"Escalada da inflação é um autêntico tsunami que impõe mais medidas de emergência do governo"
Álvaro Beleza, presidente da SEDES considera que este é apenas o primeiro de muitos pacotes de auxílio às pessoas, mas o momento também requer atendimento entre os dois grandes partidos para reformas estruturais, em domínios como a segurança social e o regime de pensões.
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Álvaro Beleza, médico especialista em Imuno-Hemoterapia e diretor do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria que se assume socialista, laico e liberal, eleito em plena chegada da pandemia presidente da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, considera mesmo que que a escalada da inflação só é comparável a um tsunami e o pacote de medidas de emergência social do governo de ser o primeiro de muitos, mas o momento também impõe reformas estruturais em domínios como a segurança social e regime de pensões, pelo que apela ao entendimento dos dois maiores partidos (PS e PSD).
A propósito do lançamento do livro da SEDES com o título: "Ambição: Duplicar o PIB em 20 anos" que reúne reflexões de mais de 200 especialistas, admite que é uma lição mais de ambição, do que conformismo. Considera que apostando no aumento de salários, captação de investimento e retendo talento, Portugal pode ser a "Califórnia" do sul da Europa.
Aliás, considera que o território português tem condições para incrementar mais energias renováveis, defendendo a instalação de painéis solares fotovoltaicos para a casa de todos os portugueses, mais aposta na eólica e no hidrogénio e considera que é inevitável o uso da energia nuclear na península ibérica, como fonte intermitente.
A nível de política laboral, afirma que se nivela a negociação salarial por baixo e para o país ser competitivo sugere que o ordenado mínimo venha a ser superior aos mil euros, esperando um orçamento do estado para 2023 que permita criar condições para fazer reformas nomeadamente na saúde, esperando que o novo ministro de tutela devolva paz ao setor e volte ao diálogo com todos os parceiros.
Sobre o novo estatuto do SNS, defende um modelo à inglesa, centralizado na figura de um diretor-geral, para o que diz ser "uma gestão responsável com base na contratualização de recursos de acordo com as necessidades de cada unidade e deixando espaço ao novo ministro para governar.
Na área da saúde, considera ainda que Portugal já é um exemplo para outros países da Europa mais desenvolvidos como a Alemanha, em domínios como a digitalização, que espera que seja o caminho do sistema, recusando a ideia de despedimentos pela substituição do computador por pessoas em algumas funções, mas admitindo que num futuro próximo algumas tarefas vão deixar de ser feitas pela mão humana.
A SEDES acaba de lançar o livro "Ambição: duplicar o PIB em 20 anos", uma ideia que deixou na última entrevista conjunta do Dinheiro Vivo e TSF há um ano. Hoje como caracteriza esse desígnio?
A palavra ambição que pus no título do livro é para contrariar o fado português. Parece que, às vezes, os portugueses têm medo de ter ambição. Portugal tem condições para ser dos países mais desenvolvidos da União Europeia em vários níveis. E não o é. E isso é estranho, é estranho para quem vem de fora. Escrevi um artigo, em 1990, que Portugal deveria ser a Califórnia da Europa. Parece que é um pouco isso já. Estamos a ser descobertos porque temos muitas condições parecidas com a Califórnia: mar à mesma temperatura, ondas, surf, bom clima, também tempos florestas e infelizmente também temos incêndios. Temos luz e somos um país aberto, tolerante, onde é bom viver. Quem vem para Portugal adora cá viver. Temos hoje melhores universidades, melhor ensino, melhores investigadores, transportes, saúde, serviços públicos. Temos condições que não tínhamos há 40, 50 anos. Portugal tem tudo.
O que falta então?
Falta, primeiro, ter a ambição de querer ser dos melhores, não nos contentarmos em sair da cauda e estar na média. Ter a noção de que isso é possível e realista, se nos basearmos na evidência. Ir buscar bons exemplos, onde se fez bem, de países da nossa dimensão que conseguiram ter o dobro do nosso PIB ou mais. Não é nosso destino andarmos sempre de bancarrota em bancarrota, em que o ministro das Finanças é o homem mais poderoso em Portugal, desde o dr. Salazar, há praticamente cem anos, porque temos sempre o problema das contas públicas. E passar para uma era em que o ministro da Economia passa a ser o mais poderoso. Economia, economia. Crescimento, crescimento. Isto é base de tudo o resto. Depois, para ter melhor justiça, educação, melhorar tudo, tem que se ter mais economia. O crescimento económico devia ser o desígnio fundamental do país.
Com a guerra na Ucrânia e a escalada inflacionista, como é possível a economia crescer?
A guerra é uma situação terrível. A inflação já vem detrás, vem da situação pós-pandémica acelerada com as questões da energia, motivadas pela guerra. Mas sempre que há uma guerra no centro da Europa e as guerras na Europa são no centro, na zona que fora do império Austro-Húngaro, na Ucrânia, Alemanha. Sempre que há uma guerra ali, Portugal é procurado por ser um porto de abrigo. Estamos mais longe da guerra e Portugal tem que olhar para isto com esta visão de que somos um país europeu, mas que também somos globais. Portugal é o Brasil, é Angola, Moçambique, Portugal é a língua.
Existe um bloqueio de mentalidades que travado o crescimento, ainda que as novas gerações demonstrem uma veia empreendedora. O que falta para reformar o Estado?
É preciso que as novas gerações assumam mais poder. Temos muitos grisalhos no poder. Precisamos de gente nova. Olhemos para os líderes do norte da Europa. São jovens e mulheres. Aqui o poder ainda está muito na minha geração, nos mais velhos. É preciso que os jovens se interessem pela política, é preciso que os jovens empreendedores, investigadores, académicos venham para a política porque é na política que se decide a nossa vida coletiva. E eles estão a vir e têm ambição. E esta nova geração percebe perfeitamente a nossa mensagem. Estou muito otimista. E há uma velha geração que também acredita. Mais de 200 coautores deste livro são mais velhos. Muitos deles já foram ministros, professores catedráticos, grandes empresários e também acreditam e querem que o país para os netos seja melhor. É preciso ser inconformista. Os mais novos são, portanto, acho que vamos lá.
Surpreendeu-o o facto do pacote de medidas de emergência social do governo apresentado, esta semana, não contemplar medidas para a Saúde?
Pelo que percebi, é um primeiro pacote de medidas. Depois haverá outro a seguir para as empresas. Aliás, acho que, perante este problema da inflação, todos os países estão com o mesmo problema. Isto vai haver medidas atrás de medidas porque o problema da inflação é um tsunami, não é uma maré, é um tsunami violentíssimo que afeta a economia global. E a inflação inflige dor nomeadamente aos mais pobres, aos mais desprotegidos. Portanto, são precisas medidas mais direcionadas para esses. Acho que estas medidas têm de ser com conta peso e medida, porque Portugal tem uma dívida pública enormíssima. E as medidas para combater a inflação são fundamentalmente as medidas dos bancos centrais e quais são elas? O aumento das taxas de juro.
Ainda esta semana o Banco Central Europeu voltou a subir as taxas diretoras em mais 75 pontos base para 1,25%.
E o aumento das taxas de juro vai implicar o aumento dos juros das dívidas soberanas, que nos atinge, e também das dívidas privadas, das empresas, em geral. Portanto, há que ter parcimónia no gasto dos fundos públicos, porque podemos precisar deles mais tarde, se os juros aumentarem muito.
Mas o ministro das Finanças disse que reviu em baixa a dívida pública. Espera que desça mais do que o esperado, isto é, atinja um valor inferior a 120 % do PIB.
Isso é fundamental porque Portugal tem de se manter fora do radar das instituições que medem os ratings das dívidas soberanas. Há que ter bom senso, equilíbrio. Até porque não sabemos o que vai acontecer. É a própria inflação. Há quem diga que os piores momentos já passaram e que agora poderá começar a baixar. É natural, porque só a decisão de aumentar as taxas de juros da Reserva Federal norte-americana e do Banco Central Europeu faz as expectativas dos mercados e dos atores económicos baixarem. No fundo, o que os bancos centrais estão a fazer é criar uma recessão. Aliás, o presidente da Reserva Federal já o disse. Os americanos nisso são muito claros, os europeus normalmente iludem mais. É travar a economia, tirar dinheiro da economia e isso cria dor. E o que é que os governos têm que fazer? Evitar que atinja os do costume que são os mais fracos. Isto é muito difícil, requer muita medida. Isto vai ser o primeiro pacote. Vai ter que haver muitas mais medidas. A medida de fundo, e isso compete aos think tanks e à SEDES, às academias e universidade, é pensar como é que conseguimos combater a inflação agora conjunturalmente e, ao mesmo tempo, conseguirmos resolver este problema estruturalmente. E aí o que me parece é que o essencial é criar condições para que haja crescimento económico mal seja possível, após este período de abrandamento ou de recessão. Quero querer que Portugal, apesar de tudo, dadas a circunstâncias que disse há bocado de sermos um porto de abrigo, pode talvez evitar uma recessão. Outros países europeus, mais do centro da Europa, vão tê-la. Mas Portugal tem esta vantagem geográfica e poderá escapar talvez com menos dor. E também temos outra vantagem que é a energia. Não dependemos do gás como eles dependem, também não temos aquecimento central em casa. Sofremos mais no inverno com o frio. O que temos de fazer? Temos de acelerar o aproveitamento da energia solar, temos muito sol e agora com o aquecimento global temos mais. E, quando digo solar, não estou a dizer só centrais. É ter em casa, nos telhados dos portugueses, energia solar. Temos energia eólica, teremos o hidrogénio que também é fundamental. E acho que, em termos ibéricos, não podemos deixar o nuclear. Pelo menos manter as centrais que temos e, por ventura, ter mais, porque agora há pequenas centrais nucleares. A energia nuclear vai ter um papel decisivo. E outra novidade desta crise. Temos de ter uma energia não intermitente, que garanta quando não há sol, água ou vento.
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Esta crise vai potenciar a energia nuclear?
O hidrogénio será um bocado isso, mas ainda não está desenvolvido até esse ponto. Acho que o nuclear tem aqui um papel. Não tenho dúvidas que a Alemanha irá mudar a agulha, irá voltar atrás e manter as centrais nucleares. A França fez essa aposta, a Inglaterra também vai ter mais investimento nessa área assim como o Canadá e os EUA. Não estou a dizer que Portugal precisa de centrais nucleares. Estou a dizer que Península Ibérica deverá manter as que tem e, por ventura, ter mais. Claro que uma central nuclear demora a estar construída, pelo menos dez anos. São investimentos a longo prazo. Mas é uma energia não intermitente que me parece óbvia, porque temos de deixar os fósseis rapidamente, porque temos um desastre climático à nossa frente que é evidente e só não o vê quem é tonto. Temos de ir por aí para garantir o nosso futuro e também pelas questões da guerra.
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No pacote de ajudas, apresentado pelo governo, como avalia o bónus de mais meia pensão dada aos pensionistas e depois a redução na atualização regular para 2023? Não existe aqui efetivamente um ganho, bem pelo contrário.
De segurança social não sou expert. Tenho um grupo na SEDES que trata desse assunto. A única coisa que me parece aqui é que, face ao risco de inflação muito elevada, o facto do cálculo das pensões estar ligado à inflação complica a sustentabilidade para o futuro. Quem governa tem de ter o bom senso pelo bem de nós todos e pela sustentabilidade da Segurança Social.
A fórmula da atualização das pensões deveria ser alterada?
Qualquer governo tem que ouvir quem sabe do assunto, sentar-se à mesa e pensar como é que vai fazer a alteração do cálculo, baseado na situação atual, e como vai garantir às pessoas, nomeadamente àqueles que menos têm, que continuam a ter aumentos. Temos um problema sério. Vivemos nuns tempos muito difíceis. O governo tem de ser verdadeiro. E tem de fazer aquilo que deve ser feito e não aquilo que queremos ouvir. E, às vezes, tem de tomar medidas difíceis. O que eu espero é que o governo e, nomeadamente, a concertação social, os parceiros sociais e os partidos da oposição, nomeadamente os partidos de governo, falem, porque isto não é assunto para a politiquice do dia a dia, isto é um assunto sério. Estamos a falar da sustentabilidade das pensões para as próximas décadas. Fazer disto combate político diário acho pouco avisado. Agora é que chegou a altura de se sentarem todos à mesa e falarem menos nos holofotes.
No livro da SEDES é estimada uma dura penalização nas pensões de velhice daqui a 48 anos. A tal ponto de só valerem 38% do salário. Como é possível inverter esta tendência?
Porque temos a pirâmide social invertida.
Como se combate isso? Como se garantem pensões dignas e justas?
Com crescimento económico. É preciso atrair imigração para Portugal. Só com os portugueses e os filhos que estamos a fazer não chega. O país, para ter crescimento, tem de ser aberto. E nós somos abertos e tolerantes. Temos que abrir Portugal a quem quiser vir para cá viver e dar as mesmas condições que damos aos portugueses. Se continuarmos nesta linha de envelhecimento, estamos tramados. Nós e os europeus. E os chineses. A China tem um problema brutal com o envelhecimento da população que, aliás, se está a refletir no crescimento económico que está a abrandar, também pelos erros que cometeram na pandemia, porque os sábios chineses também cometem erros. E agora cometeram um segundo ao apoiar Putin, isto vai-lhes sair caro. Este problema do envelhecimento é geral dos países mais ricos, mais desenvolvidos e nós fazemos parte do clube. Para garantirmos o futuro temos de ter juventude que é uma coisa os EUA têm, porque é um país que atrai imigração sempre. A Inglaterra cometeu um erro ao sair da União Europeia: fechou as fronteiras e a pujança económica britânica era criada pelos outros que iam para lá, não só pelos ingleses. Temos de ter esse cosmopolitismo de visão estratégica de perceber que Portugal tem que crescer atraindo estrangeiros que venham para cá produzir, viver. Temos de aproveitar ucranianos, nepaleses, indianos, americanos, alemães que vêm para cá estudar para as nossas universidades.
Defendem por exemplo um plafonamento das pensões, isto é, um teto a partir do qual o vencimento está livre de contribuições para a Segurança Social. Isto não é um regresso à política de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, no tempo da troika? Não vai descapitalizar ainda mais a Segurança Social?
Há um texto no início do livro do conselho coordenador que diz que os textos dos grupos de trabalho são dos autores. E eu, como presidente da SEDES, não tenho de concordar com todos os textos que lá estão. As posições do livro não são finais. Vamos ter um segundo e terceiro volumes e vamos caminhando. Estruturamos a SEDES em observatórios, esses observatórios estão a crescer. Pessoalmente, acho que o Estado tem de se manter com um papel central e garantir pensões para as pessoas. Mas isso sou eu, Álvaro Beleza, socialista liberal que pensa assim. O presidente da SEDES acha que os grupos e observatório têm autonomia própria. A SEDES não é um partido, isto não é um programa de governo.
Mas disse que manter o atual modelo de atualização das pensões colocaria em causa a sustentabilidade da Segurança Social.
A sustentabilidade da Segurança Social está em causa com qualquer modelo. Acho que é preciso fazer uma reforma da atualização das pensões. Acho que este tema é central, mas acho que o governo se devia sentar com o PSD, sobretudo com o PSD, que é o outro partido de governo.
Aliás, o líder do PSD, Luis Montenegro, já se mostrou disponível.
Este é daqueles assuntos que é preciso entendimentos ao centro porque tem a ver com os nossos filhos e com os nossos netos, como é a Justiça, a Defesa, a Geopolítica. Depois há outros em que é natural que haja diferenças, senão isto não era uma democracia plural: Saúde, Economia, Ambiente. Agora, as pensões tem a ver com equilíbrio intergeracional ora, para isso, tem de haver acordos de regime.
Na Saúde acha que há margem ainda para se negociar, para haver diálogo?
Para um médico, a única coisa para a qual não há margem é a morte. Para tudo o resto tem de haver margem, têm de conversar.
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Como avalia o novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) que estabelece um modelo de gestão centrado num executivo, uma espécie de CEO? O Presidente da República já levantou algumas dúvidas.
Concordo com um modelo que é inspirado no modelo inglês. A SEDES também pensa isso, o grupo da Saúde, que é ter um diretor-geral como existe na NHS (Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido). Isso não é inventar. O Serviço Nacional de Saúde de Portugal foi inspirado no serviço nacional de saúde inglês como é também o espanhol e o italiano. Nem todos os países europeus têm sistemas assim. Quem tem este tipo de sistemas de saúde públicos e universais deve ter uma gestão integrada e centralizada. O que tem de se fazer é, e penso que é também a opinião também do sr. Presidente da República, o ministro da Saúde não tem de ser o gestor do SNS, muito menos o gestor dos recursos do SNS. O ministro da Saúde tem de tratar da nossa saúde, da prevenção, das políticas de Saúde que nos vão dar melhor saúde em geral. E ele é o ministro do sistema público de saúde, do privado, do social, de todo o sistema. É bom que a gestão da saúde seja mais profissional. O problema fundamental do SNS é a gestão, é preciso melhorar a gestão.
Como é que se melhor a gestão, como é que se economiza? Eliminando as administrações regionais?
Basicamente, é fazer melhor com o mesmo dinheiro.
Como?
Isso é a arte da gestão em qualquer coisa. Como? Faz-se. Não é impossível.
Como aproximar o topo das bases sem prejudicar a descentralização?
Faz sentido haver um diretor geral que administra a ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde), que é a central de compras do SNS, isto é essencial. Há muitas compras que têm de ser feitas para o país todo, porque é mais barato. É como a Europa está a fazer hoje para as vacinas, medicamentos. Tem de haver uma central de compras, tem de haver uma administração central que governa as ARS (administrações regionais de saúde), porque ela tem de governar todo o sistema: os cuidados primários, hospitalares e continuados. E também, como sempre defendi, um sistema de ligação de hospital, médicos de família e cuidados continuados e paliativos, porque isto está tudo integrado. Começar por haver um diretor-geral faz sentido. Depois haverá uma reforma que tem de ser gradual.
Essa reforma passa por cortar intermediários?
É. Há estruturas redundantes que vão sendo eliminadas, mas tem que se ir fazendo com o tempo, devagar.
Emagrecendo as ARS?
Isto é com pequenos toques que se vai melhorando. Se quiser mudar o mundo, não muda nada só piora. O sistema é grande, é complexo, é um grande porta-aviões. Por isso, tem de ser com pequenas mudanças, pequenos passos, mas num sentido claro e acho que este é um bom sentido. Uma coordenação de todo o sistema e depois achatar a ligação do topo à base. E depois a autonomia tão falada dos hospitais ou dos cuidados primários é contratualizar. Isto é, autonomia com responsabilização. Que é você tem uma determinada verba para gastar, tem de cumprir este orçamento mas tem liberdade para o fazer de forma diferente, porque um hospital de Bragança é muito diferente de um hospital de Faro. Para contratar alguém em Bragança, não pode estar dependente de ter de ir ao ministro da Finanças ou da Saúde. Depois, há a ligação entre as Finanças e a Saúde. As Finanças têm de confiar na Saúde, mas a Saúde tem de garantir essa confiança. Há hospitais dentro do SNS que cumprem a gestão, que gastam bem, isto é, conseguem melhorar os cuidados em saúde, aumentar as consultas, os atos médicos e, às vezes, poupar dinheiro. Há casos de boa gestão, não é nada impossível.
Mas havendo essa centralização, há uma reestruturação que se impõe mesmo que sendo lenta. Isso significaria substituir pessoas por meios digitais?
A reforma do Estado é a reforma digital, é a revolução digital acelerada. E a evolução digital que estamos a ter vai simplificar processos. Mas isto tem de se fazer devagar. Hoje, temos muito mais contacto com os pacientes por email, teleconsulta. Os doentes não têm de ir tantas vezes ao hospital como tinham. Isto foi acelerado com a pandemia e veio para ficar e bem. Estamos a acabar com o papel. No futuro, há profissionais que estavam a fazer coisas e que vão deixar de ser necessários. Mas, para já, ainda lá estão e vão estar até se reformarem. Nem é necessário mandar gente embora. Os serviços administrativos, de atendimento, muito disso vai mudar. Eu tenho dado o exemplo da banca. Hoje, o nosso banco está no telemóvel, por isso é que há menos agências bancárias, é natural. Não quer dizer que os serviços pioram, pelo contrário, até melhoraram. A Saúde está muito à frente de outros serviços públicos, está muito mais digitalizada. No Hospital Santa Maria já temos muita coisa informatizada. Às vezes não temos a noção, mas em algumas coisas estamos melhor do que outros países mais ricos. A digitalização vai ajudar a fazer essa reforma que é ter um estado mais regulador e menos prestador. Prestar onde tem de prestar mas não tem de estar em tudo. Hoje temos um estado muito gordo, muito grande muito ineficaz, com muita gente. Preciso de mais gente na indústria privada, nas empresas privadas. Preciso de mais empreendedores, mais jovens a fazer empresas, mais Califórnia, mais startups, mais unicórnios, é isso que precisamos. E menos funcionários públicos. Mas precisamos de bons funcionários públicos. Precisamos de pagar melhor. Se tiver crescimento económico e, ao mesmo tempo, for reformando o Estado, vai poder, com menos gente, fazer melhor, ter melhores serviços, e com gente mais bem paga e dignamente bem paga. Esta é a chave, mas isto não se faz em 10 anos, faz-se em décadas. Tem é que se seguir esse caminho, respeitando as pessoas.
Concordam com a meta do Governo de subir o salário mínimo, de modo a atingir os 900 euros no final da legislatura, em 2026?
Se Portugal seguir o caminho que eu anseio, o ordenado mínimo português vai ser mais de mil euros, ao nível da França.
Neste momento, é estabelecido de forma administrativa.
O problema português é o ordenado médio que é baixo e está-se a aproximar do mínimo. O mínimo é quase o médio. Porquê? Porque o pais não deixa voar. É preciso deixar a economia crescer, criar escala, deixar que as empresas cresçam. É preciso que as pessoas paguem menos IRS e tenham ordenado mais altos. Eu quero que os jovens, para ganharem dinheiro, não tenham que ir para a Suíça ou para Inglaterra. Têm que ganhar cá. E, ao fazer isso, o mínimo também aumenta, aumenta tudo, mas tem que se puxar por cima e não por baixo, não é nivelar por baixos Tem que se nivelar por cima. Espero que Portugal chegue aos 900 euros de ordenado mínimo se tive crescimento económico. E este ano, já estamos a ter crescimento. Mas temos de falar verdade, pode vir aqui um abrandamento por causa da situação internacional, mas Portugal tem capacidade de ganhar balanço, estamos com um bom balanço. Temos nómadas a querem viver cá, temos start up, estamos a atrair muito investimento. Se tivermos boas políticas de atração de investimento, acho que Portugal pode ter um crescimento robusto. E com um crescimento robusto até pode ultrapassar a meta dos 900 euros.
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Mas não estabelecer o salário mínimo de forma administrativa, certo?
Tem que estabelecer o ordenado mínimo senão... Há aqui vários problemas. Precisamos de modernizar o empresariado, precisamos de doutorados nas empresas, de gente que goste de pagar melhor aos funcionários. Também é preciso ter uma cultura empresarial atual, perceber que, para ter melhores empresas, mais qualidade dos produtos, tem de se pagar melhor. Quando isso não se consegue, compete aos governos legislar para obrigar a fazer isso. Isto ou vai a bem ou vai a mal. Agora, não se pode pagar por decreto. Sem economia, você não tem capacidade, se a economia não crescer não é o governo que vai resolver o assunto. Ao governo compete criar condições para que haja investimento. Por isso é que eu digo que é preciso diminuir a carga fiscal, ter menos impostos do que os espanhóis, no mínimo. E baixar os impostos é uma coisa que é muito difícil em Portugal baixo. Já tenho ouvido o governo falar e bem em baixar a carga fiscal sobre o trabalho e as empresas. O governo percebeu que tem de o fazer.
A SEDES conclui que o governo de António Costa já desperdiçou metade dos ganhos de produtividade conseguidos entre 2002 e 2015 pelo governo de José Sócrates e pelo programa da troika com o governo de Passos Coelho. De que forma houve desperdício? Nas palavras de António Costa, houve uma política de devolução de rendimentos.
Eu tento não olhar para trás. Estou farto de diagnósticos. Por isso, pedi que, no livro, me pusessem receitas terapêuticas. O que compete à SEDES é dizer que é preciso baixar IRS sobre as pessoas e o IRC sobre as empresas. E é preciso baixar todos os IRS não só os do meio, os de cima também. Foi o populismo que fez com que os políticos fossem mais mal pagos em Portugal. Os políticos têm de ser bem pagos. Um CEO, os administradores das empresas têm de ganhar bem, têm de ter lucros, porque acabam por investir nas suas empresas e no país. Todos os países que baixaram a carga fiscal cresceram economicamente. Não há nenhum caso em que isso não tenha acontecido.
Foi por não ter havido essa descida de impostos que houve desperdício?
Como um todo, desperdiçámos e toda a gente comete erros. Obviamente que a geringonça não ajudou muito porque era o governo na mão ou dependente de partidos que têm, e estou a ser simpático, pouca simpatia pela economia de mercado. O capitalismo é muito cruel, muito injusto. Mas vou dizer do capitalismo o que Churchill disse da democracia: a democracia liberal não é perfeita, tem muitas imperfeições, até queremos melhorar o sistema liberal, mas ainda não inventaram melhor. Ainda não houve um sistema em que as pessoas sejam tão felizes. Aqueles que se afogam para vir para a Europa não é só para terem mais dinheiro e uma vida melhor é também porque querem viver em liberdade. A democracia liberal é o sistema mais consentâneo com a natureza humana. O capitalismo é igual. É muito cruel, mas ainda não se inventou outro sistema económico que tirasse da miséria centenas de milhões de pessoas como tirou na China ou na Índia. Agora, o que compete aos governos, e isso é a social-democracia, o socialismo democrático, o socialismo liberal, é domar a besta, é domar o capitalismo. Precisamos de empresários a ganhar dinheiro e com lucro e com sucesso. Depois compete ao Estado regular essa atividade para que ninguém fique para trás. A chave é como é que conseguimos fazer isto sem que ninguém fique para trás. E mesmo a Suécia, os países do norte da Europa, mesmo os mais desenvolvidos os mais iguais, têm injustiças. Ainda hoje se vê gente a dormir no chão na Alemanha. Não é só cá. Isto é difícil, mas temos de tentar esta quadratura do círculo. Claro que um governo com esses partidos (BE e PCP) tinha muita dificuldade, porque ainda por cima fazem um populismo de esquerda que é prometem o paraíso na terra e isso não é possível. Temos é de aprender com outros países. Os noruegueses, os finlandeses, não vivem bem, não têm melhores rendimentos? E nós não temos? Temos alguma doença? Não temos doença nenhuma.
Vem aí mais um Orçamento de Estado. O que sugeria ao governo nomeadamente na área da Saúde?
O que todos desejamos é que possa haver um Orçamento da Saúde que permita fazer as reformas para melhorar a sua gestão. O problema da saúde não é um problema de dinheiro, é um problema de gerir o dinheiro que existe, e o Orçamento da Saúde aumentado. Não é por falta de profissionais e de pessoal. É melhorar com aquilo que temos, sentar à mesas os intervenientes. Nos estamos num tempo em que é preciso muito diálogo com os médicos, os enfermeiros, técnicos administradores. Porque a dedicação dos profissionais ao SNS é brutal. Eu trabalho no SNS há 35 anos e conheço muita gente. E as pessoas são esforçadas até ao limite, porque isto não foi fácil com a pandemia. Psicologicamente também afetou os médicos, os profissionais, eu próprio. É muito difícil governar nestas alturas.
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O que espera do futuro ministro da Saúde?
Espero que haja paz. Para já é preciso acalmar isto. Não fazer politiquice, não andar aqui a arremessar uns contra os outros. Acho que é preciso melhorar a governação do SNS, havendo um diretor-geral, havendo reformas no sistema de forma a achatar o topo à base dando autonomia com responsabilidade. Acho que vai acontecer isso.
Marta Temido foi uma boa ministra?
Esse é um lugar muito difícil, talvez o mais difícil e ela apanhou uma pandemia, uma situação extra e, portanto coitada, não foi fácil. Tenho estima por ela, acho que é uma pessoa que sabe bastante, é competente, foi administradora hospitalar durante muitos anos, tem muita experiência, domina os dossiês como pouca gente. Já lhe disse que se fosse ela não tinha continuado a seguir às eleições porque saía por cima. Mas ela sacrificou-se, entendeu que devia continuar. Todos nós temos um tempo porque a República também tem isto, nós somos transitórios. Os lugares de poder devem ser transitórios.
