De Picha a Rabo de Peixe. De onde vêm os "estranhos" nomes de aldeias e vilas portuguesas?
A viajar por Portugal ou até no mapa, provavelmente já encontrou terras com nomes, no mínimo, curiosos. Muitos levam a risos dos visitantes, outros, a revoltas populares para rebatizar esses nomes. Era caso para tanto?
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Portugal está recheado de lendas, saber popular e de boas histórias. Muitas delas tornaram-se conteúdo de bons livros, outras acabaram por dar nome a localidades. Criatividade foi coisa que nunca faltou a quem as batizou e o mapa do país é exemplo disso mesmo. "A grande maioria nasceu de forma espontânea", é o que conta à TSF Vanessa Fidalgo, autora do mais recente livro "Porque se chama assim? A origem dos (estranhos) nomes de aldeias e vilas portuguesas".
Em pouco mais de 250 páginas, estão contadas as histórias por detrás do nome de quase 200 localidades. Muitas delas já eram conhecidas da autora, outras foram encontradas no mapa virtual, o Google Maps. Resultam, igualmente, de pesquisas para outros livros, nas quais foi sempre guardando textos que continham narrativas sobre nomes de terras. "Achei sempre muita piada aqueles textos e fui guardando a ideia dentro de mim, de um dia, eventualmente, poder fazer qualquer coisa com aquilo", conta a também jornalista da CMTV.
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E como é que, afinal, nasceram os nomes das terras? Muitas através de lendas, outras pela necessidade de os habitantes encontrarem explicações para pequenas coisas do dia-a-dia, mas "a grande maioria nasce de forma espontânea". A autora conta que geralmente "tem a ver com os habitantes do lugar ou com alguma atividade económica ou alguma característica da paisagem".
As narrativas criadas pelos habitantes, "muitas como forma de identificação de uma determinada cultura ou comunidade", é outras das explicações para a criação do nome de uma vila ou aldeia em Portugal. A sua origem é que se perde no tempo: "Vamos encontrando registos bastante antigos, mas não com alguma regularidade. Nós hoje em dia sabemos que os censos são feitos de dez em dez anos. Mas há alguns séculos nada disso existia. Há registos paroquiais, tratados, doações e isso ajuda-nos a perceber que numa determinada época aquele lugar tinha aquele nome. Mas não havia uma preocupação em registar."
Terras com direito a "bolinha", criadas sem o significado atual
No livro constam terras como Pega; Pau Gordo ou até o mais conhecido Picha. Tudo nomes que fazem parte de um capítulo que a autora intitulou de "Com direito a "bolinha"". Mas, não houve segundas intenções por parte de quem batizou essas terras: "No caso de Colo do Pito [concelho de Castro Daire, distrito de Viseu], foi uma evolução linguística, porque o nome deriva do romano Colum Pictum, que significaria Colina Pintada. Os romanos mal iriam imaginar no que é que isso, tantos séculos depois, iria significar."
Também sem saber no que iria significar mais tarde, nasceu Picha, uma aldeia com cerca de 50 habitantes, no concelho de Pedrógão Grande. "A Picha era um parafuso de metal ou prego que permitia (...) colocar um recipiente que recolhe a resina à árvore", explica a jornalista, acrescentando que "a população brinca com o nome, têm até um espírito bem-humorado para brincar com a situação".
Mas nem sempre foi assim. Em vários pontos do país, foram vários os "movimentos civis e abaixo-assinados", feitos pelos próprios habitantes, que pretendiam mudar o nome de determinada terra, sendo que "nuns casos foi conseguido, noutros nem tanto".
Houve sucesso na mudança para a atual aldeia de Nossa Senhora da Glória, que fica no concelho de Torres Vedras, localidade que se chegou a chamar de Panasqueiro. Era o nome pelo qual era conhecida devido ao cultivo de uma erva "muito comum que cresce na região, o panasco". Acontece que em 1937, José Maria Baltazar "promoveu um abaixo-assinado" que acabou na alteração do nome para um "mais digerível", reforça a autora. A terra Nossa Senhora da Glória dura até hoje.
Insucesso foi no que resultou a tentativa, já que não passou disso mesmo, de mudar o nome da aldeia de "Picha" para "Nossa Senhora do Carmo" a santa padroeira. Também se fez um abaixo-assinado, mas "teve muito pouca adesão". A jornalista não tem dúvidas de isto mostra "que os pichenses convivem bem com este nome".
Há também um outro caso curioso, mas que acabou, igualmente, no fracasso: o de Beco do Olho de Cu, um lugar em Gouveia, no distrito da Guarda. A Junta de Freguesia quis retirar a palavra "Cu" do nome e substituiu a placa da rua, que dava nome à localidade, para uma outra já sem essa palavra. "A verdade, é que por várias vezes, houve quem durante a noite fosse lá acrescentar a palavra que tinha sido omitida", conta Vanessa Fidalgo. A Junta à primeira não cedeu e voltou a pôr tudo como estava, os habitantes responderam na mesma moeda e "depois do tapa e destapa" acabou por ficar com o nome original: Beco do Olho de Cu. A autora confessa: "Acho que é o nome mais hilariante de todo este livro".
Em muitos casos, "a lenda é que poderá nascer do nome do lugar"
Muitas terras surgiram também por lendas, como foram as localidades de Paz e Achada, no concelho de Mafra. A origem está numa zanga entre o rei D. João V e a sua esposa, Mariana de Áustria. A então rainha de Espanha "deixou o Palácio Nacional de Mafra muito zangada e fugiu". Perante o inesperado, o "rei, apaixonado, foi atrás dela e encontrou-a num sítio que não tinha até então designação, mas, como foi lá que ele reencontrou a sua amada", deu esse nome [Achada] à terra. "A rainha continuava zangada e deve ter continuado a discutir com ele, de maneira que mais à frente é que fizeram as pazes". Já estariam numa outra terra, igualmente sem nome, e o rei decidiu batizá-la de Paz, como forma de marcar a reconciliação conjugal.
Outras localidades surgiram envolvendo "um copo a mais". "Purgatório, no Algarve, era um lugar que tinha apenas uma tasquinha, pouco mais, onde os homens costumavam passar aos domingos (...) para beber o seu copito. Quando chegavam a casa, ao final do dia, já bastante entornados e implicavam com as mulheres. Foram elas que colocaram a designação ao lugar, dizendo que aquele sítio 'é o nosso Purgatório'".
Um pouco mais a noite, no Alentejo, está Cuba. A vila do distrito de Beja é tantas vezes utilizada para dizer que já se foi ao país da América Latina, quando, afinal, nem sequer se saiu de Portugal. E a explicação para a origem do nome, não está relacionada com o país outrora liderado por Fidel Castro, muito menos com o comunismo. Vanessa Fidalgo aponta duas explicações para o nome da terra: "D. Sancho I, quando por lá passou, teria encontrado uma série de cubas de vinho. A outra explicação remete para a linguística, alegadamente, seria uma derivação do nome árabe de Coba".
Na lista de nomes que constam no livro está também Água de Todo o Ano, em Ponte de Sor, que costuma ter vários períodos de seca, Taberna Seca, em Castelo Branco, que surgiu por reclamações por parte de clientes que viram a bebida acabar e ainda Maljoga, também em Castelo Branco, que tem origem num jogo de cartas, na qual um dos intervenientes, não teria mesmo jeito para jogar.
Seja com que origem for, são terras, muitas delas, de um interior de Portugal já bastante desertificado e em risco de desapareceram. Mas, a autora acredita que "enquanto existirem ruínas, vestígios, da ocupação humana, o nome prevalece". Para Vanessa Fidalgo "o mais grave não é o nome desaparecer, mas sim as pessoas".
