Delação premiada: "regime equilibrado" é possível ou Portugal seria "convertido num país de dezenas de milhares de bufos"?
A líder da Transparência Internacional defende que "denunciar com proveito próprio é um negócio que não pode existir" e afasta um cenário de "faroeste". Menezes Leitão alerta igualmente que nestes casos é denunciada uma "pessoa com baixos estatutos numa rede criminosa", que acaba por servir como "bode expiatório"
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O tema da delação premiada subiu a debate no Fórum TSF esta quinta-feira, após o procurador-geral da República ter defendido a sua criação no ordenamento jurídico português para ajudar no combate à corrupção. As opiniões dividem-se entre aqueles que assumem a falta de "confiança" no sistema judicial para "manusear estes instrumentos" e aqueles que acreditam que, sem "empolgar de forma relevante" quem esteve envolvido na prática de crimes, então o Estado também não poderá "contar com a sua colaboração".
A delação premiada é um instrumento adotado em países como o Brasil que permite aos investigados ou acusados num processo penal receberem um benefício em troca da sua colaboração com a justiça.
Na segunda-feira, Dia Internacional contra a Corrupção, o procurador-geral da República disse que os mecanismos de deteção da corrupção, embora longe da perfeição, estão cada vez mais eficazes. Amadeu Guerra defendeu que "essa eficácia pode aumentar se aqueles que praticaram um crime de corrupção, que ainda não foi detetado, optarem por assumir um comportamento reparador ou colaborante, comunicando a sua prática ao Ministério Público".
Embora esta não seja "uma situação habitual, nem a sociedade está preparada para isso", o procurador-geral da República admitiu ser desejável "uma inflexão nesse sentido". O Governo já anunciou, entretanto, que vai criar um grupo de trabalho para estudar esta proposta.
Eurico Reis, juiz desembargador jubilado, afirma à TSF que não tem confiança suficiente na Justiça para que possa ser adotada a delação premiada e alerta para os perigos que decorrem da sua utilização.
"O grande problema aqui é que a estrutura do sistema judiciário penal e do sistema judicial não me dá - e estou a assumir a gravidade das palavras que estou a dizer - confiança para que estes instrumentos, que são também um pouco perigosos, sejam manuseados com o cuidado que deve ser tido e que se destina a combater realmente a criminalidade", sublinha.
O juiz ressalva, contudo, que não "diaboliza certos instrumentos que estão numa área um pouco cinzenta" e reconhece que existe um certo tipo de crimes "que tem mesmo de ser combatido desta forma", dando como exemplo o terrorismo, o crime organizado violento e o tráfico de seres humanos. Estas são violações que têm de ser combatidas, considera, com meios "que não são propriamente angelicais".
"Agora, para que isso aconteça, é preciso que exista um controlo muito sério sobre aqueles a quem é concedido esse poder", salienta.
A presidente da Transparência Internacional, Margarida Mano, entende mesmo que a delação premiada não pode ser o caminho da Justiça, até porque "denunciar a corrupção é um dever de cidadania". Já "denunciar com proveito próprio é um negócio que não pode existir".
"Tem de haver investigações e a investigação tem de provar que crimes foram cometidos e como foram cometidos. Haverá certamente situações de ajudas às investigações, mas a investigação tem de funcionar e tem de funcionar bem e de acordo com os princípios do Estado de direito", explica.
Margarida Mano aponta que esta é uma figura que não existe na Europa e esclarece o que acontece nos países que já aderiram a este regime.
"Benefícios para si próprio por denunciar os outros é um regime que existe nos Estados Unidos e no Brasil - eu não conheço os números exatos, mas é possível conhecê-los e há quem conheça bem e possa ajudar de forma séria neste debate -, mas a verdade é que, nos Estados Unidos, mais de 90% das condenações são por delação. É esse o nosso ideal, é um faroeste em Portugal?", questiona.
Ouvido também no Fórum TSF, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é cauteloso em relação a este tema, mas acredita que a delação premiada pode ser útil em alguns casos.
"Esses mecanismos de colaboração premiada teriam de ser criados, instituídos e aplicados com todas as cautelas, obviamente. Fará sentido na medida em que precisamos, por vezes, para descobrir determinados fenómenos de corrupção dessa colaboração e os seus contornos", argumenta.
Paulo Lona acrescenta ainda que, se estes mecanismos de premiação, redução ou até mesmo de dispensa de pena não forem criados, para "empolgar de forma relevante", então o Estado também não poderá "contar com a colaboração dessas pessoas". Apela por isso a um "regime que seja equilibrado".
O ex-bastonário da Ordem dos Advogados e professor catedrático da Universidade de Lisboa Menezes Leitão também discorda da opinião do procurador-geral da República e defende que esta é uma medida que vai "totalmente contra a corrente do que deve ser feito em termos de corrupção".
"Quando existe a delação premiada, o que se sucede é que alguém relata uma pessoa com baixos estatutos numa rede criminosa e essa pessoa acaba por funcionar como bode expiatório e, depois, apresenta-se como resultado contra a corrupção e não há resultado nenhum. Os que são os principais mentores da rede ficam de fora", vinca.
Esta posição é também defendida pelo advogado Garcia Pereira que entende que "premiar alguém que decide denunciar outros - não porque esteja verdadeiramente arrependido, mas porque, por exemplo, quer salvar a pele ou quer eliminar um concorrente - é completamente ineficaz".
"Quando se faz batota na justiça e, designadamente, na justiça criminal, a comunidade desconfia, e bem, das decisões que sejam tomadas. Esta lógica não diz exatamente o que é que se pretende", justifica.
O advogado afirma mesmo que este regime é "um erro completo" e que não se pode assumir que, quem decide denunciar outra pessoa, "possa ser safo de qualquer punição criminal".
"Não traz maior eficácia à investigação e, pelo contrário, pode colocar - e é suscetível colocar contra os nossos princípios fundamentais - a investigação refém de atos que nenhuma credibilidade, do ponto de vista da autenticidade dessas denúncias, pode merecer", denuncia.
Garcia Pereira assegura que o sistema já tem "instrumentos suficientes", pelo que o problema da corrupção é que não tem sido atacado a "montante", mas apenas na "foz do rio".
"Admitir a delação premiada como ela está pensada noutro sistema jurídico que não tem nada que ver com o nosso, não só não é útil e eficiente, como coloca a investigação refém de situações como aquelas que eu descrevi. Em suma, não precisamos de nos converter num país de dezenas de milhares de bufos, grande parte deles movidos pelos mais sórdidos e baixos instintos, para combatermos de forma decisiva e eficazmente fenómenos gravíssimos e que devem merecer, de facto, um combate político, social, económico e jurídico como o da corrupção", salienta.
