De Kamala Harris a Marta Temido. Exemplos de que "lideranças humanizadas são mais fortes"
Evódia Graça, especialista em liderança e imagem feminina, fala do primeiro mês de Kamala Harris como vice-presidente dos EUA e da prestação de Marta Temido à frente do Ministério da Saúde em plena pandemia. Duas líderes, duas mulheres e o que isso traz de diferente à política.
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No dia em que se assinala exatamente um mês desde que Kamala Harris tomou posse como vice-presidente dos EUA, fomos falar com Evódia Graça, especialista em liderança e imagem feminina. A cabo-verdiana de 34 anos trabalhava como assessora de um ministro no seu país quando, em 2016, foi distinguida por Barack Obama, na altura Presidente norte-americano, como Young African Leader por ajudar a empoderar meninas e mulheres nos tempos livres.
Atualmente, como leadership coach & image manager, ajuda mulheres profissionais a posicionarem-se como líderes de sucesso e vê Kamala Harris como "uma lufada de ar fresco na política norte-americana". Sem esquecer o caso português, com uma mulher a liderar o Ministério da Saúde em plena pandemia de Covid-19, Evódia Graça confessa ser "fã incondicional da senhora ministra da Saúde" e acredita que, se o cargo fosse ocupado por um homem, "já teria colocado esse cargo à disposição".
Passou um mês desde que Kamala Harris tomou posse como vice-presidente dos EUA. É a primeira mulher e afro-americana a assumir o cargo. Já se veem mudanças?
Pelo menos no que toca à figura da Kamala enquanto mulher já vemos algumas mudanças, principalmente na forma como pensamos a liderança até agora. Ela transmite uma liderança muito humanizada, muito presente na forma como aparece sempre ao lado do Biden, quase como uma partner in crime. Traz uma lufada de ar fresco para aquilo que têm sido as representações que temos do que é ser uma mulher líder e estar num cargo tão importante. Embora se tenha passado apenas um mês, ela representa muito bem aquilo que é uma lufada de ar fresco na política norte-americana, em que já estávamos todos um bocado desiludidos com a governação e agora temos aqui uma lufada de ar fresco na forma como efetivamente se pode fazer política e até voltar a trazer esperança e brilho para os olhos, não só dos norte-americanos, mas um pouco por todo o mundo.
Que expectativas podemos ter para os próximos quatro anos?
Ela traz uma visão que já tenho na minha filosofia de vida, que fui buscar ao Barack Obama. Defende que não existem impossíveis. Ela é a primeira mulher vice-presidente, a primeira vice-presidente que aparece mais do que o próprio Presidente. Após a eleição, todos estávamos a partilhar a Kamala nas redes sociais e isso representa o que será o futuro dos EUA e, diria, do mundo inteiro, em que é possível governar em parceria. O Presidente assume a liderança, mas tem parceiros e ela aparece como uma parceira. Quebra aqui todas as barreiras possíveis e imagináveis ao ser a primeira mulher a ser eleita como vice-presidente na história da política e da governação norte-americana. Além de ser uma mulher negra o que, por si só, trouxe também uma segunda mensagem, principalmente para os afrodescendentes e para os africanos em geral, para acreditarmos nos nossos sonhos. O discurso dela é para ouvirmos todos os dias porque traz esperança, brio profissional e humildade, não apenas nas palavras, mas também na voz, na forma de expressar uma brand new America de que todos podem, efetivamente, fazer parte. O discurso dela refletiu a esperança que muitos já desejávamos ver. Tenho uma relação muito próxima com os EUA, estive lá antes e após a eleição de Donald Trump. Então para mim teve um impacto enorme conseguir voltar a sentir que podia ter esperança nos EUA e até vontade de lá voltar. Ela conseguiu até assumir o protagonismo a nível mundial.
Quebra aqui todas as barreiras possíveis e imagináveis ao ser a primeira mulher.
Que diferenças sentiu nessas viagens aos EUA, antes e depois da governação de Donald Trump?
Senti diferenças não só enquanto uma cidadã que esteve nos EUA, mas sim no contexto paradigmático em que fui como uma jovem líder para aprender com as instituições, não apenas num contexto de formação. Visitámos várias Organizações Não Governamentais, instituições do Estado e entre o pré, que foi em 2016 ainda com Obama no poder, e o depois, já com Trump, a mensagem que essas instituições nos iam passando era de que, efetivamente, estava tudo mais difícil, já nem o brilho nos olhos das pessoas era o mesmo. As pessoas diziam que tinham medo, tinham pânico. Pessoas que tinham acesso a cuidados de saúde, devido ao Obamacare, de repente passaram a ter medo de perder o acesso a uma coisa tão básica como são os cuidados de saúde. Noventa por cento dos feedbacks que recebemos das organizações que visitámos eram unânimes no que toca ao medo, agonia e incerto, mas graças a Deus já passou. Já passaram cinco anos e hoje podemos voltar a acreditar.
Que impacto teve a governação de Donald Trump na vida dos africanos e afrodescendentes nos EUA?
Depois da eleição do Trump, os afrodescendentes com capacidade de votar perceberam a importância do voto. Não foi por acaso que agora o Obama, Michele Obama e todos os outros influenciadores afrodescendentes apelaram ao voto da forma que apelaram. Pela primeira vez, os afrodescendentes nos EUA ganharam noção do que é ser afro-americano e do que é exercer o direito tão básico de ir às urnas porque, efetivamente, estavam a marcar a diferença. Quando estive lá em 2016 senti muito isso. Perguntávamos às pessoas se iam votar e muitos afirmavam categoricamente que não e havia outros que, entre o Trump e a Hillary, preferiam não votar para não votarem numa mulher nem no Trump. Para mim, o maior ensinamento da liderança de Donald Trump foi os afrodescendentes perceberem a importância do voto.
Ajuda mulheres executivas, empreendedoras e empresárias a ganhar ou recuperar confiança, sobretudo em cargos de liderança. Quais costumam ser os principais problemas com que estas mulheres lhe chegam às mãos?
São vários, mas os principais prendem-se com o facto de as mulheres que estão na política ou em altos cargos executivos muitas vezes conciliarem a esfera profissional com a privada. Toda essa conciliação não é fácil e piorou ainda mais no contexto da Covid-19 no que toca a autoconfiança, empoderamento e autoestima. Olhamos para uma mulher política, líder, num alto cargo e dizemos: "Uau, ela é um exemplo." Mas só olhamos para o que é visível e muitas vezes nem sonhamos com a quantidade de desafios, problemas e obstáculos pelos quais passam. Por vezes só precisam de uma mãozinha de alguém que esteja no backstage a fazer esse trabalho e, no final do dia, conseguirem exercer melhor os seus cargos. Mas há outros desafios, como o próprio posicionamento em relação ao homem. Há muitas mulheres na política e noutros cargos que, perante grandes congressos ou auditórios, ainda conseguimos perceber dificuldades no posicionamento pelo simples facto de serem mulheres ou porque acham que os homens já disseram tudo e não vão acrescentar mais nada.
Lançou esta semana um programa pioneiro para ajudar mulheres líderes na política. Em que consiste?
O programa Leaders foi testado em mulheres CEO e em altos cargos governamentais e consiste exatamente em trazer esse acompanhamento para mulheres que estão nesses cargos. Tento abarcar três áreas que considero de fundamental pertinência quando queremos trabalhar o posicionamento online e offline de uma mulher líder: o show up, speak up e o stand out. O show up defende que a imagem, o empoderamento e autoestima têm de estar devidamente alinhados e trabalhados para que se possa comunicar com confiança. O pilar números dois é exatamente a comunicação, a forma como comunicamos e como podemos tirar partido do nosso perfil de personalidade e enquanto líder para comunicar de uma forma mais humanizada. Em todos os meus programas existe uma grande percentagem que é dedicada à própria consultoria de imagem onde apostamos na postura da mulher quando comunica. Hoje em dia usamos plataformas como o Zoom para fazermos todas as nossas apresentações e comunicações e, mais do que nunca, temos de passar brilho, brio profissional e empatia. Então trabalhamos tudo isso em backoffice porque, no final do dia, todas as líderes procuram ter uma marca pessoal forte. Se há alguns anos a marca e marketing pessoal não eram tão levados a sério, hoje em dia, até por causa da Covid-19, são muito importantes. No stand out focamo-nos nas questões da liderança feminina e na forma única e maravilhosa como as mulheres sabem liderar de uma forma que é quase inata. Como nascemos com a predisposição para sermos mães, embora nem todas o queiramos, temos uma forma única e muito humana de liderar. As mulheres têm de ter consciência de que não precisam de usar uma capa e fingirem que são homens na forma de liderar, podem liderar enquanto mulheres, com toda a feminilidade, não deixando de ser quem são. E isso tanto na questão da liderança como de posicionamento. Há muitas mulheres na política que me dizem que querem ter o seu site e as suas plataformas bem trabalhadas. Há uns anos isso era uma não questão porque bastava o Facebook e algumas presenças nas comunidades. Agora até a campanha para as presidenciais aconteceu quase toda no digital. O Leaders vem colmatar aqui essa necessidade no mercado, de um público feminino que muitas vezes pensamos que não precisa de ajuda. Quando falamos em empoderamento feminino, muitas vezes achamos que é o desenvolvimento pessoal das mulheres no geral, mas há vários targets que precisam também desse apoio.
A imagem, o empoderamento e autoestima têm de estar devidamente alinhados e trabalhados para que se possa comunicar com confiança.
Amina Mohammed, vice-secretária-geral da ONU, afirmou, logo após a primeira vaga da pandemia, que as evidências mostravam, em muitos países, os governos liderados por mulheres são mais eficazes no achatamento da curva e no posicionamento para a recuperação económica. Na sua opinião, por que é que isto acontece?
Está relacionado com a forma diferente e única como as mulheres lideram. Num contexto de pandemia não basta entrarmos em stress, é preciso de resolver e quando precisamos de resolver em contexto de crise parece que ativamos todas as nossas "armas". Além disso, as mulheres vão buscar um lado humano, com o objetivo de resolver as situações pensando sempre nas pessoas. Mas a verdade é que há muitos líderes que tomam decisões não a pensar nas pessoas, mas sim nos louros que vão colher das suas decisões. Os casos que são apontados como de sucesso têm mulheres na presidência e aparecem como exemplo porque, efetivamente, os homens são muito mais straight to the point na forma de liderar e as mulheres são mais sensíveis. A Covid veio mostrar que essa sensibilidade não é negativa, é boa para conseguirmos olhar além do óbvio. Isso trouxe vantagens, não só para as mulheres que lideram mas também para os homens que estão a liderar e têm nas suas equipas mulheres cujas opiniões são válidas e validadas.
Em Portugal não temos uma mulher como Presidente nem como primeira-ministra, mas temos uma ministra da Saúde, um dos cargos governamentais mais relevantes no contexto que vivemos. Como tem visto a atuação de Marta Temido, enquanto líder, no último ano?
Confesso que sou fã incondicional da senhora ministra da Saúde [Marta Temido] pela forma como tem gerido esta crise, independentemente dos prós e contras. Ela já se desfez em lágrimas e vários agarraram nisso para criticar. Ela desfez-se em lágrimas praticamente um ano depois do início da pandemia, se fosse um ministro da Saúde já se teria desfeito há muito tempo. Claro que em alguns momentos conseguimos perceber que ela estava quase à beira de um burnout, mas as lágrimas foram, para mim, símbolo de estar a carregar um país às costas. Quando foi para o cargo, não sonhava que vinha aí a Covid-19. Independentemente de todos os políticos que têm dado a cara, ela representa, com todas as falhas e achievements, o que é liderar no feminino com força e assertividade a tomar decisões. Mesmo sendo criticada diariamente por todos, não colocou o lugar à disposição. Um homem nesse cargo provavelmente já teria colocado esse cargo à disposição. O secretário de Estado da Saúde desfez-se em lágrimas muito mais cedo. É interessante olharmos para estes factos e quebrarmos preconceitos de que as mulheres são sensíveis quando, na verdade, essa sensibilidade é muito boa porque traz lideranças muito mais humanizadas. As instituições, sejam elas do Estado ou não, cada vez mais estão preocupadas com essas questões de liderança e inclusão exatamente porque são lideranças mais fortes quando têm essa diversidade a todos os níveis, sejam mais mulheres, homens, afrodescendentes ou portadores de deficiência física. São lideranças mais humanizadas e mais fortes porque têm diversidade a todos os níveis.
Em 2016 foi distinguida como Young African Leader por Barack Obama. Já passaram 5 anos. Em jeito de retrospetiva, o que é que esta distinção significou para si e para a sua carreira?
A distinção do Obama significou a minha mudança de carreira. Há cinco anos era assessora do ministro da Presidência do Conselho de Ministros, em Cabo Verde. Nessa altura já fazia do empoderamento das mulheres uma espécie de missão de vida no final do meu dia de trabalho, através de um projeto que tinha na altura. Era o que me fazia vibrar enquanto mulher. Cinco anos depois deixei tudo para trás, regressei para a Europa, voltei a viver em Portugal, em Lisboa, fui mãe e decidi embarcar na minha maior jornada de desenvolvimento pessoal e profissional mudando de carreira porque vim dos EUA com uma certeza, embora ainda não soubesse como concretizá-la: ia fazer do empoderamento das mulheres a minha missão de vida, independentemente de estar em Cabo Verde, em Portugal ou nos EUA. Estou, neste momento, a promover um programa dedicado às mulheres quando, há cinco anos, assessorar um ministro na qualidade de apartidária me fazia brilhar os olhos. O Obama, como dizem os brasileiros, foi literalmente aquele pontapé na bunda de que precisava para descobrir o meu propósito de vida, empedrando outras mulheres. Uma das frases que o Obama usou no seu discurso quando falou connosco, parafraseando o John Kennedy, foi: "Regressem aos vossos países e, em vez de perguntarem o que os vossos países devem fazer por vocês, perguntem o que, efetivamente, podem fazer pelos vossos países." Isso foi um ponto de viragem para perceber que podemos fazer muito mais do que aquilo que é considerado normal. Se há causas que nos movem, é possível criar um negócio e viver do nosso propósito de vida. É um balanço super positivo e coincide com uma nova liderança nos EUA, o que me deixa profundamente feliz.
O Obama, como dizem os brasileiros, foi literalmente aquele pontapé na bunda.
Sempre quis falar de África como um continente de pessoas de sucesso. Sente que ainda há um longo caminho a percorrer para que se olhe para os africanos dessa forma?
Ainda há um longo caminho a percorrer, Portugal é um exemplo disso. Quando a SIC apareceu com um pivô afro, de repente todos as publicações nas redes sociais eram sobre isso. Isto mostra o quanto ainda precisa de ser feito para que deixe de ser uma novidade. Portugal e tantos outros países estão cheios de afrodescendentes, muitos deles europeus e portugueses, altamente qualificados e totalmente disponíveis para agarrar grandes desafios profissionais, mas a verdade é que ainda há um grande trabalho a ser feito no sentido de consciencializar as organizações, instituições e empresas de que, efetivamente, essas pessoas estão à altura e que, simplesmente, essas oportunidades ainda não estão disponíveis e acessíveis a todos. As figuras mais destacadas na imprensa norte-americana, desde o início de 2021, têm sido a Kamala Harris, Michele Obama e a Oprah e isto é de um significado brutal. Três figuras sonantes e afrodescentes que representam uma lufada de ar fresco, uma nova temporada política e social a nível mundial onde cabem todos os sonhos, para todas e todos, independentemente da nossa cor de pele, origem, etnia e crenças. É de um simbolismo enorme saber que 2020 coincidiu, por um lado, com a Covid-19, mas também com o ano em que houve mais movimentos como o Black Lives Matter, no sentido de apelar à luta contra situações de descriminação. Entrámos em 2021 e podemos falar em esperança, sendo que ainda há um enorme trabalho de raiz a ser feito.
O que faz tem consequências nas gerações futuras. Que obstáculos quer que deixem de existir para as meninas que vão ser líderes no futuro?
Faço parte do grupo de pessoas que quer contribuir para o empoderamento da nova geração de mulheres líderes e liderança não é apenas estar numa determinada posição, é assumirmos a liderança das nossas próprias vidas e assumirmos que podemos e devemos concretizar todos aqueles sonhos que estamos dispostas a abraçar. Venho das montanhas de Santo Antão, em que só conhecia o mundo pelos livros, não tive televisão até aos 18 anos. Sou a personificação de que não existem impossíveis. Quando vim estudar, os meus pais não tinham dinheiro para me pagar a faculdade. Só vim porque consegui uma bolsa de estudos e agarrei aquela oportunidade. Hoje tenho um orgulho enorme ao olhar para o meu percurso com humildade e perceber que não existem impossíveis se estivermos dispostos a lutar pelos nossos sonhos. Recebo, diariamente, dezenas de mensagens de jovens mulheres que dizem que sou a inspiração delas, é por isso que partilho todos os meus feitos nas redes sociais, com o objetivo de inspirar outras mulheres. Há muitas mulheres que precisam de role models, precisam de ver que outras mulheres africanas estão a conseguir. Há 15 anos, quando vim para a faculdade, não tinha grandes role models, por isso é que me inspirava em grandes mulheres de sucesso da história. Hoje em dia já posso olhar à volta e ver várias, mas as meninas podem inspirar-se em comuns mortais como a Evódia, há muitas por aí. Ainda há uma geração enorme de jovens afrodescendentes em Portugal, com licenciaturas, mestrados e até doutoramentos, que me enviam mensagens a dizer que têm pânico de submeter uma candidatura no LinkedIn com medo de não serem selecionadas. Isto causa-me uma dor enorme no coração, o medo de tentar. Não tenham medo de tentar, um dia o sim aparece.