"Eu escolhi rebentar o meu corpo." Beatriz Batarda sobre "Great Yarmouth: Provisional Figures"
O filme de Marco Martins está a chegar às salas de cinema.
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"Meus amigos, melhor que isto já não vai dar." Dito assim pode até criar a ilusão de uma entrega menor, ou de alguém que se cansou de correr atrás da construção da personagem. É precisamente o oposto, ou não fosse Beatriz Batarda, a atriz desafiada por Marco Martins para o filme que agora estreia em Portugal.
Beatriz Batarda trabalhou na fábrica de abate de perus, trabalhou num bar, fumou em excesso, aprendeu a dançar, treinou o sotaque e, ao longo de seis meses de noites mal dormidas, "procurou os trilhos mais obscuros" até ressoar nela a voz de Tânia. "Um corpo mutilado e deformado", realça o realizador que mergulhou com a equipa na dura realidade dos imigrantes portugueses que aterram numa vila fantasma de Inglaterra e se transformam em "zombies da classe operária". Tânia é "a mãe de todos os portugueses", e o novo esplendor de Beatriz Batarda.
É preciso recuar no tempo até 2016, ano em que Marco Martins é desafiado a visitar Great Yarmouth, para se alcançar toda a dimensão do novo filme do realizador: "Eu tinha acabado mais ou menos de lançar o São Jorge e fui convidado a visitar aquele local, por causa da raiz social do meu trabalho."
Encenou um espetáculo, foi de conversa em conversa, de emigrante em emigrante, testemunho após testemunho, foi percebendo que a história não terminava ali. A ação decorre a poucos meses do Brexit, momento político que agrava e amplia as consequências dos trabalhadores contratados para uma fábrica de abate de perus. "É a partir dos microrrelatos desses trabalhadores que o guião começa a surgir, num quadro de horror sobre aquele trabalho, aquele sítio e aquele local."
Marco Martins imaginou Tânia, a partir duma mulher que viu à porta da fábrica. Beatriz Batarda deu-lhe o corpo e a vida agora projetada no ecrã. "Fui sem reservas, escolhi entregar-me completamente, rebentar o corpo", explica a atriz.
"Temos de escolher os papéis em que fazemos isto, sujeitar o corpo a uma espécie de tortura e a certa altura sabermos que melhor que isto não vai dar. Permitimo-nos ir a estes sítios, visitar estes trilhos obscuros sabendo que podemos regressar a qualquer coisa que nos segura a seguir. Não sei se sobreviveria, se voltasse para uma casa vazia. A família e os amigos são aquilo que nos refaz para renascer e fazer outro projeto a seguir", reflete a atriz.
Cabe aqui a partilha feita por Bruno Nogueira, companheiro da atriz, nas redes sociais: "O trabalho mais avassalador que a vi fazer. Um filme em forma de Beatriz."
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E afinal de quem falamos, quando falamos da tal mãe de todos os portugueses? "A Tânia acredita que pode fazer a diferença na vida daquelas pessoas. Aquilo que a move é o melhor. Tem um sonho para ela, mas acredita que as pode aliviar e que tudo poderia ser muito pior. É uma mulher cheia de contradições, como todos nós, o que a torna mais humana, mas que não está movida por um bem ou por um mal. Está movida por um sonho e por uma missão, na cabeça dela, e o resultado disso é o horror."
Nas palavras de Marco Martins "há um corpo mutilado e deformado nesta mulher, que resulta de cargas de trabalho que não são razoáveis, uma dieta alimentar pobre e um deserto emocional num sítio longe de tudo, em que o trabalho tem pouco valor". Recorda que na peça encenada em 2018 "as pessoas que entraram tinham lesões ou nas mãos ou nas costas e isso tinha de estar no filme de uma forma muito violenta".
"No fundo, aquela ideia da Revolução Industrial, de elevador social, ficou lá muito para trás e o que está ali é novo e não é uma coisa boa", explica. O retrato duro e desesperançado, onde as pessoas são tratadas como mercadoria, num mundo desumanizado.
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"Foi uma luta para manter o título", confessa o realizador Marco Martins, empenhado na verdade da expressão - provisional figures - que em inglês tem o duplo sentido de figura e de número. A tradução à letra para o português deitaria por terra um dos sentidos trágicos que o filme agita sem rodeios. São figuras e são números: "zombies da classe operária".
Nuno Lopes, Romeu Runa, Rita Cabaço e o ator inglês Kris Hitchen juntam-se a Beatriz Batarda num elenco desenhado por Marco Martins, num filme com produção da Pedra no Sapato.
OUÇA O PROGRAMA UMA QUESTÃO DE ADN, COM BEATRIZ BATARDA E MARCO MARTINS