Em entrevista à TSF e ao Dinheiro Vivo, César das Neves questiona "como é que o país não se desatou a rir quando soube que Costa Silva ia fazer o plano de recuperação". Economista avisa que o crescimento vai ser anémico mas "Portugal não é um fiasco"
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Professor catedrático de Economia da Universidade Católica Portuguesa e um dos economistas mais reconhecidos em Portugal, João César das Neves lançou cinco livros de outros tantos períodos económicos do país nos últimos anos. Nesta semana publicou mais um: "As 10 questões da pandemia: O efeito económico da catástrofe Covid-19".
Começa este livro com esta frase: "Este livro provavelmente não deveria existir". Porquê?
Porque precisava de ter sido escrito daqui a dois ou três anos. Só então saberemos o que aconteceu nesta pandemia - vai certamente ser tema de grandes estudos, mas escrevê-lo enquanto as coisas estão a cair... A ideia é fechar 2020, foi escrito no final do ano passado e tive de o reescrever no início deste por causa do segundo confinamento. E cada dia que saía mais um número, mais eu sofria com o livro já na impressora. Por isso é evidente que não devia existir.
A crise tem contornos globais, mas vamos concentrar-nos em Portugal. Como é que a economia reagiu?
Reagiu mal. Temos uma das piores pandemias na Europa mas a economia está muito pior em Portugal. Comparando com os parceiros, fomos dos que mais sofremos. Basta ver que na queda do primeiro para o segundo trimestre do ano passado, sofremos a quarta maior queda da Europa. É normal, porque temos um grande peso do turismo na economia. No livro, faço a correlação entre queda da economia e peso do turismo - não é culpa da economia, tem que ver com a orientação setorial, mas fomos muito afetados, como Itália, França e Espanha.
Os mecanismos de apoio foram bem desenhados?
Ninguém quer estar no poder quando há uma coisa destas, coitado do governo. Há que respeitar quem tem de tomar estas decisões e tentar gerir sem experiência nenhuma. Dito isto, diria que no apoio à saúde as coisas correram razoavelmente. Há alguns erros graves, nomeadamente ter-se esquecido que a gripe aparece no inverno. Até reagimos bem em março do ano passado, fomos rápidos e fizemos uma data de coisas que nem foram necessárias. Mas em geral, em termos sanitários, o balanço é positivo. Em termos económicos a coisa é mais ambígua. Diria que a orientação geral é boa: disse-se que se ia fazer o que se devia, mas com alguns problemas.
O primeiro foi que em vez de se conceber um ou dois grandes planos para ajudar a economia fez-se muitos e com uma coisa inacreditável: prazos. Em vez de se fazer uma coisa simples e direta fez-se uma complicada. Que teve depois a segunda consequência: a burocracia. O problema era saber se o dinheiro chegava mesmo às empresas e a verdade é que muitas acabaram por não o ter. Em cima disto, há uma coisa inaceitável: não se falou dos pobres. Não houve um plano para tratar dessas pessoas. Os pobres não têm voz em Portugal. Este governo está muito bem montado para lidar com a opinião pública mas os pobres não fazem parte dela. E portanto praticamente não houve nada para os pobres nem para as organizações que os apoiam - e eles tiveram de apoiar-se na família, na igreja e nas ONG, que ainda salvaram alguma coisa. Pior, esta crise atinge sobretudo os mais pobres - foi muito injusta, desigual.
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Teme que a seguir venha uma pandemia de pobreza?
O problema não é a seguir, é durante a crise. Esta crise é completamente diferente das outras porque não destruiu nada no aparelho produtivo. Não houve choque petrolífero, falência de bancos... Simplesmente fechou as pessoas. É o que chamo de paralisia da mão invisível. Assim que se deixa que haja transações, tudo normaliza - vimo-lo no ano passado, as coisas começaram a correr bem no terceiro trimestre, depois da queda brutal do segundo.
Mas com empresas a não reabrir, mais desemprego...
Pode haver alguns custos de ajustamento, mas esses também foram amaciados pela forma como a Europa tratou do assunto. Nos EUA, deu-se dinheiro às pessoas, na Europa às empresas. E isso facilita o ajustamento. As empresas estão suportadas, está-se a pagar-lhes para elas pagarem aos trabalhadores e a seguir retomarão. É uma ideia alemã, do início do século passado. Tem defeitos, nomeadamente não deixar morrer empresas que deviam morrer, mas tem vantagens no ajustamento: será mais rápido aqui do que nos EUA, onde as empresas morreram e depois renascem. São duas formas diferentes de fazer. Mas a retoma em princípio será mais rápida na Europa - e em Portugal.
Défice devia ter sido maior, é para isso que serve: para aguentar a economia e pôr dinheiro no bolso das pessoas
Não teme então uma pandemia de pobreza.
Não estou à espera disso, mas preocupa-me muito o que está a acontecer agora. As pessoas que estão completamente impedidas de sair, não há turistas, vendedores ambulantes, essas pessoas que ainda por cima ficam confinadas em barracas - e para essas pessoas não se falou. Não há nada no discurso, nas medidas, para os pobres. Passou completamente omitido esse assunto.
Se a vacinação continuar a correr como planeado, acredita numa recuperação rápida?
Talvez na parte final do verão. Estamos agora na fase em que as noticias são todas boas, as previsões negativas estão a ser revistas muito positivamente - isto pode mudar de um dia para o outro, como em março do ano passado. Mas se as coisas continuarem como estão, é possível que no terceiro e quarto trimestre as coisas já estejam bastante melhor. Até com um empurrãozinho de recuperação - ainda que Portugal não vá ser, de acordo com a generalidade das análises, dos que vão ter um salto maior. Vamos andar acima do que é costume, mas não ao nível do que está a acontecer agora na economia americana, que está a dar um salto espantoso. Porque a gente não deixa.
No livro escreve que para, Mário Centeno, a pandemia foi ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Porquê?
Uma bênção por uma razão desagradável: Centeno fez algo extraordinário e que ninguém contava que foi conseguir um excedente orçamental. Mas fê-lo mal, porque não fez nenhuma reforma estrutural; não fez dieta, pôs uma cinta. Parece que está tudo certinho mas ele sabia que a cinta vai rebentar, e por isso quis ir embora com tanta pressa, sabia que mais cedo ou tarde numa curva do caminho ia correr mal. A bênção é que agora a culpa é do vírus e não dele. Mas é uma maldição porque ele objetivamente saiu com um défice maior do que quando tinha quando chegou - estragou-lhe a pintura.
O défice deveria ter sido maior no ano passado?
Devia, claramente. Vai dar-nos muito jeito não ter sido, por causa da dívida, mas devia ter sido maior. É para isso que servem os défices. Este é um caso keynesiano clássico: é preciso gastar, aguentar a economia, pôr dinheiro no bolso das pessoas. E não foi feito suficientemente.
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Houve cativações a mais?
Sim, aquela expressão do Presidente da República de que há aqui uma grande cativação é verdade. Fez-se anúncios e depois a burocracia tratou de atrasar... Eu usei uma comparação um pouco irritante que é a seguinte: temos a casa a arder e primeira decisão que tomamos é não usar a mangueira mas os baldes; depois pomos a Segurança Social a ver balde a balde, por causa da conta da água. E louvamos imenso a Segurança Social pelo trabalho heroico, mas entretanto a casa ardeu. Foi o que aconteceu. Tomámos uma posição de não trazer o helicóptero e ir ver com cuidado, se merece ou não o apoio, e enquanto isso estavam as pessoas sem ter o que comer. A abordagem foi estruturalmente errada.
Faz críticas ao desenho do lay-off. A recuperação seria mais robusta com outro desenho?
A recuperação depende de nós deixarmos que aconteça. O problema é a vida durante a crise. O lay-off é talvez a grande exceção, é o plano mais parecido com o que a Europa fez e é o melhor. O problema do lay-off é que são três meses, depois vem outra coisa, agora para a recuperação - como se já houvesse recuperação... Estamos a tapar os olhos à realidade. Foi uma coisa limitada quando devia durar enquanto a economia precisasse. O Estado tem de servir a população. Segundo problema: o lay-off não foi dado às pessoas mas às empresas, ou seja, a empresa pagava os salários das receitas que não tinha e um tempo mais tarde o Estado pagava-lhe - e não encontrei onde estava inscrito o prazo para o Estado pagar... É exatamente ao contrário do que devia ser. As empresas estão sem receitas não podem pagar salários. Mas no essencial o plano funcionou, salvou muita gente.
Esta crise também afeta o setor financeiro. As moratórias vão deixar cicatrizes nos bancos?
Claro que sim. A escolha das moratórias é um truque. O governo está totalmente centrado no objetivo de controlar o défice - é um objetivo político muito claro desde que entrou e que agora de repente fica estilhaçado. Mas mantém os tiques. O FMI publicou um estudo em que comparava as medidas acima e abaixo da linha nos países - as que tinham impacto no OE e as que não - e estas estavam abaixo, porque não têm despesa nem perda de receita, a moratória é para os outros. Mas mais uma vez, essas moratórias têm de estar calibradas para a retoma: só quando a economia estiver a funcionar normalmente é que podemos voltar ao normal. Definir o fim por calendário, em março, não faz sentido.
Crescimento económico a seguir à crise vai ser medíocre
Mas são as regras europeias.
Mas é tonto. Aliás, acho que neste processo todo a UE ficou muito pior do que Portugal. Isto são regras típicas de burocratas no gabinete. Há que olhar para a realidade.
Os bancos vão sofrer?
Já estão aflitos há muito tempo e esta é mais uma em cima dos bancos. O problema fundamental da crise anterior ainda não está resolvido - andámos a fingir, a assobiar para o lado, estava tudo bem quando tínhamos o vento pelas costas. Mas quando mudou o vento, já sabíamos que viriam problemas. Então, sim, os bancos - como o OE - são a próxima grande preocupação. Quando acabar a pandemia, deixamos de ter o problema de liquidez e passamos a ter um de solvabilidade, financeiro.
As moratórias que acabam em setembro deviam ser adiadas?
Tem de se olhar para a realidade, estudar o assunto. Não se pode olhar só para o lado de quem não paga, tem de se olhar também para o de quem não recebe e fazer uma negociação. Eu acho que está a ser feita, mas como sempre acontece em Portugal, a verdadeira é feita atrás das cortinas e de vez em quando vem alguém dizer qualquer coisa, enquanto se faz carambola lá atrás. Houve episódios vários disto, que não tinham nada que ver com a realidade, até parecia ridículo e depois percebemos que estão só a "fazer check". Olhe o caso da Groundforce: foi ridículo, parecia que os únicos trabalhadores que não estavam a receber salários eram aqueles. Só se falava daquilo. Porquê? Porque havia umas jogadas, de nacionalizações, que nem sabemos bem quais eram. Temos tudo fechado, à beira da falência, milhares de trabalhadores em dificuldades e de repente só aparecem aqueles todos os dias? Porque é que não se resolveu com lay-off?
Esta crise pode ajudar a perpetuar o problema crónico da falta de capitalização das empresas?
É mais uma machadada. Temos um gravíssimo problema de falta de capital. Curiosamente, houve dois fatores que mudaram para melhor com a crise - mas por más razões. A taxa de poupança das famílias cresceu imenso - porque estavam fechadas em casa. E as empresas que estavam a poupar - o que é estúpido, deviam investir - começaram a endividar-se mas não para investir, para pagar o dia-a-dia. Mas é claro que é mais uma machadada numa economia que há muito precisa de olhar para o capital. Agora vamos ter um bambúrrio de dinheiro...
Já vamos falar do plano de Recuperação e Resiliência (PRR), entregue nesta semana em Bruxelas. Que papel tem tido a UE nesta crise?
Acho absolutamente inacreditável o que se fez. Esta crise é extraordinariamente difícil, mas também simples: fechou-se as portas e é preciso sustentar as pessoas enquanto estão em casa fechadas, quando as empresas paradas. Quando se abre, as coisas andam e então há um problema de dívida para resolver. O que faz a UE? Durante o encerramento, nada. E aposta tudo numa dimensão incrível, centrando-se nas preocupações do mundo, na recuperação - que é a única automática nesta treta. Assim que deixarmos as pessoas saírem de casa a coisa recupera; precisávamos era quando estava tudo parado.
Bruxelas foi inacreditável na recuperação. Fez o contrário do que era necessário
E na recuperação, em vez de olhar para o central, que é a dívida do Estado, a descapitalização das empresas, aposta-se nas duas coisas que o vírus ajudou: a descarbonização (com tudo fechado em casa, reduziu-se) e a digitalização, que todos tivemos de fazer de um dia para o outro. Não critico os objetivos, são excelentes, mas é de quem não está a olhar para o problema. E o nosso plano é um típico quadro tradicional como se não tivesse acontecido a pandemia - fizemos o costume, quando o que aconteceu era novo. É típico daqueles generais que andam a lutar a última guerra em vez do inimigo que têm diante. Foi muito bom para a UE em termos mediáticos, que estava frágil por causa do brexit e de repente aparece como salvadora, mas não está a salvar nada do problema.
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A bazuca europeia não está a apontar aos alvos certos?
Não quero ser maldoso, mas andei a ver o programa e um terço daquilo é betão (construção) e se somarmos o que é burocracia é metade do dinheiro que se vai. O que está lá escrito é descarbonização - mas é metro, ferrovia... O que mais me preocupava era a questão social, os pobres, e há lá qualquer coisa mas quando vemos o que há não é para dar aos pobres, são paredes, são centros... E o que chamam digitalização é burocracia. Cereja em cima do bolo: há uma coisa muito importante, a capitalização, e temos lá uma coisa que se chama investimento e inovação. Então pensamos, finalmente! São só 10%, mas está lá. Mas vamos ver e metade daquilo é para criar outro banco público. É que temos poucos... só um - aliás, tem sido tão excelente que é bom ter mais um e metermos nisso uma pipa de massa... Portanto, o crescimento vai ser tão medíocre como até agora. Não estamos a apostar no crescimento - esse é feito pelas empresas, pelos mercados, pelos consumidores.
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Esses investimentos são uma sequela dos anos 1980?
Bem, há diferenças - fizemos tantos parques industriais, piscinas municipais, etc. que nem era possível fazer mais. Mas o modelo conceptual é o mesmo. A lógica é igual, porque é feito pelo mesmo tipo de pessoas, pessoas que não acreditam nas empresas, nos consumidores, nos trabalhadores. Acreditam em génios. Aliás, foi-se buscar um génio que na sua cabeça espantosa vai pensar o país a dez anos. Eu não sei como o país todo não se desatou a rir quando aquilo foi anunciado.
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O problema é a pessoa ou o modelo?
O modelo, claro. Não tenho nada contra o senhor. Mas temos nos ministérios uma data de gente que sabe dos assuntos. Como podemos sequer acreditar que uma pessoa vai escrever o programa do país a dez anos? E ficamos contentes porque entregamos mais depressa que os outros. Claro! Mas o governo não é estúpido: a questão é que para onde realmente vai o dinheiro não tem nada que ver com este papel - nem com o entregue em outubro nem com este. Nós até conseguimos vender coisas extraordinárias, como formação, somos mestres em pôr carimbos que encaixam na Europa e o dinheiro vai para onde decidimos. Para que vão os ministérios perder tempo? Este senhor faz o papelinho e já está. Mas assusta-me, porque mais uma vez a lógica de fundo que lá está não é de crescimento económico, não é uma coisa dinâmica, que é a única forma sensata de resolver o problema de descapitalização e crescimento que temos.
Como é que o país não se desatou a rir quando soube que Costa Silva ia desenhar o plano de recuperação?
Há dinheiro demais para o Estado e de menos para empresas?
Sim, porque estas pessoas acham-se donas do dinheiro - quer a Europa quer o governo português. O dinheiro é nosso! É um problema geral dos governos, mas em Portugal é particularmente dramático. O crescimento é a melhor maneira de resolver o problema da dívida, não são mais impostos. É crescimento, que dá mais receita aos impostos que temos e reduz o peso da dívida, era a melhor solução, de longe.
E não estou a ver nada disto. Aliás, há muito que o debate político português só fala de crescimento económico nos intervalos, para dar aspeto, porque quem domina a problemática política portuguesa são professores (como eu), pensionistas, médicos, autarquias... é desses que tratamos. E este governo está genial a tratar disso, por isso é que tem o apoio generalizado da população. Crescimento económico, pobres e outros que não têm voz, não contam.
Começámos com a primeira frase do livro, terminamos com a última passagem: "Criámos uma economia moderna, uma democracia funcional, uma sociedade coesa. Isto é mais do que a maioria do mundo pode orgulhar-se de ter. Temos um dos melhores locais do globo para viver. Não será um vírus que vai destruí-lo". É uma nota de otimismo num livro muito crítico?
Portugal é um país espetacular. Nós criticamos muito, mas temos sucesso. Quando nos juntamos para falar de Portugal parece que estamos como o Uganda... não somos isso, não somos um fiasco. Mas é uma pena termos cá estes vírus que ainda cá andam, que já cá estavam e continuam. Mas tudo somado, não é mau. Não penso mudar de país. Temos futuro. Claramente.
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