Do bullying em criança ao bodyshamig. As marcas que ficam em quem é estigmatizado por ser "gordo"
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Clarisse Pires lida há anos com crianças obesas que sentem na pele a "marginalização por serem gordas". A enfermeira de 59 anos trabalhou toda a vida em saúde infantil e sabe reconhecer as primeiras sombras na face da tristeza, os braços abatidos a pender para o chão. A revolta, também.
"Mais do que ninguém, eu percebo o que tu sentes", diz aos mais novos que acabam as aulas e não ficam a socializar com os colegas, porque não são aceites. Não sofreu bullying nem foi discriminada em criança pelo "excesso de peso" que começou a manifestar-se aos nove anos. A ofensa surgiu de quem menos esperava: "Senti discriminação, podemos chamar bullying, de técnicos de saúde."
Logo à entrada para o curso de enfermagem, no acesso à escola escolhida, esbarrou com os sonhos na porta. Apesar de ter passado em todos os testes psicotécnicos e na fase de entrevista, por ter "excesso de peso", não foi admitida. "Na altura, questionei o médico: 'Por que é que eu, tendo 74 ou 75 kg, mexendo-me para qualquer exercício e fazendo tudo, não posso ser enfermeira?' Ele voltou-se para mim e disse: 'Eu é que entendo se as enfermeiras vão ser gordas ou não.'"
Foi a primeira vez em que se sentiu, como descreve, "vítima" do seu peso. O médico tinha "a faca e o queijo na mão", recapitula. "Eu não fui admitida porque tinha excesso de peso. O senhor não gostava de enfermeiras gordas, e disse que eu não tinha condições..."
Apesar do duro golpe, a vocação não era força de se conter. No ano seguinte, Clarisse Pires concorreu a uma escola privada e entrou, com facilidade, e com o exato peso do ano anterior. "Era uma jovem com excesso de peso, sempre tive", salienta, desassombrada. Tirou o curso e formou-se, já lá vão 32 anos. Trabalhou em unidades de cuidados intensivos e na pediatria, e, há 18 anos, passou para os cuidados de saúde primários.
Mas um episódio semelhante voltou a acontecer-lhe anos mais tarde. "Já era uma super obesa, estava no início da obesidade mórbida, já na casa dos três dígitos. Tinha 114, 115 kg." As "n" dietas surtiam efeito por um curto período de tempo e não vingavam, com continuidade, na vida quotidiana. "Tinha perdido peso, mas depois voltava tudo ao mesmo", conta Clarisse Pires.
'Quer continuar a ser uma vaca gorda?'
Aos 33 anos, foi encaminhada para uma consulta de endocrinologia, em Lisboa, passou a cumprir um plano alimentar e a medicação prescrita pelo médico. Embateu, no entanto, na dificuldade com o seguimento à risca do plano de exercícios. Clarisse Pires tinha perdido 10 kg, e partilhou com o médico que tinha respeitado a dieta, mas que o trabalho em duas instituições e o cuidado com os dois filhos pequenos lhe tinham retirado o tempo necessário para exercitar-se. "Não consigo fazer dois períodos de marcha, como foi proposto", admitiu. "De qualquer das maneiras, já consegui perder estes 'quilos'."
O que aconteceu em seguida nunca mais deixou de atormentá-la. "Ele virou-se para mim e disse-me, assim, muito depressa: 'Quer continuar a ser uma vaca gorda? Se quer continuar a ser uma vaca gorda, continue a fazer as coisas à sua maneira.'" Clarisse Pires deixou o especialista sem resposta, virou-lhe as costas e saiu para não mais voltar.
"Não estava bem com o meu corpo e ainda me tornei mais fechada sobre mim mesma", rememora. "Quem é que procuramos para nos ajudar? Os médicos. Tentei ir pelo caminho certo. Foi discriminada, fui humilhada..." A mágoa alastrou como uma hemorragia. Os sentimentos depressivos ganharam volume, a culpa - "de ser assim, por estar assim" - inundou-a. O corpo de Clarisse Pires também aumentou. Chegou a pesar 136 kg, até resolver inverter o passo à doença, optar por uma cirurgia de obesidade e mudar a sua vida.
Perdeu 70 kg, fez cirurgias reconstrutivas e alterou a relação com o seu corpo. "Estou satisfeita, aprendi a viver com ele. Estou bem comigo mesma e tento ajudar outros a estarem bem com eles mesmos." É o que faz a enfermeira de Setúbal: oferece apoio aos mais novos, que, não sabendo compreender por que são magoados, "ou usam a agressividade ou põem-se à margem".
"Desde sempre se achou que o gordo é gordo porque quer. A minha postura perante o gordo é de aceitação e de entender."
Estatísticas que moem e matam
A incompreensão, no entanto, tem sido prática generalizada, e aflora sob a forma de insultos, alcunhas e comentários depreciativos. A Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil (APCOI) estima que 65% das crianças dos seis aos 14 anos com obesidade em Portugal sofram de bullying na escola.
Em 2020, uma sondagem realizada pela APCOI revelou que a maioria dos pais e encarregados de educação inquiridos, com crianças com excesso de peso, já lidaram com pelo menos um episódio de bullying escolar relacionado com o peso da criança, nos últimos dois anos letivos. Com a pandemia, uma em cada cinco crianças com obesidade foi vítima pela primeira vez de um ataque de cyberbullying relacionado com o seu peso, nas redes sociais.
"As crianças vítimas de bullying têm tendência para se isolarem, para fugirem dos colegas e da escola. Muitas não dizem aos pais, sofrem em silêncio." É Mário Silva, presidente da APCOI, que o sublinha, frisando que, de uma forma geral, as crianças não querem preocupar os adultos ou rejeitam reviver os episódios, o que pode levar, no fim da linha, a desfechos "muitas vezes dramáticos".
Carlos Oliveira, presidente da Associação de Doentes Obesos e Ex-obesos de Portugal (Adexo), defende que "é preciso que os pais e os professores estejam atentos", até porque a obesidade não é uma doença silenciosa, mas sim uma patologia crónica que se faz notar visualmente. "Nas atividades físicas na escola, quem é que escolhem para a equipa?"
Olhar aos "sinais que as crianças vão dando de que não gostam de ir à escola" é imperativo, garante o responsável. A somar-se ao "gozo" na escola, o estigma familiar e, mais tarde, a discriminação no mercado de trabalho "deixam marcas para a vida toda, marcas muito profundas que por vezes levam ao suicídio".
Também Mário Silva lembra que a "diferença" face ao que é normativo é muitas vezes alvo de intolerância. No caso da sexualidade, por exemplo, o traço identitário atacado pode ser do desconhecimento dos pais. A obesidade, não. Mas nem sempre o problema é saber: muitos pais não sabem como ultrapassar e ajudar os filhos, e a Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil quer desmontar a estigmatização em torno da procura de ajuda psicológica. "Não deixem para amanhã. Procurem ajuda de um profissional hoje, para que a criança se sinta empoderada para lidar com a situação."
E quando o bullying vem dos pais?
Clarisse Pires assume que nem sempre a família ajuda. "Muitas vezes os pais são os primeiros a rotularem, a fazerem bullying com a criança, sem tomarem consciência disso. É o 'badochas', é o 'gordinho', é o 'fofuras'."
O problema não reside exclusivamente na criança, é, em vez disso, extensível a toda a família, e muitas vezes tem causas multifatoriais. "A criança não pode ver a dieta alimentar como um castigo. Tem de ser a família toda a comer saudavelmente." Estabelecer um termo de comparação com o "irmão" que está magro e não precisa é dizer à criança "que está gorda porque quer e porque come demais", explica Clarisse Pires. "Quem é que faz as compras lá em casa, quem é que prepara a sopa? Não é a criança..."
Se tantas crianças são discriminadas pela diferença, os pais devem interrogar-se se os seus filhos contribuem para a estatística. "Temos a tendência, enquanto sociedade, de culpabilizar os pais. Andamos sempre atrás dos culpados, não se trata de apontarmos armas uns aos outros." Mário Silva aponta raízes profundas ao fenómeno: o bullying existe "porque nós vivemos numa sociedade preconceituosa".
"O bullying não é independente, é uma consequência dos estigmas que são transmitidos pela comunicação social e pelas pessoas", aponta. "Os pais, os filhos, todos, têm de aprender a colocar-se no papel do outro." Conhecer as marcas psicológicas pode ajudar a aprofundar a empatia: a maioria das vítimas de bullying tende a sofrer de ansiedade generalizada, depressão ou stress pós-traumático, a segunda maior doença psiquiátrica em Portugal. Com as redes sociais, o problema agravou-se, porque nem em casa começa a paz. O ciberbullying veio tirar à criança o seu porto de abrigo. Em "O Esconderijo", o livro da Adexo e da APCOI, é tratada com sensibilidade a relação entre o bullying escolar e a obesidade infantil. Para que o "esconderijo" do isolamento venha a ver a luz do dia.
