Retalhos da vida de um médico que toca piano e adora ópera. E de uma inspetora do SEF, que foi a primeira mulher a dirigir aquele serviço, sem jeito para dar música. António Maia Gonçalves e Luísa Maia Gonçalves são os dois irmãos mais novo do clã. Com muitas aventuras para partilhar
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Com os dois irmãos por perto havia sempre festa, tanto assim que chegaram a fazer uma discoteca dentro de casa. Luísa e António são os mais novos de quatro irmãos, e cedo se habituaram a mudar de país, acompanhando as missões do pai, o General Manuel Maia Gonçalves. Ela nasce em Lisboa, ele em Moçambique. Luísa segue Direito, António escolhe a medicina. Luísa Gonçalves foi diretora do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - durante aproximadamente dois anos, nem tanto, saiu em outubro de 2017, está atualmente no Tribunal Constitucional. António Maia Gonçalves exerce no Hospital de Braga, onde dirige a área da formação e onde é o responsável pela unidade de Cuidados Intensivos da Casa de Saúde da Boavista no Porto.
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Bem-comportados, mas muito irrequietos. É uma frase que sublinho, de algumas notas enviadas sobre os vossos percursos. Eram daquelas crianças com bichos carpinteiros?
Eu acho que a minha irmã era pior. Eu comportava-me sempre bem.
Sim, éramos bastante irrequietos. O que eu diria irrequietos no sentido de termos o que, hoje em dia, se chama ter bastante vida. Os quatro aliás, nós os dois em particular.
Aquelas coisas do costume, os acidentes de bicicleta, sei lá. Eu uma vez cai da claraboia abaixo. Eu parti o pescoço.
Por uma claraboia que subia a um telhado, portanto?
Sim, sim.
Mas, para quê? Para ver qualquer coisa?
Por desporto. Para ver como era.
Era um bocado Maria rapaz.
Também cresceu no meio de três rapazes, não é?
Mas era assim esses acidentes de percurso, simpáticos. Nada assim de muito grave, creio eu. Assaltámos a copa do colégio, algumas vezes. Assim umas coisas...
Assaltaram para?
Para comer. Os chouriços e os queijos que haviam lá guardados. Tínhamos assim uns acidentes...
Brincadeiras.
Brincavam na rua?
Brincávamos na rua. Eram outros tempos.
Era, de facto, uma época em que isso era possível. Brincávamos na rua.
Andávamos de bicicleta na praceta. No outro dia, quando mudei de casa, havia não sei quantas bicicletas lá em casa. No meu tempo lembro-me que no Natal deram-nos uma bicicleta para os quatro. Ficámos todos contentes. Portanto aquilo não era assim...
E chegou.
A abundância...
E chegou. Ao fim de uns meses já ninguém andava de bicicleta.
Lembro-me que parti os dentes por tua causa, a andar de bicicleta. Fechei os olhos e disse "dirige-me" e tu não disseste nada e eu fui contra um poste.
E eu comecei-me a rir.
Parti os dentes todos da frente. Nunca mais sobrevivi a esse desgosto. Era uma chopper. Tinha assim um banco esquisito...
Azul.
Lembro-me perfeitamente. Lembro-me da alegria que foi no dia 24 à noite quando recebemos aquela chopper.
Que idade tinham?
Eu tinha.. lembro-me que tinha oito anos, foi na altura do 25 de Abril, depois ele esteve toda colada com autocolantes do MFA. Lembro-me dela toda coladinha com autocolantes do MFA. É daquelas coisas que, na altura, entusiasmavam toda a gente. Mas, portanto, foi em 74, eu tinha oito, a minha irmã já tinha ... muito mais velha que eu
Mentira.
Nove ou dez, por aí.
Mas a diferença...
Ela é mais velha.
Isso eu sei. Mas, para os outros irmãos. Eu sei não é porque se note..
Eu sou um cavalheiro.
Não foi isso que eu quis dizer. Mas diriam que a relação que existe entre os dois tem uma cumplicidade maior em relação aos outros dois irmãos ou nem por isso?
Eu acho que a minha irmã é cúmplice com todos. Faz um bocadinho de base...
Por ser a rapariga?
Por ser a rapariga. E por ter esta... ela foi comandante da polícia, não é? Tinha pistola e tudo...
Eu acho que o tipo de vida que nós tivemos e a forma como fomos educados fez com que, de facto, tivéssemos um conceito de família muito forte e muito unido. E, portanto, esta cumplicidade existe e somos muitos amigos entre todos. Talvez por sermos os mais novos, e por uma questão de personalidade, esta cumplicidade entre nós os dois é talvez um pouco mais forte ainda.
Pessoas mais vivaças, mais dadas à partilha?
E tivemos muitos percursos em comum, muitos amigos em comum..
Depois até o António namorava com umas amigas ou namoriscava...
As que deixavam. Eu andava num colégio interno, só de homens e, portanto, ao fim de semana...
No Colégio Militar, aqui pertíssimo. É uma das poucas coisas que não têm em comum. É a frequência do Colégio Militar.
Sim, sim. Embora eu tenha andado numa série de colégios, variados, devido à mudança de sítio, desde o Colégio Inglês, colégio de freiras, colégios públicos. Portanto, consoante o sítio por onde andávamos.
E a sua experiência no Colégio Militar - o António nasce em Moçambique...
Mas eu não me lembro. Eu vim com três meses.
Ah... veio muito cedo.
Tenho que lá voltar.
Nunca lá voltou?
Não, nunca lá voltei. Tenho de lá voltar. É uma das coisas que gostaria de fazer ainda, mas... portanto, vinha para o colégio mas, ao fim de semana, ia para casa, em Cascais.
Era a base familiar e não a base militar, porque isso é outra conversa..
Há uma coisa que é assim. Se calhar é muito machista e não se devia dizer, mas, para um homem a casa, a casa, a casa é sempre a casa da mãe. A gente quando vem - as mulheres não gostam de ouvir isto - mas, para nós a casa é a casa da mãe. Que é onde esquecemos, onde temos as memórias de infância, onde temos os nossos amigos de infância, onde temos os irmãos de sempre, onde temos os objetos, tudo isso. portanto, a casa é muito a casa da mãe, até porque, hoje em dia, já não há aquele conceito da casa da família.
As famílias estão diferentes...
As famílias são diferentes. E a nossa casa ainda é a casa de sempre. Morámos lá desde 71...
Diz moramos, no plural. Embora o António more
Estou um bocadinho desterrado. Estou emigrado.
More no Porto.
No Porto. E estou bem no Porto. Mas isto da minha irmã, ela faz um bocadinho a ponte de todos. Temos uma relação assim...aparentemente estamos agora aqui os dois.. mas ela é que liga a todos. Ela é que faz estas coisas todas. Que nós somos homens e não fazemos essas coisas todas. A minha irmã liga por ligar. Para saber, para dizer que está e que tem saudades, aquelas coisas... a todos. Nós não fazemos isso
Porque ela faz...
Porque ela faz. Temos esse privilégio de contar com ela.
Não, não. De facto temos a noção incorporada desde sempre de que, se um de nós estiver algures na Cochinchina e precisar seja do que for, qualquer um acorre. Isso foi desde sempre assim.
Na Sicília também há umas pessoas assim, não é?
Será o clã Maia Gonçalves?
Não é um clã. Estivemos sempre abertos
A que entrasse mais gente.
Vem uma sobrinha neta a caminho.
Na Sicília também há abertura para entrar mais gente. Desaparecem é muitos, pelo caminho.
Nós ainda não. Mas ela tinha pistola...
Já é a segunda vez que fala da pistola. Não há fumo sem fogo.
Fiquei chocado por a minha irmã andar com uma pistola. Fiquei chocado.
Faz parte das funções, da carreira em si, não tem nada por demais. É apenas uma brincadeira.
Isso foi ainda no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras? Decorre dessa atividade como inspetora?
Sim, sim. Faz parte da carreira de inspetora. Está descansado era mesmo só no exercício das funções.
O exemplo do vosso pai, já falecido, é como... uma estrela que vos foi guiando, pela vida fora. O exemplo. Mas, a carreira militar foi uma opção apenas para o irmão mais velho. Encontram alguma explicação ou calhou assim?
É assim o mais velho era piloto, portanto, ele gostava essencialmente era de voar. Eram outros tempos. Havia uma missão e um espírito de missão e umas coisas que hoje em dia é mais difícil. Eu acho que, de uma maneira geral.
A carreira militar não é sedutora...
Não é sedutora de toda.
Ponderou isso quando escolheu o seu caminho? O doutor António Maia Gonçalves? Aqui doutor com toda a propriedade.
Não, não. António só. Mas eu ...
É assim que os seus doentes o tratam? Já agora? É António ou aí há uma relação mais formal?
Depende. No hospital é António. Na Casa de Saúde da Boavista chamam-me Maia Gonçalves, não sei bem porquê. Maia Gonçalves parece até um nome mais castrense, não é? Mais militar.
Tem outro pedigree.
Sim, um bocadinho. Mas, eu acho que a carreira militar é pouco sedutora, embora eu conheça camaradas meus, do Colégio Militar, que são oficiais de carreira e por quem tenho estima e reconheço muito valor. Qualquer aluno do Colégio Militar é um testemunho da legitimidade das Forças Armadas. Porque aprendemos valores que aquela instituição defende e temos muito respeito por isso. Agora, que seja sedutora para um jovem... que termina o liceu, não creio que seja.
E quando frequentou o Colégio Militar - fez o ensino todo lá?
Fiz, dos 10 aos 18. Até ao 12º.
Era um corrupio de fardas lá em casa. Para limpar e para polir. Os botõezinhos...
Quem polia os botõezinhos eramos nós. Quem suturava as fardas quando se descosiam eramos nós. Depois quando ... eu ainda estava no Colégio Militar o outro estava na Academia da Força Aérea... o meu pai tinha as fardas.. portanto aquilo havia muita farda
E mais tarde eu também levei... sim, eu usava bata em determinadas alturas, em determinados colégios usei uniforme e depois bata também. Em Macau usava bata. No liceu usava-se bata.
Mas, aí ...
Era mais fácil.
Que a manutenção é mais simples.
Sim, sim.. Mas, nos colégios usei uniforme também.
Havia aquilo a que a gente chamava o enxoval. No início do ano letivo tínhamos de ter o enxoval pronto, para nos matricularmos. E o enxoval tinha aquelas coisas todas iguais. Tipo 20 pares de cuecas, 20 pares de meias, 50 camisas, aquelas coisas todas. E tinha de estar tudo prontinho para nos podermos inscrever. Era o enxoval. Que até havia umas sacas, não sei se te lembras?
Sim, umas sacas de pano.
Azuis, onde iam aquelas coisas dos enxovais. Chegámos a estar os três juntos no Colégio Militar. Portanto... eram fardas que nunca mais acabavam. Eu acho que quem tratava mais disso até era a avó. A avó Mariana.
E o que é que o António tirou dessa passagem, dessa longa passagem, não é? É parte de uma vida, pelo Colégio Militar, para a sua vida adulta?
Acho que é muito melhor ter sido do que ser. Ser eu tenho alguma dificuldade com a disciplina. Tenho problemas com a autoridade rodoviária, que me complica muito a vida, muitas vezes, tenho alguns problemas com a autoridade...
Tem muitas multas?
Sim, tenho alguns problemas com a autoridade. E, portanto, isso no Colégio Militar isso era complicado. As pessoas que tinham algum problema com a autoridade. Mas... tinha algum problema com o cortar o cabelo. Era uma chatice, a gente por a mão na testa
Posso dizer que foi cortar o cabelo?
Era um trauma. Uma criança pegar na testa e ir até à nuca sem nenhum pelo caminho, já pensou? A gente chegava e rapavam-nos o cabelo. Até havia um barbeiro que era o Ramalho. E nós ponhamos 20 escudos - 20 escudos naquele tempo era uma fortuna - ponhamos os 20 escudos em cima da mesa para ele achar que era a gorjeta. Quando ele terminava de cortar o cabelo nós pegávamos nos 20 escudos e íamo-nos embora. Portanto, na segunda vez, a seguir, era uma carecada garantida. Portanto, do colégio, além das carecadas, tenho grande camaradagem. Há ali um espírito de camaradagem que se estabelece... veja, andámos juntos, miúdos dos 10 aos 18. Aqueles muros são altos, mas nós saltávamos os muros e fugíamos para a noite lisboeta, ali com 14 ou 15 anos. Aquilo depois ficamos amigos para a vida, ainda hoje... lembro-me que era médico há muito pouco tempo, no Hospital de São João, estamos a falar há 27 / 29 anos, e aparece-me um senhor velhinho, aflito, mas tinha uma barretina na lapela. Só por ter uma barretina do Colégio nós sentimos uma afinidade e há assim um espírito de ajuda e tal. Agora que é saudável... porque partilhámos todas aquelas experiências, no fundo, achamos que estamos a inventar novas experiências, não estamos nada. Todos os alunos do Colégio passam por aquilo, dos assaltos à copa, os assaltos à secção técnica.
As praxes que tanta polémica...
As praxes... haveria exageros. Eu nunca fui vítima de exageros e nunca os pratiquei. Mas eu acho que, globalmente, o ambiente era muito bom. Muito bom. Grande amizade, grande estima, que fica para a vida. Não tenho...
Tendo lá irmãos mais velhos também não estava mais protegido?
Não. Pelo contrário. Tu és irmão do não sei quantos? Não era assim. O tratamento é por números e não havia cá...
Qual era o seu número?
551.
Números e alcunhas.
E havia uma tentativa de apanharmos o número que tinha sido do nosso pai. E isso nunca foi possível porque quando qualquer um dos três chegou já havia...o número já estava ocupado.
E a sua alcunha era qual?
Nico.
Fraquinha...
Acho que era porque era um naco. Acho que era o nome que os meus irmãos me chamavam e ficou. Ai aquele é o Nico. E ficou o Nico.
Portanto era a alcunha lá de casa também, é isso?
Lá de casa e ficou.
Ah, não é muito original. Realmente. Portanto a criatividade ali no Colégio Militar, deixe-me que lhe diga...
Tenho que lhe dizer que havia grande criatividade, mas não posso reproduzir assim.
Alguma da criatividade
A criatividade que nós tínhamos. Havia o javardo, havia o ranço, havia uma data de ...
E falava-se disso lá em casa, à vontade, à mesa - quem diz à mesa diz sentado no sofá, na sala - com os pais ou havia...?
Havia um bocadinho até o habito de ... havia no Colégio Militar os que eram órfãos de pai, da guerra , do Ultramar, os que eram do Norte e não tinham possibilidade de ir a casa.. havia um pouco a ideia de ao fim de semana um ou outro trazíamos um ou dois colegas do Colégio para ficar o fim de semana connosco.
Passar o fim de semana com a família
E fala-se do colégio normalmente. Embora normalmente assunto... nós era mais a meninas e aquelas coisas...
A partir de uma determinada idade, imagino eu
Sim, não havia aquela...
Em casa falava-se de tudo.
Não havia aquela coisa "respeitinho!"?
Nada.
Para falar da instituição militar?
Não, pelo contrário.
Eu até tenho a ideia que o meu pai era muito pouco autoritário. É assustador dizer que o pai era general, pare que andava tudo a marchar lá em casa
Normalmente as pessoas associam à carreira militar e ao ser militar uma figura mais austera, mais disciplinadora...
Nada. Era exatamente o contrário. Conseguia impor autoridade sem ser autoritário. Isso é de facto uma arte.
Ele, de resto, era um apaixonado pelas artes.
Sem dúvida.
E tocava piano.
Maravilhosamente bem.
Com curso e tudo...
Não, não. sabendo tocar. Tocava com paixão e sabendo tocar. Aliás, depois dele falecer, a primeira vez que fui a um sítio, uma cerimónia e ouvi tocar piano... bem...não sabia que me afetava tanto. Caiam-me as lágrimas ao ouvir tocar piano porque não ... a última vez que tinha ouvido tocar piano daquela forma tinha sido o meu pai e
Voltou tudo?
Voltou tudo. É engraçado como uma pessoa reage sem esperar a determinados estímulos. Fiquei estupefacta porque não percebi o que me estava a acontecer, porque estava tão habituada a ouvir o meu pai a tocar desde sempre que me fez confusão voltar a ouvir daquela vez. Agora não. Mas, aquela música ao vivo tocou-me particularmente.
Lembra-se qual era a música? Era uma música que o seu pai tivesse tocado?
Clair de Lune talvez. Chopin.
O meu pai adorava. Mas é engraçado que nos passou esse amor pela música, que de facto, tinha. Desde pequenos que. Lembro-me, que as coisas que ouvíamos era o pai tocar. Eu toquei sempre pessimamente, o meu irmão não. Toca muito bem. Eu toquei sempre desgraçadamente, não tenho ouvido nenhum.
O meu pai uma vez... eu tinha para aí 13 ... somos ... cinco anos entre o mais novo e o mais velho.
Foi em escadinha, como se costuma dizer
Eu pareço bastante mais novo, mas.. eu lembro-me que
Na realidade é o mais novo. Esse título ninguém lho rouba.
É indiscutível. Mas, como somos seguidos discutimos muito. Tu pareces mais... não, a brincar.
Eu lembro-me que uma vez, estávamos todos a fumar, lembras-te?
Lembro.
Eu tinha 13 anos. Naquele tempo era assim. A miudagem para se afirmar dava umas passas.
E tossíamos que nem loucos, por isso bebíamos um copo de leite para amenizar
E o meu pai chega a casa um bocadinho mais cedo, eram umas seis da tarde e estávamos na sala de visitas a ouvir música aos altos berros - na altura ouvia-se LPs - era uma aparelhagem, Pionner ou coisa que o valha, e estávamos os quatro a fumar. O meu pai entrou, abriu a porta e viu os quatro filhos a fumar. E ficou parada um segundo, fechou a porta e foi-se embora. E nós ficámos aflitos, a abanar a janela. O que é que se tinha passado. passado uma hora ou duas ele voltou. Acho que não soube mesmo o que é que havia de fazer. E então disse "meus senhores fumamos todos cá em casa, a partir do ano mais ninguém fuma". E ele, que fumava desde miúdo, deixou de fumar. Nós fomos continuando.
Nós fomos continuando mas..
Às escondidas. Nunca mais em casa.
E, anos mais tarde, quando eu deixei de fumar, a imagem... quando resolvi deixar de fumar, a imagem que me veio foi exatamente essa, a do meu pai. E, pensei assim "se o meu pai fez isso eu não sou capaz de fazer isto? Pelos miúdos? Claro que sou".
Já o António ainda não conseguiu largar o hábito?
Eu não posso dizer isso em público, eu sou médico. Não posso andar aqui... não. fumo, fumo e os meus doentes sabem que eu fumo.
Errar é humano...
Mas fumo pouco. Fumo pouco porque durante as horas de serviço não se pode fumar. Mas tenho...
Quando é que lhe dá prazer fumar um cigarro?
À noite. À noite dá-me sempre prazer fumar. E há hora em que se tem tempo. à noite tarde, quando se acaba de trabalhar. tarde, quando se acaba de jantar, quando se está a ouvir uma música, quando se está a ver um filme, quando se está a responder aos emails e aquelas coisas, quando se está a escrever qualquer coisa. É quando dá mais vontade de fumar. Tenho a mesa junto a uma varanda, a mesa de trabalho, portanto... continuo a fumar às escondidas, como no tempo do Colégio Militar, basicamente.
Chegámos aqui vindo do piano e da música e do Colégio Militar, a Luísa - não frequentou o Colégio Militar, mas dizia-me lá fora que fez tudo o que os irmãos fizeram. Estamos a falar de quê?
Olhe, de tudo. O meu pai sempre me disse que "tu tens que fazer tudo o que os teus irmãos fazem e tens que ser competente profissionalmente naquilo que resolveres tirar e dar o teu melhor". Fiz mais balé que eles não fizeram, numa determinada idade.
Eu gostava, mas não me deixaram.
Pronto. E assim foi...
Nem nunca experimentou o tutu?
O que é que é o tutu?
Das bailarinas...
Não, não. Talvez no tango.
Fiz as mesmas viagens que eles fizeram, fui aos mesmos sítios que eles foram, fizemos as mesmas saídas, os mesmos espetáculos, tudo e mais alguma coisa. Mas, saiamos à noite todos..
Aliás, ela não podia sair se não saísse connosco. Vamos deixar as coisas com muita clareza.
Saindo com eles aquilo era ... quando tinham namoradas e eu ia junto...
Dava jeito.
Portanto, cobríamo-nos uns aos outros.
Dava jeito para quê? Para facilitar a saída?
Para facilitar a saída, para ver onde é que haveríamos de ir
Exato. Para as raparigas também saírem. Porque também ia a irmã...
Os tempos mudaram muito.
Portanto, para as raparigas também era bom, porque ia a irmã
Deixam sair com quem? Vou sair com a Luísa e com o irmão dela?
Exatamente.
Já percebi.
Eram tempos em que a cumplicidade a esse nível também contava muito. Depois houve a ida para a faculdade. Opção pelo curso em que de facto foi decisivo o empenho que todos nós tivemos que ter na faculdade, que o meu pai estimulou.
Porque é que escolheu Direito?
Eu sempre quis ir para Direito. Eu achava que ia mudar o mudo.
E tentou mudar algumas coisas no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras? E depois aquilo não correu bem, não é?
Vamos lá ver. Eu continuo a ser inspetora do meu serviço e continuarei a ser sempre até ao fim. É a minha carreira. Estou em comissão de serviço fora, mas é a minha carreira e tenho muito orgulho em ser inspetora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Houve de facto situações em que toda a direção - eu e os diretores adjuntos entendemos que não estavam reunidas as condições para fazermos o serviço
Que era necessário
Que era necessário. Que não estavam de todo reunidas. E, há limites, que por uma questão de integridade profissional e pessoal não devem ser ultrapassados nunca. E não há nada que justifique que sejam ultrapassados. Mesmo que se se goste e queira dar o melhor pelo serviço e pela missão que temos. E, portanto, entendemos que devíamos tomar uma posição comum e tomámos. Demitimo-nos. E essa posição comum foi tomada por mim e pelos meus diretores adjuntos na altura. E até hoje não nos arrependemos de a ter tomado. E penso que a tomámos com toda a convicção e a certeza de que tínhamos de a tomar na altura. E foi necessário.
A Luísa Gonçalves foi a primeira mulher a dirigir o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Há alguma relação entre o género e...
Eu quero crer que as pessoas são escolhidas
Ou, nalgum momento sentiu ou pressentiu que, pelo facto de ser mulher, atrapalhou ou embaraçou...
Não, de forma nenhuma. Eu quero crer, pelo menos fui educada assim, que uma pessoa vai fazendo a sua carreira pelo mérito e fui fazendo a minha carreira
Aliás, quando foi escolhida foi muito elogiada, até pelo sindicato. Pelo facto de ser mulher, por ser uma escolha de mérito. Pelo facto de ser, em termos partidário, também... ter independência
Eu quero crer que o mérito é o que deve contar mais do que tudo. E se ao mérito for aliado o facto de ser mulher.. torna a coisa mais interessante, obviamente. Senti sempre que havia um tratamento absolutamente igualitário.
Então o que é que lhe falta para mudar o mundo, Luísa?
Para mudar o mundo? Falta-me muito para mudar o mundo, mas, vai-se mudando o mundo no dia a dia, naquilo que é possível. E é essa a dimensão que nós temos de ter e não desistir. Mas, quando fui para Direito acreditava que se conseguia fazer muito mais. De uma só vez. Não se consegue muito mais de uma só vez mas consegue-se fazer algumas coisas. E, consegue-se fazer aquilo que se faz no dia a dia mantendo aqueles valores que me parecem importantes. E isso já é mudar um bocadinho. É o que se pode.
O António escolhe a medicina e também achou que, nessa escolha, também ajudava a mudar o mundo?
A minha irmã teve sempre muito mais maturidade que nós.
É uma coisa que costuma acontecer com as raparigas.
Isso é sexista. As expressões sexistas não sei se estão... mas acho que sim, acho ... eu quando tinha 18 anos era um miúdo. A minha ideia era engenharia ou medicina. Os meus pais eram os dois engenheiros - o meu pai era militar, mas era engenheiro civil, e...
E a mãe era engenheira química
E eles achavam um bocadinho que era inteligente e ia para engenheiro. Pronto. E eu achava que não era burro e resolvi ir para medicina. Foi um bocadinho assim. Mas, se eu tinha essa vocação... na altura havia uns filmes, ainda não havia estes que há agora. O médico último da minha família tinha sido o avô do meu pai, não havia nenhuma...
Tradição.
Mas, sinceramente, não fazia ideia nenhuma para o que queria ir. E já não sei quem é que falou comigo que disse que os médicos eram os feiticeiros da tribo. E tal, e pronto. Fui para medicina. Quando acabei a medicina também não fazia ideia nenhuma para que especialidade queria. Depois lá para os 40, quando atingi a maturidade, comecei a .. pronto... a fazer formação noutras áreas da medicina e ... mas gosto muito de ser médico. É uma profissão que é muito fácil realizarmo-nos porque fazemos... todos os dias conseguimos mudar e ajudar alguém e isso é muito compensador. E é muito estimulante. Profissionalmente temos de estudar. Na minha área temos de estudar.
Fazer permanentemente formação, não é?
Com alguma juventude, do ponto de vista cognitivo
Isso ajuda, claro
Ajuda muito. O cérebro é um musculo. Se nós o trabalharmos vamos tendo musculo, se não, vamos ficando sem ele. Eu acho que a medicina é uma maneira fácil, muito mais fácil do que ... a medicina, a enfermagem, os profissionais de saúde em geral. Têm uma maneiro muito mais fácil de se irem realizando do que os outros profissionais em geral porque é muito imediatista e consegue-se.. e depois também se vão estabelecendo laços com as pessoas. Portanto, os profissionais de saúde são uns privilegiados nesse sentido. Trabalha-se muito. Tem-se muito... os médicos mais privilegiados que os enfermeiros é uma classe muito mal tratadinha, mas
Está solidário com esta luta a que temos assistido?
As formas de luta não sei se sou solidário porque acho que é ... a greve é muito demorada, é muito complicado e os doentes sofrem grande prejuízo. Mas que os enfermeiros são muito maltratados são. É uma classe com formação superior com muito nível. São fundamentais nos cuidados aos doentes e que não tem sido, de maneira nenhuma, respeitada. Portanto eu acho que isto é um direito deles. Não sei se há, no Estado, condições financeiras para o fazer ou não, mas, pelo menos, para amenizar, seguramente que há. Este braço de ferro parece-me completamente descabido. E acho que o Governo tem obrigação, seguramente, de mudar essa atitude. Os médicos não fazemos muitas reivindicações salariais, porque embora não sejamos privilegiados vamos sendo ...
O António trabalha no privado e no público...
Certo. No público tenho um horário de 30 horas. Os cuidados intensivos é complicado. a partir de determinada altura nós passamos a ter menos saúde, menos capacidade... aquilo tem de se correr, tem de se fazer manobras de reanimação...
É médico internista e intensivista.. que para muitas pessoas... um medico intensivista ainda é um palavrão. É exatamente o quê?
A medicina tem uma especialidade clássica que são os clínicos gerais dos hospitais - embora os meus internistas não gostem desta designação, mas eu acho que explica muito bem o que é um internista - hoje em dia, no contexto da longevidade e das doenças crónicas cumulativas o médico que gere, o maestro da orquestra é o internista. Porque o doente não sofre só do coração, só dos pulmões, não é só diabético. Portanto, o médico consegue integrar e gerir isso tudo em cada doente é o internista.
E depois encaminhar para as especialidades, se for caso disso..
Às vezes encaminha para as especialidades, para fazer determinado tipo de exames, mas, quem centraliza o tratamento é o internista. Depois o intensivista é o médico especialista em cuidados intensivo, que é outra especialidade médica. E os cuidados intensivos é uma especialidade muito ampla, porque além de todo o tipo de patologia médicas que podem lá parar, vão também as patologias cirúrgicas. Portanto um médico tem de tentar dominar um conhecimento muito amplo para poder tratar os seus doentes. O que me metia medo, nestas opções todas, era não fazer opções que me fechassem muito, que me cerceassem os horizontes. Eu quando tive de escolher a especialidade era medicina interna ou cirurgia geral, uma coisa assim. Ampla, que eu queria. Os cuidados intensivos é o gosto pelo doente crítico, pela adrenalina, que quando se é médico jovem se gosta muito. Mas, também por ter essa amplitude toda de conhecimento. Tem de estudar. E recebe-a. e vai havendo sempre casos diferentes. É muito estimulante.
E o médico vai perdendo essa adrenalina?
O médico vai perdendo essa adrenalina porque, quando fica mais velho, eles não querem que nós vamos reanimar nem querem que sejamos nós a entubar porque os mais novos querem eles praticar e depois reservam-nos para ... "olha, e aquele doente, achas que devemos reanimar?". Mais como conselheiros ou consultores do que propriamente com aquela adrenalina toda. Até porque, fisicamente, eu aos 20 anos corria mais do que agora.
Ninguém diria...
Fisicamente é diferente.
E porque também dá gozo ver os jovens médicos a iniciar esse percurso?
Quando estão dois médicos a trabalhar há sempre um ensinar e um a aprender. Eu aprendo muitas coisas com gente nova. Muitas. Acho que são muito mais inteligentes do que o que eu era. A formação hoje em dia é muito mais inteligente. É em blocos, portanto não era aquela coisa estanque...
O doutor escolhe essa área quando ainda não estávamos muito familiarizados com este bombardeamento de séries que agora temos nas televisões. Agora lembrei-me, por falar na adrenalina. Temos o serviço de urgência a entrar-nos em casa, não é? O doente está ali como se estivesse na nossa sala. Os vários doentes. O que é que o fez... já explicou, queria uma área que não o cerceasse os horizontes, mas nos cuidados intensivos...
Nos cuidados intensivos nós temos o doente todo monitorizado. Nós sabemos qual é o débito cardíaco em cada batimento, em cada segundo, quanto é que o coração debita. E portanto, nós temos capacidade e meios técnicos e humanos para tratar o doente, com excelência. O doente nos cuidados intensivos é muito bem tratado. E consegue-se ... oiça um doente está em risco de vida, faz a ressonância na hora, faz... temos um enfermeiro por cada dois doentes... temos monitores e ventiladores, temos máquinas que permitem tratar o doente com um nível e uma capacidade técnica e humana que é impar. Não há em mais nenhuma especialidade. Portanto isso foi muito estimulante. Fazia parte do estágio. Eu fui obrigado a fazer o estágio nos cuidados intensivos. Fazia parte do currículo do internista. E depois nunca mais sai de lá, porque apaixonei-me por aquilo e, portanto, fiquei com muita convicção. Mas foi uma paixão imprevista porque, como lhe disse, fui porque era obrigado.
São as melhores.
Não sei. Mas... estar apaixonado é sempre bom. Mas
E continua?
Sim, sim.
Sem dúvida.
A sua irmã respondeu primeiro.
Estava com medo que eu não desse a resposta certa.
Porque diz isso com tamanha convicção?
Porque vou seguindo... nós temos uma vivência muito próxima e
Apesar de um viver em Lisboa e o outro no Porto?
Sim, mas, falamos todas as semanas e várias vezes e eu vou muitas vezes... nós temos uma casa
Em Vila do Conde?
Sim. A tal casa de família no conceito antigo, onde nos reunimos todos, em fins de semana, Páscoas, Natais... quando eu digo todos é mesmo todos. Mais a fialhada toda e por aí fora. Sempre foi assim nessas ocasiões. É de facto a casa onde juntamos todos. Também em Cascais mas também nestas ocasiões festivas. E de facto vejo a disponibilidade, eu diria contínua, a qualquer hora, e quando eu digo continua e a qualquer hora é mesmo a qualquer hora, seja noite de Natal, seja o que for... ele atende os doentes ao telefone. E, sobretudo a tal paixão com que ele tenta resolver as questões e o à vontade com que os doentes lhe ligam... não é o atender o telefone, é a disponibilidade em tentar resolver.. em, a seguir a um telefonema ter de fazer mais dois ou três para tentar resolver uma situação. Isto é diário, continuo e a qualquer hora. Sempre me fascinou de facto esta capacidade, esta generosidade de entrega que ele tem.
Se ela não falar bem de mim quem vai falar? Tem que ser.
Mas é um facto. E isso de facto mostra que tem uma grande paixão.
E ligam-lhe? Agora voltei para a família para tentar perceber. Ligam-lhe, na família, quando têm algum problema? A pedir...
Sem dúvida. Sem dúvida nenhuma. Ligamos-lhe logo. Sendo certo que, se for uma questão mais de ossos, o meu marido é ortopedista também ligo ao meu marido, mas qualquer outra questão que tenha a ver... até de amigos nossos, toda a gente lhe liga. Mas, para além disso, uma coisa é a família e os amigos que se sentem à vontade. Outra coisa é o à vontade que ele consegue gerar empaticamente com os doentes e o à vontade com que de facto, a qualquer hora - as pessoas também estão cansadas e têm vida própria e vida familiar
Com os doentes e muitas vezes com as família dos doentes..
Muitas vezes, eu diria quase 100% das vezes, com a família dos doentes. Que, muitas vezes, até pode ser coisas que se percebe que é mais a preocupação e é o estar a sossegar a família. E essa entrega, de facto, mostra uma entrega à medicina.
Hoje em dia é fácil. Mandar um SMS, um WhatsApp, mandar um email. Ajuda muito.
Mas não desumanizam, esse contacto?
No meu caso acho que humanizam. Porque aumentam a disponibilidade sem propriamente me perturbar. À colegas que não gostam que lhes liguem. Eu não me importo. Não me incomoda nem que corta o raciocínio. Não complica. Acho que na vida uma regra de ouro é não complicar. As pessoas ligam... de uma maneira geral, mandar uma mensagem, ter essa disponibilidade, essas tecnologias todas e que nós conseguimos rapidamente ver o TAC, as análises e tudo, no email em casa, é muito agradável. O que humaniza a medicina ou desumaniza tem muito mais a ver com a maneira como o médico está, como os doentes estão e da maneira como o serviço de saúde é organizado. Não tem propriamente a ver com existirem emails e isso tudo. Eu acho que ajuda muito. Haver estas tecnologias. Tem de nos ajudar muito. Temos de as aproveitar pelo lado bom.
O António resolveu escrever um livro, que já vai na segunda edição.
Não, vai na terceira. Esse foi eu que roubei à minha irmã lá em casa.
Para me oferecer, e eu agradeço, desde já publicamente. Aliás, já aqui esteve, na TSF, a falar especificamente sobre este livro, pouco tempo depois do lançamento, no programa da Ana Sousa Dias, para começo de conversa. Reanimar? São várias histórias que partem da sua experiência e das suas convicções. Na necessidade de cuidados intensivos que ajudem o doente a morrer em paz.
Eu acho que sim. A medicina foi evoluindo muito, tecnologicamente e hoje em dia nós temos quase a capacidade de mascarar a morte. Se tiver um doente entubado, ventilado e com animas (?) em curso eu consigo ... que já deveria quase estar morto, já quase sem atividade cerebral, continua a exibir funções vitais. Portanto, tem de haver, paralelamente a este avanço tecnológico um avanço na maneira de estar dos médicos. E a medicina encontrou um pouco essa resposta e é um bocadinho... nós hoje temos ordens de não reanimar. Um doente que tem uma situação clinica irreversível, sei lá, uma doença oncológica com metástases que já é refratária a todo o tipo de tratamento... não temos objetivamente nada a oferecer-lhe a não ser prolongar um estado agónico. E portanto, nesse sentido, nesses contextos, o médico não reanima. Se o doente para o médico não reanima. Agora, isso, obviamente, dito desta maneira parece lógico, mas, se tiver um filho ou uma esposa ao lado do marido "então o senhor não reanima?". Foi um bocadinho explicar às pessoas porque é que há situações em que o médico não deve reanimar. Se elas são todas claras e como se fosse matemática dois mais dois... não são. Mas, é muito importante termos essa postura. De que a medicina é só um conhecimento e não tem resposta para tudo. E a morte faz parte da vida. Nós temos de ter essa lucidez. Porquê? Porque não embarca-se assim numas ideias esquisitas
Esta sua resposta pode até levar ao engano, algumas pessoas que não tenham tomado consciência deste livro, ou tomado nota deste livro, podem pensar, assim de repente, que o doutor Maia Gonçalves está, com este livro, a defender a eutanásia. E não.
Não, porque exatamente a medicina tem as suas respostas próprias para as situações irreversíveis, que são, nomeadamente, os cuidados paliativos, por um lado, que evoluíram espetacularmente. Os cuidados paliativos têm hoje um cariz humanista muito muito forte e que eu tenho muito respeito pelos meus colegas que trabalham nessa área. E muitas vezes peço o apoio deles para ajudar no tratamento dos meus doentes. E, por outro lado, há situações claras em que o médico não deve reanimar. Portanto a medicina encontrou as suas respostas para isto. A Associação Médica Mundial ainda recentemente, no ano passado, deixou claro que é contra qualquer forma de eutanásia. E houve dois países que saíram da Associação Médica Mundial mas há países que praticam a eutanásia e claro que continuaram. Mas, portanto, de um médico espera-se que esteja motivado para a vida, e se não pode curar pelo menos para cuidar. Depois há outras formas, que eu não me oponho, nomeadamente o suicídio assistido, como se faz na Suíça. Pronto, oiça, é a liberdade individual de cada um. Se um individuo tem uma doença terminal e não quer passar por mais nada. Pronto, tem esse direito de lhe ser fornecida medicação que rapidamente lhe termina a vida.
Desde que esse ato não seja praticado por um médico.
É um ato individual, da consciência de cada um. Nós temos de respeitar, não temos de impor valores nem ideias às pessoas. As pessoas têm direito a ter as suas convicções. Agora, por um médico a fazer isso é subverter a medicina. Eu pelo menos se estivesse doente queria um médico que estivesse motivado para a vida. Não queria um que "está muito mal vamos, mas é eutanásiá-lo". Eu acho que isso não faz muito sentido. Mas olhe, não é um tema que seja completamente pacífico e completamente clarinho. Acho que deve de haver sempre margem para haver uma intervenção jurídica em caso, sei lá. Um suicídio assistido se for um tetraplégico não pode praticá-lo, por exemplo. Mas isso .. haver uma solução jurídica ou qualquer coisa que lhe permita cumprir as usas convicções. Agora... porem-me a mim ou haver um médico, que deve estar empenhado noutras coisas, a eutanasiar pessoas é uma coisa que não consigo conceber.
E levanta-lhe um problema de consciência pessoal se, imaginemos, alguém que lhe seja muito próximo, uma pessoa da sua família - olhe, a sua irmã, que está ao seu lado - agora, por exemplo, numa situação lá mais para a frente, para o final em que possa ter aproximar-se do António com um pedido dessa natureza. Isso fá-lo-ia vacilar? Não estou a dizer que o praticasse, mas ... de si para consigo, não como médico...
A relação médico / doente é uma relação muito empática e eu tenho doente pelos quais tenho uma estima imensa. Há doentes que sigo há duas gerações, a família toda. Tenho uma estima imensa por muitos dos meus doentes e vejo muito como... eu passo a maior parte do meu tempo a trabalhar, portanto eu vejo como amigos. Eles sabem todos como eu penso, aliás. Agora, matar ou eutanasiar uma pessoa que me seja próxima... é completamente ... eu não era capaz de fazer uma coisa dessas. Agora tive situações...
Nem que isso fosse pedido a chorar baba e ranho, como se diz na gíria. E mesmo sabendo que essa pessoa está a sofrer muito.
Não, seguramente que eu garantia ... tenho a convicção de que conseguia convencê-los a não pedir a eutanásia e a garantir-lhes todo o conforto do mundo. eu não tenho pudor nenhum em garantir analgia e sedação suficiente para conforto. Que isso vá resultar em abreviar o processo de morte seguramente. Mas, a intenção com que o faço não tem nada a ver com a eutanasiar ninguém. Portanto eu não deixo ninguém a gritar e a gemer. Pelo amor de Deus. Isso não existe. É medieval. Nós temos meios de sedar e nausear as pessoas com toda a convicção com conforto. E seguramente que a
Instituição de técnicas de conforto vai aliviar o processo de morte. Uma coisa totalmente diferente é eu disparar um gatilho e eutanasiar uma pessoa. Não faz sentido. Eu tenho a certeza que conseguia convencer doente meu ou a minha irmã... mas oiça, quem marcha primeiro sou eu que ela está aqui toda bem conservada. Eu eu estou mais gasto. Não será seguramente assim. E tu, espero que não me eutanasies.
Não, está descansado. Jamais.
Então e pelos corredores do hospital costuma ouvir ópera ou isso é outra ...
Ah, eu gosto muito de ópera. Deu-me para aí. Mas no hospital é difícil.
Com auscultadores, não?
Não. no hospital é muito difícil ouvir ópera. Aquilo é muito intenso. As pessoas não têm ideia. 24 horas de serviço nos cuidados intensivos é muito intensivo porque não se está só nos cuidados intensivos. Acorre-se a todas as emergências que chegam de fora e todas as emergências intra-hospitalares. Portanto, uma pessoa não tem assim muito tempo. Mas, tempo para estar a ouvir e tal. Não de todo. Quando venho de Braga, depois, para o Porto, é que venho a ouvir e dá-me assim alguma serenidade e alguma tranquilidade. Tem um problema. A ópera mexe um pouco com as emoções. É muito intenso.
É como a medicina.
Sim, mas se aquilo for muito duro às vezes tem de ... não posso ouvir ópera senão aquilo
Chora?
Não, um homem não chora. Não sei, achas que sim? Não sei. Mas comove um bocadinho. A música mexe muito. A música clássica mexe muito mais. E sei lá, ouvir assim Anna Netrebko ou o George a cantar... uma daquelas...
É magnifico.
Uma pessoa fica comovida.
E descontrai mais (ou menos) a ouvir ópera ou a tocar piano?
Piano descontrai muito mais. É muito mais relaxante. Não toco piano como o meu pai tocava. Nem por sombras.
Toca muito bem. Tem muito ouvido.
Sabe ler uma pauta?
Sei ler uma pauta. Mas gosto de me sentar e estar a ouvir uma música... é agradável. E agora tenho um piano elétrico que tem.. que é muito agradável porque tem uns auscultadores que, à duas ou três da manhã quando me apetece
Para as outras pessoas não ouvirem...
Para não ter problemas com a vizinhança. A sonoridade é muito... não tem necessidade de afinação. E tem essa coisa milagrosa que são os auscultadores e não chateia ninguém.
E é frequente ter vontade de ir tocar piano às duas da manhã?
Sim, gosto de tocar.
E pega ao serviço a que horas?
Cedo. O presidente dorme pouco e eu também quero ser presidente um dia. Não, a sério. É cedo. Oito e meia, nove no máximo estou no trabalho. Dormir é um tempo perdido.
É preciso, é necessário, para a saúde.
Sim. Viver muito depressa a gente depois perde tempo de vida. Mas, viveu mais intensamente, não é?
Qual é a diferença? Agora tocou num ponto engraçado. Entre viver depressa e viver intensamente.
Eu acho que viver depressa vive-se intensamente. Acho que é assim. Quando vivemos com mais serenidade e com mais tranquilidade se calhar vivemos muitos mais anos. mas não vivemos intensamente cada momento. Agora a adrenalina faz parte do dia a dia. A necessidade de horas de sono também tem um bocadinho a ver com o ritmo biológico de cada um, não é? Eu fico mal se dormir sete ou oito horas. Fico com uma moleza, quase que me dói a cabeça. Se dormir cinco ou seis fico muito bem. Cinco ou seis horas bem dormidas.
Um dia normal na vida deste medico é o quê?
A gente tem de trabalhar. um dia de consultas, normalmente começa pelas nove, dez da manhã e termina pelas dez da noite. O dia hospitalar tem 24 horas. Entra-se num dia de manhã e sai-se no outro, um bocadinho mais tarde do que se entrou, porque se tem de passar os doentes. Trabalho muitas horas. Numa semana vou a 90 horas noutra vou a 70. Pronto, e depois tenho que, quando chego a casa tenho que gostar de ler...
Ia dizer, quando chega a casa, à noite, gostava de poder desligar, mas um médico nunca desliga.
Mas nós gostamos de ler. Uma coisa muito motivadora é quando aparece um doente com um sintoma e nós andamos às voltas e não conseguimos saber a causa da febra e temos de a estudar e ler qualquer coisa que nos inspira e acabamos por chegar ao diagnóstico. isso é muito motivador. A medicina é motivadora por isso. Muitas vezes a gente tem de estudar. Nem tudo é evidente nem óbvio. Muitas vezes os sintomas
Vai-se para casa e vai-se remoer...
Não se dorme. Não se dorme. A gente fica ali perturbado com aquela história. É muito importante encontrarmos o caminho. Senão tenho de pedir isto, pedir aquilo, pedir acoloutro. E depois já se consegue dormir em paz, senão não se consegue. Nem que dê meia hora ao piano não dá. E tomar pastilhas para dormir e essas coisas sou contra. Acho que isso é mau. Acho que a gente deve... a medicina é ótima quando é precisa mas muito medicamento é mau. A medicina é perigosa, muito invasiva, muito .. há sobre diagnósticos, é preciso também ter um bocadinho de
Sobre diagnósticos, sobre químicos
Sobre diagnósticos, sobre químicos, é um bocadinho a sociedade que exige isso, eu acho. Eu digo sempre aos meus doentes "fuja do médico", não tem nada, vá-se embora, fuja. Porque é muito importante as pessoas terem a noção que ... oiça, nós vamos sempre tentar..é assim que nós estamos formatados. A pedir mais um exame, e mais isto e mais aquilo. E depois houve ali uma coisinha pequenina...pronto. há uns mínimos. Eu acho que uma senhora jovem como a minha irmã deve, uma vez por ano, ir ao ginecologista. Pronto. Mas não muito mais do que isso. porque se o ginecologista se tiver alguma dúvida também sugere-lhe que vá aqui ou acolá. Ir muito ao médico é mau. É a ideia que eu tenho. A gente deve ir qb.
E quando um médico toca piano a irmã acompanha com quê?
Com a audição. Com o prazer de ouvir.
Não lhe deu para aprender nenhum instrumento?
Não. eu também aprendi piano, simplesmente não tenho, para além do prazer de ouvir, não tenho jeito nenhum. Absolutamente nenhum. Eu lembro-me de uma professora que tivemos que dizia à minha mãe "olhe, o rapaz é espetacular, a rapariga é uma desgraça, não tem ouvido nenhum". E de facto não tinha. Eu gosto muito de ler, aliás é das coisas que tentei também incutir aos meus filhos porque acho que é dos maiores prazeres que há. Portanto, eu tinha que estudar. Porque jeito não tenho.
O vosso pai foi condecorado pela rainha Isabel II. Essa condecoração foi uma coisa que teve... enfim, não haverá muitos portugueses que possam orgulhar-se dessa distinção. Essa condecoração tinha algum lugar lá em casa, era tema de conversa?
Sim, foi até tema de conversa porque eu creio que .. não sei se há muitos portugueses que a tenham, suponho que não, penso que são muito poucos...
Eu tentei fazer uma pesquisa mas confesso que não consegui, daí .. não haverá muitos seguramente que não. talvez se contem pelos dedos de uma mão.
Sim, talvez se tanto.
Houve ali uma coincidência que foi, na altura em que o meu pai estava era paramilitar de Macau, paramilitar de Hong Kong, quando o meu pai regressa a Lisboa, ele regressa ao Reino Unido e é nomeado Chefe de Estado Maior das Forças Armadas em ... no Reino Unido. E o meu pai depois é nomeado para adido em Londres. E foi essa coincidência que fez. Mas, muito mais engraçado que isso
Sim, porque o nome é proposto por esse governador.
Exatamente.
De Hong Kong. E ele vem assim na altura. O presidente era o Ramalho Eanes e o Chefe de Estado Maior era o General Ramos Ferreira. Ele vinha assim.. o meu pai era muito parecido com o Omar Sharif.
Fisicamente...
Muito parecido. Era confundido nos aeroportos. Com o Omar Sharif. E vinha fardado
Ah isso deve dar histórias fabulosas.
Oiça, ele vinha fardado que tinha sido condecorado no Buckingham Palace, vinha fardado a rigor, com aquela farda de jaqueta cheia de dourados e tal...vinha lá o Presidente da República e tal e duas moças agarraram-se ao meu pai a dizer "Omar Sharif came with us". A minha mãe vinha atrás
A minha mãe era muito bonita
Essa história foi fantástica. Eu era miúdo, eu guardo essa condecoração. Duas moças agarradas ao meu pai. Eu achei aquilo o máximo.
E a minha mãe...
Que idade tinha o António?
Eu tinha 12 ou 13 anos.
Nessa idade olhava mais para as moças que para as condecorações.
Sim, sim. Mas eu penso..
Apesar do brilho das medalhas.
Os militares tinham muitas medalhas naquele tempo. tinham muitas comissões e muitas coisas e com isso muitas medalhas. É claro que a da rainha era diferente. Mas eu acho que ele não tinha grande orgulho nas medalhas.
Não.
Era muito low profile.
Era uma pessoa que, como dizia uma pessoa do norte, conseguia fazer os outros sentirem-se importantes, tendo a maior simplicidade na maneira de ser.
Agora fiquei curiosa. O António nunca teve a tentação, quando entrou para a adolescência, contou-nos essa história deliciosa sobre a chegada dele ao aeroporto, nunca teve tentação de dizer que era filho do Omar Sharif?
Não. tinha sempre tentação de dizer que era filho do meu pai mesmo.
Que era melhor, ainda.
Mas não. mas a minha mãe tinha muitas amigas, nunca houve assim essa solidão.
Festas, para fecharmos. Uma festa organizada pelos irmãos António e Luísa, era exatamente o quê? Vamos imaginar que agora queriam organizar uma festa.
Agora?
Sim.
Agora é chamar os amigos de sempre e fazemos jantar e estamos sempre bem. Conversarmos e bebermos - eu gosto mais de champanhe, eles gostam de vinho. mas estar com os amigos e tal, com os filhos, se possível e ouvir música.
Isso seria em Cascais ou Vila do Conde?
Tanto faz.
Eu prefiro Vila do Conde.
Talvez vila do Conde onde cabemos mais.
A casa é maior...
A casa é grande e é simpática. A última vez tive lá 40 pessoas e fui eu quem fez o jantar, sem stress nenhum.
Que é um excelente cozinheiro também...
Excelente é alguma generosidade, quem lhe disse isso. Mas gosto de cozinhar. Para amigos e tal,
O que é que gosta mais de cozinhar?
Arroz de peixe, polvo.
Mais peixe...
Mais peixe. Mas faço uns bifes e coisas assim. Ou pode-se por uma coisa cheia de cogumelos, uns paios, meter lá uma carne e por aquilo no forno. E fica bom.
A Luísa vai pondo a mesa ou ajuda na cozinha?
Gosto de cozinhar também. A minha mãe, agora já não tanto, mas cozinhava muito bem. E a vivência que tivemos, em sítios diferentes, no mundo, fez também com que ela adquirisse o hábito de cozinhar coisas diferentes, que foi aprendendo nos vários sítios. Portanto... eu acho que nos passou, exceto talvez ao nosso irmão mais velho, que de maneira nenhuma, mas a todos os outros foi um bocado o gosto pelo cozinhar.
Provar um bocadinho daqui, um bocadinho dali?
Sim, sim. E é uma maneira também de podermos estar todos juntos. Partilhar e...
E depois estão quantas horas à mesa?
Bastantes.
O tempo que der. Não é tanto a comida em si que é um pretexto inicial, mas é a conversa, o estarmos juntos, é a risota, é o podermos de facto conviver uns com os outros. E é isso que interessa no fim.
Deve-lhe custar quando tem de mandar os seus doentes de dieta. Deve-lhe custar um bocadinho. Sabe do que é que os está a privar, não sabe?
Por acaso sou um bocadinho permissivo. Sou contra aquelas dietas drásticas, acho que não tem interesse nenhum. Acho que se tem de ter bom senso. Tem de se ter muito bom senso. Com a forma como encaramos a saúde. E não podemos viver em função disso.
Uma boa refeição, para terminarmos em festa, esta nossa conversa. Depois de uma conversa desta o que é que caia aqui bem?
Aqui era um peixe grelhado, agora em Matosinhos. Acho que era...um robalo grelhado, ou assim uma coisa... uma dourada ou um robalo grelhado com um arroz de grelhos. Acho que era fantástico.
Com champanhe?
O champanhe vai bem com tudo. Embora.. não podia porque daqui a bocado vou trabalhar e não posso beber champanhe a meio do dia.
Portanto, temos de beber água?
Café.
A meio do dia sim.
Quem nos vai ouvir vai ouvir ao final do dia, mas, pronto. Aí já se pode beber um vinho.
Já podem beber um vinho. Eu não sou fã de vinhos mas
Então voltamos ao champanhe.
O champanhe é mais simpático.