"Estamos cá, estamos vivos." Famílias e empresas que se reergueram depois dos fogos
A TSF voltou a alguns dos locais atingidos pelos incêndios de outubro de 2017. Um ano depois da tragédia, famílias e empresas reergueram-se. As memórias dos dias fatídicos permanecem.
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"É um prazer virem à nossa procura", exclama Vera Figueiredo, enquanto se encaminha, na companhia do filho, para a casa que as chamas desfiguraram o ano passado.
As marcas do incêndio de outubro de 2017 ainda são visíveis no amontoado de objetos arrumados numa das extremidades do quintal. Saltam à vista o fogão, a máquina de lavar e uma bicicleta, entre tantos outros apetrechos consumidos pelo fogo.
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Os tons escuros contrastam com a tinta branca que cobre agora a parte da casa atingida pelo incêndio, recuperada nos últimos meses. Apesar da satisfação, Sérgio Marques, o filho de Vera que tem perto de 30 anos, lamenta que o imóvel tenha ficado "descaracterizado". Onde antes existiam pedras de granito, estão hoje tijolos e cimento. "Isto pode ser muito bonitinho, muita tinta bonita, mas a essência perdeu-se", sentencia Sérgio.
O sentimento é partilhado pela mãe Vera que admite "alguma dificuldade em habituar-se a certas coisas". A mulher de 72 anos sublinha que "está tudo branquinho, tudo lindo, mas o negro que havia [das pedras de granito] era simples, era mais antigo, era mais à nossa maneira".
A casa de Vera e Sérgio, situada na aldeia de Casal da Travancinha, é uma das dez habitações já reconstruídas no concelho de Seia, num universo de 37 que estão a ser apoiadas no âmbito do Programa de Apoio à Reconstrução de Habitação Permanente, coordenado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Centro.
Para além da recuperação da casa, foram ainda reconstruídas as lojas, um forno e um lagar. Os custos da intervenção suscitam algumas dúvidas a Sérgio. "Acho que os valores fogem um pouco à realidade porque as pessoas na imprensa e nas redes sociais falam de valores astronómicos, 116... 140 [mil euros]. Esse valor dava para fazer uma casa de raiz com chave na mão. Pergunto eu onde é que está o dinheiro".
Apesar da casa estar pronta a habitar, mãe e filho continuam a viver na residência de uma cunhada de Vera, situada a escassos metros. Foi aí que ficaram no último ano. Ainda não fizeram a mudança porque, segundo Sérgio, não têm "fogão, nem nada para fazer a comida". Os objetos de casa que se queimaram durante os incêndios ainda não foram substituídos. A família espera vir a obter apoio para a aquisição de novos eletrodomésticos.
O facto de terem agora uma casa de cara lavada não faz esquecer os momentos vividos há um ano. "Infelizmente tenho essas recordações, (...) tento esquecer mas, de vez em quando, lá vem à ideia, à memória", conta Sérgio.
A paisagem não ajuda a trancar essas imagens num baú. À volta da casa existem inúmeros pinheiros e eucaliptos e uma cor dominante - "tudo negro e os pinheiros que sobreviveram, por incrível que pareça, estavam 'lindões', e agora estão todos amarelos. Há um micróbio, uma lagarta qualquer que os está a matar".
Chão do Rio
Ali não muito longe, em Travancinha, fica situada uma unidade de turismo rural. A paisagem é bem diferente, pelo menos nos limites mais próximos das casas que integram o espaço. Sobressai o verde.
Explica Sofia, funcionária responsável pela unidade, que a "envolvente natural das casas é maioritariamente composta por carvalhos e mesmo aqueles que sofreram com o calor no dia do incêndio recuperaram com uma facilidade fantástica".
A TSF já aqui tinha estado há cerca um ano. Na altura, o turismo rural Chão de Rio estava encerrado. Faziam-se obras. Tinham sido atingidas pelas chamas duas casas e a receção. O espaço voltou a abrir cerca de oito meses depois e a procura não se ressentiu. Segundo Sofia, o negócio "felizmente está a correr bem". "Até podemos dizer que estamos praticamente na normalidade. Os meses de verão foram quase normais comparando com os anos anteriores. Isso deixa-nos contentes."
Sobre rodas, ainda que a velocidade moderada
Uma das empresas mais atingidas pelos incêndios de outubro no concelho de Seia foi a AS Brito, uma oficina de comércio de pneus e pequenas reparações. Registou perdas totais.
O dia do incêndio é recordado por Cristina Simões. A gerente da oficina lembra que "todo o concelho estava a arder" e que, face à impossibilidade de se deslocar à empresa, manteve-se durante boa parte da noite em contacto com um "colega que conseguiu ir lá".
O colega é Nuno Dias que, quando chegou, percebeu que a oficina "estava a arder só um bocado da parte de trás". Ainda tentou "deitar água, mas (...) não havia nada a fazer". "Lembrei-me só dos cães, foi a única coisa que me lembrei, de resto não me lembrei de mais nada".
Só no dia seguinte Cristina se apercebeu da real dimensão da tragédia. A oficina tinha sido totalmente consumida pelo incêndio. "Não restou nada". Nesse mesmo dia telefonou ao proprietário, que reside na Alemanha. "Ele disse-me: ainda hoje estou aí. E às quatro e meia da tarde estava cá. Eu estava presente quando ele chegou e pensei que fosse o fim, claro que sim".
O desfecho acabou por não ser esse, muito por causa da resposta rápida da seguradora. "Fala-se muito mal dos seguros, mas eu não posso falar. A seguradora foi a entidade que melhor se comportou connosco. Um mês e pouco depois tinha o dinheiro na conta", enaltece Cristina.
Decisivo para que a empresa pudesse voltar a abrir portas foi também a vontade de António Brito, o proprietário. A gerente da oficina fala em nobreza de espírito: "Todos nós temos muito a agradecer-lhe porque ele fez isto por nós. Tenho a certeza que 98% das pessoas na situação dele tinham metido o dinheiro do seguro ao bolso e não abriam".
António Brito abriu. Com o dinheiro do seguro, a ajuda do fundo do estado gerido pela CCDR do centro e com verbas próprias comprou um lote de terreno no parque industrial da Vila Chã, às portas de Seia. Construiu de raiz a nova oficina e abriu o espaço oito meses depois do incêndio. Todos os funcionários que trabalhavam na empresa no momento da catástrofe por cá continuam e até já foram contratados mais dois. Sinal de que as coisas estão a correr bem? "Fazemos por isso todos os dias. Não está tanto como nós queremos porque o mercado não está muito famoso, mas não está pior do que o que estava", constata Cristina.
O desfecho desta empresa é uma pequena vitória de funcionários e proprietário sobre as memórias, os medos, as angústias, o desespero que resultaram das chamas. "Todos nós temos uma história. Na minha casa arderam as vedações do jardim. Eu tenho uma casa à minha frente que ardeu na totalidade. São coisas que nunca vou esquecer e houve casos piores", garante Cristina.
"É o que eu costumo dizer, nós estamos cá, estamos vivos. Houve pessoas que não tiveram essa sorte."