai sempre aumentando. A natureza nunca deixa de surpreender.
No regresso às Caldas de Lobios, espreite os restos de uma estalagem romana, Mansio Aquis Originis, um lugar de descanso para os viajantes que passavam pela Via Nova, entre os séculos I e IV.
Esta zona é, aliás, muito interessante para as famílias que procuram visitas culturais e pedagógicas.
Desporto de natureza aliado à História
Os territórios da Reserva da Biosfera foram ocupados desde tempos pré-históricos. Facilmente se encontram vestígios megalíticos, celtas, romanos e medievais.
A Rota do Vale de Salas tem cerca de 13 km, que também podem ser feitos de bicicleta ou de carro. O trajeto passa por quatro dólmenes representativos do megalitismo. Antes de começar o trajeto, pode levar os miúdos a assistirem a uma "aula" digital sobre a arqueologia e o megalitismo do Vale de Salas, no complexo turístico O Corgo, em Muiños, dentro do Parque Natural Baixa Limia - Serra do Xurés.
Se eles não sabem, vão aprender como eram construídas essas antigas casas mortuárias do tempo da pré-história.
Mais exigente do que a Rota do Vale de Salas é a Rota da Serra de Laboreiro, com 19 km, um percurso circular que é uma autêntica aula viva de História, já que passa por diversos megálitos, entrando por Portugal através do Alto da Portela do Pau.
No entanto, em termos arqueológicos, o ponto alto será Aquis Querquennis. Conhecido popularmente como A Cidá, foi uma base militar romana ocupada entre os séculos I e II. Pensa-se que poderá ter sido construído para vigiar a Via Nova, que ligava Bracara Augusta (Braga) e Astúrica Augusta (Astorga). Aquis Querquennis impacta pela imponência do espaço que ocupa. A imaginação divaga facilmente pelo acampamento e, enquanto se ouvem as explicações do guia local, parece possível ouvir também os gritos, os risos e as conversas dos militares romanos que aqui assentaram arraiais.
Bem perto de Aquis Querquennis, fica a igreja visigótica de Santa Comba de Bande. Antes de mais, fica o aviso para que não se engane: não é a igreja que se encontra mal se chega a Bande, junto ao cemitério, mas, sim, a que fica no interior da aldeia. Ao que consta, alguns turistas mais distraídos acabam por não descobrir aquela que é uma das igrejas mais antigas de toda a Península Ibérica.
Construída na segunda metade do século VII, para aqui vieram as relíquias de São Trocado, discípulo de Santiago.
É provável que a encontre fechada, mas junto à entrada tem o número de telefone de um voluntário local a quem pode ligar pedindo para abrir a igreja. Lá dentro, os olhos fixam-se também nas pinturas da abóbada da abside (essas do século XVI).
Quando voltar ao exterior, reserve algum tempo para apreciar o enquadramento da paisagem. Um verde selvagem contrasta com o azul intenso da Barragem das Conchas, a mesma água que servia os soldados romanos de Aquis Querquennis.
As aldeias mágicas do Gerês
Entre o rústico e o feérico, têm qualquer coisa de mágico as aldeias do Gerês.
Puxedo, em Espanha, parece uma povoação modelo, um requinte de organização, o alinhamento perfeito que quase parece levar-nos para dentro de um episódio dos desenhos animados do Carteiro Paulo (quem se lembra disso?).
Situada na serra de Baixa Limia, Puxedo é uma aldeia com apenas 40 habitantes permanentes que decidiram arregaçar as mangas e deitar mãos à obra, sendo eles próprios os autores - designers e construtores - do mobiliário urbano da localidade.
Pequenos bancos em madeira ou uma paragem de autocarro, também em madeira e vidro, sóbria e elegante, dão um retoque de decoração natural e rústica a uma aldeia coberta de musgo verdejante e repleta de espigueiros e eiras.
Conhecida por estar inserida na Rota do Pão, Puxedo reconhece a tradição do trigo e do centeio. É também das mãos dos habitantes que sai a reconstrução dos espigueiros de pedra - todos impecavelmente preservados - e da Festa da Malha, onde se recria a forma antiga de separar os grãos dos cereais, à mão, com um pau de madeira. É inspirada nessa tradição que se decidiu decorar a aldeia com murais de um artista local.
Depois, do lado português, temos Pitões da Júnias. Ah, Pitões!
Não pode haver rudeza mais doce que a de Pitões. A paisagem dramática e contrastante das montanhas que abraçam a aldeia torna o ambiente misterioso.
O encanto de Pitões torna-se ainda maior quando a chegada é feita através do trilho que parte de Outeiro e que faz parte da GR50. São 9 km acessíveis, sempre por caminhos rurais, sendo a partida enquadrada pela beleza da albufeira de Paradela.
Depois de passar a aldeia de Outeiro, a vista alcança a manta dos campos agrícolas, atravessa o carvalhal de Beredo e encontra, na Portela da Fairra, um "fojo do lobo". Trata-se de uma armadilha redonda, construída pelos pastores com muros altos de pedra, para caçar os lobos que assaltavam os rebanhos. No interior, era colocada uma cabra para atrair o lobo. O animal saltava lá para dentro, através de uma espécie de rampa, e dali já não conseguia sair, dada a altura dos muros. Apesar de tudo, garantem os locais, as cabras eram poupadas, porque mal se apercebia de que tinha caído numa armadilha e que já não conseguia sair dali, o lobo, em stress, não prestava mais atenção à pobre cabrita.
É altura de pôr os pés novamente ao caminho. Não falta muito para entrar no passadiço da famosa cascata de Pitões. O cenário é impactante e a fome começa a apertar. Nada de grave, uma vez que, poucos quilómetros à frente, já vamos encontrar a aldeia de Montalegre com a sua gastronomia acolhedora. Não deixe de dar um salto à Padaria da Pitões. O pão de centeio é artesanato puro e a Rosca-Flor é de comer e chorar por mais. E há ainda o mel produzido no local, que é um caso sério com o dito pão de centeio.
Alternativas para os amantes de bike
Se é amante de bicicleta, saiba que muitos destes trilhos podem ser feitos de bike. Há um percurso de 160 km da Reserva da Biosfera Transfronteiriça Gerês-Xurés, divididos em três etapas.
Parte de Maus de Salas, em Muíños, Espanha, e percorre paisagens espetaculares da Serra do Xurés, passando pela aldeia abandonada de Salguei e, no lado português, pela maravilhosa aldeia de Campo do Gerês. Aventure-se pelas zonas rochosas com bosques deslumbrantes.
São três trajetos: Maus de Salas - Campo do Gerês (62 km), Campo do Gerês - Paradela (53 km), Paradela - Arcos de Valdevez (45 km).
A fronteira Gerês - Xurés fica a sensivelmente duas horas de carro a partir do Porto. O cenário apetece em qualquer altura do ano. No tempo quente, as sombras verdejantes e as águas refrescantes chamam por nós. No frio, somos atraídos pelas cores de outono e os sabores quentes da região. Seja qual for o motivo, qualquer um é uma boa desculpa para uma escapadinha de fim de semana. O Gerês encanta, enfeitiça. O Gerês tem segredos que conta aos visitantes, tem mistério, tem magia. O Gerês é o refúgio das almas que amam a terra, a natureza, os bichos e o pó das estrelas.
"Há sítios no mundo que são como certas existência humanas: tudo se conjuga para que nada falte à sua grandeza e perfeição. Este Gerês é um deles."
Miguel Torga
