Duplo álbum "Amália 1970 Ensaios" chega hoje ao mercado com inéditos da fadista
Estes "Ensaios", inteiramente preenchidos com música de Alain Oulman, são uma verdadeira janela para a oficina de trabalho e a cumplicidade artística entre Amália e o compositor, a que se juntava o guitarrista José Fontes Rocha, na construção do "ambiente certo para cada fado ou canção".
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O duplo álbum "Amália 1970 Ensaios", que inclui inéditos da fadista, gravados em casa e nos estúdios Valentim de Carvalho, é editado esta sexta-feira.
Esta edição reúne documentos inéditos, gravados entre 1970 e 1971, nos quais sobressai "o grande virtuosismo vocal e artístico" de Amália que, "mais do que um aperfeiçoamento apenas formal, mais do que fazer uma 'voltinha', diferente aqui, ou uma variação ali", procurava também "novos e por vezes inesperados caminhos emocionais para cada peça", disse à agência Lusa o investigador Frederico Santiago, coordenador deste projeto.
O duplo CD contou com o apoio do Arquivo Nacional do Som (ANS), que restaurou as gravações.
Para Frederico Santiago, ouvido também pela TSF, este álbum vem plasmar a capacidade de trabalho e o perfeccionismo da artista. "Acho que, também culpa dela, que, desde sempre, deu um bocadinho essa imagem de que não trabalhava, e a Amália trabalhava muito, como todas as pessoas com um grande talento."
"Apesar de logo no primeiro degrau fazer logo uma coisa que nós acharíamos definitiva, ela procurava cada vez fazer melhor", salienta o musicólogo, que considera esta divulgação "uma sorte", porque "é como se estivéssemos num cantinho do estúdio".
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As pessoas tinham ideia de que "Amália era Deus, e que as coisas saíam naturalmente", analisa Frederico Santiago, que logo completa: "Claro que saíam naturalmente, mas ela fazia com que ainda fossem melhores."
O investigador revela o reportório poético presente no trabalho: "O Manuel Alegre e o Ary dos Santos, e um poeta ligado ao PCP do qual não cantou mais nada, mas que aparece aqui, o Armindo Rodrigues..." Trata-se, na perspetiva de Frederico Santiago, de um "reportório que dificilmente passaria na censura" em 1970, e que "prova, mais uma vez, na sequência também deste livro de Miguel Carvalho [o musicólogo refere-se à obra "Amália - Ditadura e Revolução", publicada este ano], a independência dela".
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"Ela nunca se colou a nada, mas realmente era uma mulher muito livre", enaltece.
No livrete que acompanha os discos, e que é um guia de audição deste "precioso material", é também referido que "a intervenção de restauro, feita por Pedro Félix [do ANS], foi reduzida e muito precisa", visando "atenuar alguns efeitos sonoros indesejados que prejudicavam a audição", sobretudo nos ensaios gravados em casa de Amália.
"O objetivo [foi] manter-se fiel ao caráter do registo".
A colaboração do ANS com a Valentim de Carvalho surgiu no âmbito das comemorações, em curso, do centenário de Amália Rodrigues (1920-1999), explicou à Lusa o antropólogo Pedro Félix, da comissão instaladora do ANS.
Estes "Ensaios", inteiramente preenchidos com música de Alain Oulman, são uma verdadeira janela para a oficina de trabalho e a cumplicidade artística entre Amália e o compositor, a que se juntava o guitarrista José Fontes Rocha, na construção do "ambiente certo para cada fado ou canção".
"Aqui se prova que Amália também trabalhava, e muito. Nunca se sentindo totalmente satisfeita com o resultado, mesmo que para nós ele seja já perfeito, o que não deixa de ser um dos segredos do seu génio - o eterno descontentamento e procura permanente da perfeição", disse Frederico Santiago.
O investigador sublinhou que este universo de canções feitas com Oulman é um "repertório que Amália, certamente por temer a censura, só viria a editar depois do 25 de Abril de 1974, mas em versões gravadas mais tarde, com menor brilhantismo vocal do que estas" que agora se revelam.
Defende Santiago que, ainda antes da Revolução dos Cravos, como se prova nesta edição, "existe uma Amália, totalmente livre de preconceitos artísticos e políticos".
Parte do repertório aqui ensaiado ficou inédito e é agora trazido a público, como "Sete Estradas", de Armindo Rodrigues, e a adaptação em estilo de tango do poema "Objeto", de Ary dos Santos, do qual resultou "Com Vossa Licença", ensaiado em casa de Amália, com os guitarristas e com Alain Oulman ao piano.
Para Pedro Félix, esta é "uma edição fantástica, um documento raro de alcançar, que traz uma Amália de carne e osso".
"Esta edição ecoa muito na minha sensibilidade enquanto antropólogo; vê-se uma outra realidade que quase sempre fica escondida, este saber fazer, o processo de construção de um material, do qual só se conhece normalmente a parte final", disse Félix que referiu ainda ser "um documento histórico a artístico raro, de uma artista de tão elevado nível como Amália".