A investigadora Joana Torres lançou uma campanha de recolha de dentes de leite para poder estudar a doença inflamatória intestinal. O projeto chama-se "Fada dos Dentes" e vai ajudar a estudar uma doença que afeta cada vez mais pessoas em Portugal
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Foi em Nova Iorque, onde passou alguns anos a fazer investigação na área da gastrenterologista no hospital Mount Sinai, que a investigadora Joana Torres percebeu a utilidade da tradição da fada dos dentes para estudar a doença inflamatória intestinal.
As reações que recebia quando falava da tradição portuguesa de guardar os dentes de leite e até usá-los para fazer brincos ou anéis deu-lhe a ideia de incluir no estudo uma recolha junto dos portugueses.
É a primeira vez que alguém que faz um estudo que usa os dentes para estudar a doença inflamatória intestinal, manifestada por duas patologias: a doença de Crohn e a colite ulcerosa.
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São doenças crónicas que afetam o tubo digestivo, diagnosticadas sobretudo entre os 15 os 35 anos de idade. As patologias provocam diarreia, dor abdominal, perda de sangue e de peso ou fadiga.
"Atinge pessoas muito jovens. Pessoas que estão na faculdade, que acabaram de se casar, que querem ter filhos, que começaram um trabalho. Isto tudo é muito difícil de gerir nesta fase ativa da vida. Há uma série de exames na altura do diagnóstico. Às vezes o diagnóstico é um bocadinho demorado também. Portanto, tem um impacto grande na qualidade de vida das pessoas e nas relações pessoais, nas relações íntimas".
O impacto do ambiente na doença
Joana Torres quer perceber os possíveis fatores ambientais que precedem o desenvolvimento da doença inflamatória intestinal, já que há uma forte convicção de que o ambiente que rodeia cada doente tem um impacto no desenvolvimento da doença, devido ao "aumento no número de casos de doença, especialmente no mundo em desenvolvimento".
Países como a China, ou algumas zonas da Ásia e América do Sul, têm registado um aumento muito rápido da doença em paralelo com a industrialização que estão a sofrer, dando aos investigadores fortes convicções "de que o ambiente tem que ter um papel importante na génese da doença até porque a genética só por si não é suficiente para explicar".
Os investigadores já perceberam que há diferenças entre pais e filhos, sobretudo se cresceram em áreas diferentes do globo.
"Por exemplo, as populações que migram de zonas de baixa incidência, em que a doença é rara e que migram para zonas de alta incidência. Quando essas populações chegam lá, os adultos vão continuar a ter um baixo risco de doença mas os filhos que nascem nesses países de alta incidência já vão ter um risco alto de doença inflamatória intestinal", exemplifica.
Há indícios importantes que mostram que a poluição, a dieta, o tabaco ou os medicamentos podem ter um papel no desenvolvimento da doença mas é difícil prová-lo.
Dentes são como anéis das árvores
É aqui que entram os dentes de leite, já que armazenam informação ambiental devido ao acumular de compostos inorgânicos, orgânicos e metais ao longo do seu desenvolvimento.
"No caso concreto dos dentes de leite, eles começam-se a desenvolver no segundo trimestre da gravidez e desenvolvem-se de forma concêntrica, um bocadinho como os anéis das árvores. Nós sabemos que os biólogos, através dos estudo daqueles anéis concêntricos da árvores, conseguem saber se naquele ano houve uma seca, se houve um incêndio, se houve uma praga", explica a investigadora.
O estudo da investigadora vai olhar para os dentes camada a camada, depois de dissecados com ajuda de uma técnica desenvolvida na Icahn School of Medicine, parte do hospital Mount Sinai em Nova Iorque.
Através da análise do dente, os investigadores pretendem quantificar e avaliar quando é que as exposições ambientais ocorreram na vida de cada doente, "quase semana a semana".
Campanha de recolha de dentes
A investigadora espera conseguir esta informação valiosa através de uma campanha de recolha de dentes com a ajuda da famosa fada dos dentes, uma tradição portuguesa que chamou a atenção na comunidade científica internacional.
"Nós já temos apresentado o estudo em conferências internacionais e, realmente, apercebo-me que não é uma tradição que todos os países têm. Chama a atenção das pessoas e, de certa forma, acham piada".
Joana Torres espera que muitos portugueses possam remexer em gavetas para encontrar a caixa de ourivesaria ou o envelope onde as mães costumavam guardar os dentes de leite.
A equipa de investigadores está a aceitar doações de pessoas com e sem doença inflamatória intestinal. Até agora foram contactados por cerca de 100 pessoas mas precisam de mais amostras.
"Podem enviar um email para estudo.fada.dentes@gmail.com com um contacto e dizer qual é a hora preferível para serem contactadas", explica.
Estudo piloto promete
A equipa já conduziu um estudo piloto para avaliar a consistência dos resultados antes de avançar para um estudo maior. Recolheram 30 dentes de leite e os resultados prometem.
"O que se verificou foi que havia realmente uma diferença na exposição ao cobre, ao chumbo, ao zinco e ao crómio. São quatro metais pesados e essa exposição era diferente e, normalmente, era mais elevada em doentes que desenvolveram doença inflamatória intestinal e ocorria no final da gravidez e nos primeiros seis meses de vida".
O estudo piloto sustentou a investigação e ajudou a pedir financiamento. Joana Torres venceu uma bolsa de 50 mil euros da Organização Internacional para o Estudo da Doença Inflamatória Intestinal e espera concluir o estudo nos próximos dois anos.
Há um aumento de casos em Portugal
A investigadora, que é também gastrenterologista no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, tem assistido a um aumento de pessoas com a doença de Crohn ou colite ulcerosa.
"Tenho a noção que existe um aumento de casos em Portugal e acho que todos os colegas têm um bocadinho esta noção. Existe também um aumento de apresentações um bocadinho mais agressivas logo no momento do diagnóstico".
Aumentam os casos mas também os tratamentos e a investigação. "As coisas mudaram muito nos últimos anos com a chegada de novas terapêuticas. A comunidade internacional tem feito um enorme esforço para tentar trabalhar no sentido de fazer uma medicina mais personalizada. Ou seja, arranjar mecanismos que nos permitam escolher para cada doente qual é o tratamento melhor, em vez de estarmos a correr os medicamentos a testar e ir esgotando as classes terapêuticas".
Esta Fada dos Dentes pode não deixar prendas debaixo da almofada mas quem sabe e ajuda a oferecer uma cura para as doenças intestinais.