De Alfama para Cacilhas: "Qualquer dia fazemos lá os arraiais de Santo António"
Várias famílias de Alfama encontraram uma nova casa em Cacilhas, depois de terem sido obrigadas a abandonar os apartamentos onde viviam no bairro, entretanto transformados em alojamento para turistas.
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"Cada vez há mais pessoas ali à procura de casa", disse Paulo Cardoso, nascido e criado em Alfama, que se mudou recentemente para Cacilhas.
"O senhorio deu-me quatro meses para sair", contou Paulo Cardoso à TSF. "O meu prédio era uma zona habitacional de famílias, todas do bairro e fomos convidados a sair para converter aquilo num hostel".
Foi em Cacilhas que encontrou uma nova casa, a oito minutos de cacilheiro de Lisboa, tal como outras pessoas de Alfama.
"Eu já contabilizei sete famílias [de Alfama] e duas delas fui eu que lhes arranjei lá casa", disse Paulo Cardoso, acrescentando em tom de brincadeira que "qualquer dia fazemos lá os arraiais de Santo António e o desfile da marcha de Alfama vai passar para Cacilhas, provavelmente".
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Os antigos vizinhos voltam a reencontrar-se no supermercado ou no café e "até o tal calão que se falava em Alfama já se opta por falar em Cacilhas também".
Ruth Cardoso mudou-se para Cacilhas em novembro do ano passado, depois de o senhorio ameaçar subir a renda da casa para 750 euros.
"Eu morava na Rua Guilherme Braga. O senhorio, ao princípio, dizia que não era para despejar. Depois, de um momento para o outro, que iria fazer obras. Eu já pagava 450 euros. Eu perguntei-lhe quanto ficaria a pagar. E ele disse que à volta dos 750. Não dá", contou.
Já tinha sido despejada do cabeleireiro onde trabalhava mas conseguiu arranjar um novo espaço através de um projeto social da junta de freguesia de Santa Maria Maior. Não teve a mesma sorte com a casa e mudou-se para a margem sul com o marido e o filho.
"Eu não tenho intenções de voltar para Alfama, com muita pena minha, mas foi isto que eles decidiram, é isto que eles estão a decidir e, com muita pena minha não vou voltar. É muito triste", lamentou.
Santa Maria Maior perdeu 11% da população em três anos
Alfama e outros bairros de Santa Maria Maior têm perdido população nos últimos tempos, com a saída de 11% da população nos últimos três anos, de acordo com dados da junta de freguesia.
Miguel Coelho, presidente da junta, disse que "disparou brutalmente a pressão sobre quem cá mora e está tranquilo da sua vida para que saia para se instalar o alojamento local".
Quer sejam proprietários ou inquilinos, "a população está a ser empurrada para fora da freguesia", garantiu Miguel Coelho, acrescentando que "o efeito prático disto é que pessoas de 90 anos estão a receber cartas para se irem embora".
A junta de freguesia de Santa Maria Maior apontou a "errada perspetiva de desenvolvimento económico e de oferta económica que está aqui a ser criada, muito dependente de determinado tipo de turismo", como a razão principal para a saída de população dos bairros do centro de Lisboa.
Carlos Pires passeia por Alfama com dois visitantes franceses. É guia turístico e disse que quem visita Lisboa procura "ver o lado pitoresco, ver as tradições, ver o que Lisboa ainda tem de genuíno. São precisamente essas pessoas mais idosas que transmitem as tradições".
O guia turístico garantiu que "no dia em que isto desaparecer, as pessoas desaparecem. Ao fim ao cabo vão dizer: porque é que vimos para Lisboa se é para ver a mesma coisa que nós temos lá em casa?".
"Saem daqui e morrem mais depressa"
Quem fica em Alfama garante que o bairro está mudado. "Agora aqui é só as pessoas antigas como eu, e a rapaziada nova está tudo a fugir daqui. A gente mesmo que queira agora uma casa aqui, não há. Nem pequenina, nem grande, nem por preço nenhum", garantiu Maria Arminda Costa, 76 anos.
A falta de casas para arrendamentos de longa duração é um dos principais problemas para quem quer viver nos bairros históricos. Lurdes Pinheiro, presidente da Associação do Património e População de Alfama (APPA), garantiu que a situação pode ser atenuada se a Câmara Municipal de Lisboa colaborar.
"Esses andares que estão vazios, a câmara que os dê às pessoas que estão com dificuldades e que vivem aqui no bairro. Porque a maior parte das pessoas tem um rendimento muito baixo, são pessoas que não têm mesmo hipótese de pagar 600, 700 ou 800 euros de renda", referiu Lurdes Pinheiro, acrescentando que "eles também não querem, porque saem daqui e morrem mais depressa".
"Era aqui que eu gostava de morar"
Ana Paula também vive na margem sul e aproveitou o fim de semana para dar uma vista de olhos à casa onde sempre viveu em Alfama. "A minha família saiu toda daqui, eu fui a última pessoa a sair daqui. Fui, mas porque fui obrigada", contou.
Ana Paula não pensaria duas vezes se lhe dessem a possibilidade de voltar a viver em Alfama. "Se me perguntar onde é que gostava de morar, era aqui que gostava de morar. Não era no outro lado, nem pensar".
Opinião semelhante tem Paulo Cardoso que gostaria de voltar ao bairro por questões profissionais e afetivas. "Foi aqui que fui criado e onde os meus pais sempre viveram. Um bocado de mim está aqui também. É com muita tristeza que estamos hoje a falar disto. Sinto muito mesmo, do fundo do coração".