"Esta morte é muito esquisita e não queria ir agora." Retrato do Portugal idoso
De acordo com o Euromonitor International, Portugal é o quinto país mais envelhecido do mundo. Onde vivem os idosos deste país e como vivem o confinamento? Um retrato da terceira idade, que é também uma fotografia dos que mais morrem com Covid-19.
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"A minha porta está fechada com o trinco." Foi a primeira medida que Adília Casadinho, que já venceu um cancro e enterrou o marido, tomou para deixar do lado de fora o vírus de que todos falam. A rua onde vive, no bairro alfacinha de Alcântara, é a soma de vários vazios que não lhe interessam.
Tem estado em casa sozinha, "às vezes, aborrecida, outras vezes, menos", mas sempre de sentinela. Não quer avolumar-se e diluir-se nas estatísticas, desfavoráveis aos seus 74 anos. Lisboa, o segundo concelho mais afetado pela pandemia, regista por esta hora 633 casos de infeção pelo novo coronavírus, 308 dos quais na faixa etária entre os 70 e os 79 anos, e a taxa de letalidade para os idosos ultrapassa largamente os 2% calculados para a totalidade da população portuguesa.
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"Eu sei que vou desta... Mas assim, não. Esta morte é muito esquisita, e eu não queria ir agora, sozinha." Adília Casadinho tem álcool para desinfetar as mãos na cozinha, mas o que a salva, garante, é um "telefone" de fios invisíveis com a extensão dos abraços que quer dar. A vida está estacionada numa avenida sem carros; até a consulta que era para março "lá ficou para junho e talvez ainda seja adiada".
Só que a angústia é uma visita inesperada, surge sem precisar de tocar à campainha quando um trânsito de informação tem sinal verde para passar. "Estou a par de tudo, mas enerva-me ver todos os dias as notícias, dá um nó no estômago", conta Adília Casadinho à TSF.
Os idosos querem ouvir "como é bom viver"
Ao padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, têm chegado "muitos alertas de pessoas que já não aguentam estar fechadas em casa, só a ouvir falar de Covid-19, de mortes". Dos 140 óbitos que a doença já provocou em Portugal, 132 são de idosos, ou seja, de pessoas com 65 ou mais anos. O medo, no entanto, não é passível de tradução numérica: assentam-lhe a meninice dos sustos noturnos e a maturidade dos cabelos brancos.
"Os idosos sabem que não viverão eternamente aqui na Terra, mas não querem ouvir falar daquilo que acontece a todos. Querem ouvir falar da vida e de como é bom viver." Lino Maia acredita que, neste sentido, "a comunicação social pode dar um contributo importante, divulgando conteúdos mais divertidos". Não se trata de baixar a guarda, mas de providenciar um desvio do foco desta lupa que agora é usada para ver um mundo novo, uma forma de "perspetivar a vida e como ela é boa".
Para muitos idosos, já nem mesmo a religião é um reduto seguro. "Até isso lhes tem falhado - a igreja tem de fechar, obviamente -, e falta-lhes o 'algo mais' que lhes espanta o medo e o pânico", constata o padre, de 72 anos.
Lino Maia é, além de uma pessoa idosa preocupada com o surto do novo coronavírus, o representante das 843 instituições sociais que acolhem idosos em todo o território de Portugal continental. Tem assistido às últimas medidas do Governo, nomeadamente a de avançar com um plano de rastreios em lares de idosos nos concelhos de Lisboa, Aveiro, Évora e Guarda, e lembra que "as áreas mais necessitadas serão o Norte e mais concretamente o Porto." Mas porque ficou esta região do país de fora? A TSF tentou obter respostas junto do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sobre a escolha das cidades que iniciam as vagas de testes, mas ainda não obteve respostas.
Lino Maia acredita que há um "equívoco" na conclusão de que o Porto foi subalternizado neste processo. Apesar de ser o concelho com mais casos positivos e uma das cidades mais envelhecidas do país, não incluir o concelho nortenho nesta fase inicial de testagem pode ser sinónimo de poupar recursos: "O Porto já tinha anunciado uma atenção especial e já tinham sido anunciados testes extraordinários na Área Metropolitana do Porto, e algumas autarquias têm vindo a anunciar intervenções", assinala o presidente da confederação que agrega os lares do setor social.
"Testes, testes, testes... É o que é importante fazer", admite Lino Maia, mas faz questão de sublinhar que há outras respostas que têm de acompanhar aquilo que é apenas a criação de uma referência de casos. "É necessário que haja identificação de residências alternativas para idosos", já que estes "normalmente não têm capacidade para distinguir e distanciar os que estão infetados dos que não estão". O padre explica ainda à TSF a necessidade de identificar voluntários, que se prende com não haver nos lares substituição possível para os trabalhadores que forem ficando infetados.
O quinto país mais envelhecido do mundo
O país inteiro precisa, vaticina o presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, de uma "intervenção proativa". Este Portugal de que fala Lino Maia tinha, em 2018, mais de dois milhões e meio de idosos, de acordo com os dados do último ano, recolhidos pelo Instituto Nacional de Estatística.
Um relatório enviado à TSF pela consultora Informa D&B detalha também que, em março de 2019, operavam em Portugal 2500 residências para a terceira idade, num total de 98.100 lugares. Lisboa é, neste relatório, o concelho com mais lares lucrativos de idosos: 221 estruturas residenciais, com um total de 6615 lugares. Seguem-se Setúbal, Porto e Leiria.
João Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso de Idosos, explica que é difícil desenhar o mapa que configure a distribuição de lares no país. "Há uma maior concentração de lares junto às grandes cidades, nomeadamente no litoral. Há também uma diferença entre o Norte e o Sul, mas não deixa de ser irregular."
Ainda assim, João Ferreira de Almeida não tem dúvidas de que "a situação é mais grave nos lares dos distritos do Norte, especialmente no Porto, em Braga, Vila Real e Bragança". As estruturas residenciais para idosos são povoadas por uma população mais vulnerável, mas não são os únicos focos de contágio para a terceira idade. Apesar de os centros de dia estarem encerrados, e mesmo que os idosos estejam em isolamento, como lhes foi recomendado, "os apoios domiciliários continuam a operar", lembra o responsável da Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso de Idosos.
"Também é necessário dar muita atenção ao apoio domiciliário, porque as ajudantes passam a vida a saltar de casa em casa para prestar cuidados." O alerta de João Ferreira de Almeida vem acompanhado de uma preocupação maior com a região Norte do país, onde os rastreios em lares não foram garantidos na primeira fase que arranca esta segunda-feira. "Eu diria que os distritos do Norte são prioritários, porque é onde a contaminação está mais agravada, mas o Governo deverá ter mais informações", analisa.
Para não deixar entrar "o tal bicho"
Haverá, de acordo com as contas do representante dos lares lucrativos, mais de cem mil idosos em residências deste tipo, entre o setor social e a iniciativa privada. Dessas milhares de pessoas, o lar onde Fátima Garcia trabalha acolhe "perto de 55, em permanência".
A funcionária trabalha na cozinha de um lar da Maia, que prefere não identificar. "Tem sido muito difícil. Foi a pior semana da minha vida." Fátima Garcia refere-se aos cinco dias intensos em que se desdobrou para oferecer 12 horas de serviço. "Eu estive a trabalhar até sábado. Agora estou de quarentena e já lá está outra equipa. Depois ainda entra uma terceira equipa, e só depois volto ao trabalho."
Fátima Garcia garante que todos os cuidados têm sido assegurados, admitindo que é difícil ignorar o que é minúsculo mas se interpõe entre todos como um muro colossal: "Nós temos muito medo. Não o mostramos, mas sentimo-lo. Esta semana emagreci quase 6,0 kg, mas somos uma equipa e remamos para o mesmo lado: para que não entre lá o tal bicho."
As equipas foram separadas, e todos sentem o peso do afastamento, relata a funcionária residente na Maia, em entrevista à TSF. A vontade de ser família para quem já não a tem por perto mantém-na de pé, e o seu sentido de missão não conhece o significado de distanciamento. "Os utentes ficam tristes e cabisbaixos e não podem ver os familiares. Por muito que façamos, nunca lhes conseguimos dar o que as famílias dão. Nós somos a família deles agora e mal lhes podemos tocar."
A Maia é o quarto concelho do país com mais casos confirmados de Covid-19 - são mais de 300. Fátima Garcia também faz parte de um dos grupos de risco. É diabética, gostaria de ser testada e que a medida que o Governo concretiza esta segunda-feira abrangesse todo o território. Lembra Amarante, onde tem família e pessoas conhecidas de mais idade, e fica mais ansiosa. É o medo, aquele ser microscópico e invisível que não sabe ler datas de nascimento.
Oito à mesa
"Medo, medo, medo... Não tenho, mas..." Maria Ribeiro chora, mas lá reconhece: "Fico um pouco triste, por causa desta coisa que cá anda e nunca mais para." Tem 79 anos e vive em São Salvador de Briteiros, uma pequena povoação do concelho de Guimarães. Maria Ribeiro é também o rosto do Portugal rural envelhecido, onde a ausência era já uma realidade, mas o confinamento veio trazer a aflição da obrigatoriedade.
A primavera já não é a mesma no campo, e, na Rua da Igreja, já não se ouvem os sinos. "Só vou ao quintal, porque estão sempre a dizer para não sair de casa. Quer dizer, hoje fui ao posto médico das Taipas, para mudar o penso."
Maria Ribeiro fica assoberbada com a quantidade de informação que recebe, mas protege-se melhor dela que do vírus. "Quando estamos a jantar, não evito ver as notícias na televisão, porque estamos todos juntos. Mas, quando estou sozinha, não ligo o televisor." À noite, são sempre oito: os "todos" a que a idosa se refere. "Vem a minha sobrinha, a minha irmã, os netos e o marido da minha sobrinha e um cunhado..."
"Não tem medo do risco de se juntarem todos?" À pergunta, Maria Ribeiro responde sem hesitações: "À noite, somos sempre oito." Mas deveriam ser oito menos a sobrinha, que estaria na sua casa, e a irmã, os netos, menos o marido da sobrinha e o cunhado. Serão sempre oito à mesa, porque cada lugar vazio à mesa é a possibilidade da vida que renasce. À mesa serão sempre oito ausências enquanto todos forem vivos, como diria hoje um poema de José Luís Peixoto.
A conversa termina com um "cuide de si". Ainda haverá um tempo de voltarem a ser oito à mesa.