
Dora Pires/TSF
No Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa há um Diário que ajuda a fazer de conta que a vida não mudou assim tanto. Obrigados a ficar longe, utentes e terapeutas partilham há meses um projeto que põe os dias nos eixos, ajuda a acalmar ansiedades e, curiosamente, até está a reforçar os afetos.
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Agora o atelier de pintura tem esboços de quadros a meio, o espaço de cerâmica tem peças por cozer, os corredores têm muito espaço, mas deixam ouvir o eco dos nossos próprios passos. Como todos, utentes e terapeutas ficaram reféns da pandemia. Só não se conformaram.
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Unidade de Terapia Ocupacional é o nome oficial na parede cor-de-rosa desta antiga enfermaria do antigo Hospital Júlio de Matos. "É um ponto de encontro", "ou melhor...era", corrigem Maria Betânia Pires e Ana Lígia Franganito, ambas terapeutas do centro hospitalar e ambas criadoras do Diário de Quarentena. "Para resistirmos ao isolamento e não nos ficarmos apenas pelo telefonema...".
Nasceu das ausências o Diário, todas as semanas ou de quinze em quinze dias apresenta-se como um guia possível para preencher cada dia. Tem sugestões de atividades, orientações para as rotinas, dicas de como planear as tarefas essenciais. E também tarefas, jogos, desafios que se podem partilhar mesmo de longe.
As terapeutas chamaram dois utentes, a Ana e o José, e excecionalmente voltaram por momentos à Unidade de Terapia. Juntamo-nos na Biblioteca. "Eu só faço quando tenho vontade, para mim é facultativo", conta José.
Ana fala mais "senti-me menos sozinha. À segunda-feira então, eu que sou pequenina, agigantava-me no dia do telefonema da terapeuta. Falava dos meus medos, das minhas ansiedades... acho que enquanto algumas pessoas se afastaram, nós até reforçamos os laços afetivos".
Ana aprecia particularmente o já habitual remate do telefonema: "a Ana ligue se precisar de alguma coisa e tem o meu telefone pessoal".
O último Diário vai de 14 de dezembro a 4 de janeiro. Na parte do ano novo pede a cada um que escreva num pedaço de papel, idealmente para amarrotar e deitar fora, tudo o que não quer levar para 2021. Tanta coisa que é difícil escolher? Não, responde José "como estudante de História aprendi que devemos aceitar tudo o que faz parte da nossa vida. Não devemos é ficar presos ao passado. Portanto, reciclava tudo!".
Maria Betânia destaca na edição Festividades a receita de rabanadas "se todos os praticantes do Diário fizerem esta receita na véspera de Natal, exatamente na mesma altura, torna-se um fator de união, isso é muito bonito".
A ideia já saiu destes muros, o Diário está a ser usado noutros hospitais e por pessoas que não têm queixas de problemas mentais. "A pandemia afetou-nos a todos. De uma forma ou de outra toda a gente ficou à nora. Tenho colegas que estão há meses a trabalhar em casa, nem conseguem distinguir já trabalho de lazer. É bem vinda uma ajuda para reorganizar os dias", afirma Ana Lídia.
E qualquer pessoa pode usar o Diário? Claro: é só fazer clique!