"Escrevi este livro sob o eco da voz da minha mãe." Lídia Jorge apresenta Misericórdia na TSF
Antes do romance houve um poema lido pela escritora quando a mãe desceu à terra. Antes do romance e do poema, um pedido. Um pedido de Misericórdia, o livro que Maria dos Remédios gostava que a filha escrevesse "para que as pessoas tivessem mais compaixão umas pelas outras". É esse livro que folheamos hoje, com Lídia Jorge, na véspera do lançamento, em Lisboa, com apresentação do cardeal José Tolentino Mendonça. "Se eu não tivesse escrito este livro, eu gostaria de ter lido um livro assim."
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Um anel, uns brincos, um colar de pérolas e um saco de pano. Dentro do saco, um bilhete manuscrito dobrado, um bloco de seis folhas em branco e um pequeno lápis aparado à faca, marco Viarco. Estes foram os últimos objetos entregues a Lídia Jorge, após o falecimento da mãe a 19 de abril de 2020. "Escrevi com esses objetos perto de mim", recorda Lídia Jorge em entrevista à TSF. "Quis fazer uma homenagem, não só a ela mas àqueles duma geração, digamos, pré tecnológica que sentiam que na escrita e na leitura se encontrava alguma coisa que as transcendia, e para mim foi muito tocante que essas últimas coisas fossem alguns papelinhos rabiscados."
Viajamos neste registo, ora biográfico, ora ficcionado, ao pisarmos o chão deste lar, onde seguimos o Atlas do último ano de vida de uma mulher, Maria Alberta Nunes Amado, de seu nome. "A minha mãe não gostava do seu nome - Maria dos Remédios - e Alberta era um dos nomes que às vezes usávamos, mas peço que leiam como uma personagem ficcionada e que me deixem para mim saber qual a distância entre a verdade e a realidade."
Esta voz feminina não é uma outra voz feminina dos livros de Lídia Jorge. "Escrevi este livro sob o eco da voz da minha mãe. Parece que acontece assim, há muitos escritores que quando a mãe ou o pai partem fazem uma espécie de incursão num outro registo, e acabam por falar de uma coisa muito mais íntima de que até aí nunca tinham falado. Há uma espécie de tremor de terra que acontece, que abala não só o que se pensa sobre a própria pessoa, mas sobre o mundo, sobre as relações humanas profundas. E a minha mãe fez-me esse desafio, e eu tomei a peito tentando reconstituir a voz interior dela."
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Em Misericórdia, Lídia Jorge descreve "o rumor de vida imenso" entre pessoas no fim da vida, "pessoas que amam, que desejam, que recordam, com uma vitalidade completa. Eu aprendi que neste ambiente concentracionário que é um lar, a vida alarga a experiência humana, não a restringe". E espera ter sabido revelar o que a mãe lhe transmitia sobre o trabalho "notável dos bons cuidadores. Se o meu livro não é suficientemente eloquente então é preciso alguém escrever outro livro sobre isso, porque é um sítio onde se aprende muito sobre humanidade". A mãe de Lídia Jorge vivia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, em Loulé.
Mãe e filha falaram pela última vez a 8 de março quando o lar fechou as portas e Maria dos Remédios faleceu quatro dias depois, vítima de Covid: "A minha mãe viveu a vida como um triunfo, cada meta que ultrapassava era um triunfo, e eu à medida que ia escrevendo este livro senti cada vez mais essa voz interior e senti que não havia perda, é um livro que eu tentei pôr toda a vitalidade que vi."
Lídia Jorge é "uma escritora que faz amor amor com o Universo", tal como a filha escritora de Maria Alberta, expressão retirada de um dos diálogos entre as duas que podemos ler em Misericórdia. "Acho que sim", consente. "Tentar compreender e maravilhar-nos com o mundo, mesmo que ele seja incompreensível." É isso que acredita perseguir no final de cada livro. "Voltei a não descobrir aquilo que eu queria, vou precisar de voltar a escrever outro livro."
Estava, de resto, com outro romance em mãos, que interrompeu, mas sabe agora que vai precisar de "palavras mais duras" para o retomar. Dececionada e em choque, perante a ameaça de um inverno nuclear, Lídia Jorge dispara as palavras que a consomem. "Sei claramente que para toda a criança que está num berço, há um homem que está inventando uma arma para a matar." As eleições no Brasil são outra preocupação: "É um tudo de ensaio, pode acontecer em qualquer parte do mundo, e pode contaminar a sociedade europeia."
O mundo precisa de Misericórdia. O lançamento do novo romance de Lídia Jorge é esta sexta-feira na Biblioteca do Palácio Galveias, com apresentação do cardeal José Tolentino Mendonça e leituras de Ana Zanati.