Mais receita, menos despesa, orçamento retificativo mais provável. Economistas Ricardo Paes Mamede e Ricardo Reis avisam que o coronavírus pode estragar o excedente nas contas públicas.
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Dois economistas, uma conclusão: se o surto do novo coronavírus continuar a alastrar, o governo pode vir a ser obrigado a apresentar um orçamento retificativo. E se o executivo for forçado a rever a estratégia orçamental, a meta para atingir um excedente nas contas públicas deve cair. Ricardo Paes Mamede, do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa e Ricardo Reis, da Universidade Católica, explicam o "mecanismo de transmissão" do vírus às finanças do Estado.
Um Orçamento desatualizado à nascença?
A poucos dias da entrada em vigor do Orçamento do Estado (OE) para este ano, o documento já estará desatualizado porque "foi feito com premissas que não se aplicam nesta altura", avisa Ricardo Reis, professor de Economia na Universidade Católica: o OE "foi feito com uma expectativa em relação à atividade económica que não tem nada a ver com aquilo que vai acontecer. E era impossível prever, porque isto nunca aconteceu", sublinha.
O economista está convencido que "vamos ter consequências gravíssimas para a economia e que vão exigir um retificativo" mas desdramatiza esse efeito: "isso não tem nada de mal neste contexto, até se pede um retificativo. Alguma coisa tem de ser feita para retificar a economia toda".
Já Ricardo Paes Mamede, professor no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, não vai tão longe: "Seria precipitado o governo começar já a rever o Orçamento, mas a probabilidade de haver um retificativo neste ano é muito maior do que em anos anteriores", admite.
Mário Centeno inscreveu no Orçamento do Estado uma meta inédita na história democrática do país: um excedente orçamental de 0,2% do PIB. Para Ricardo Reis, a meta deve ser questionada, à luz do surto do novo coronavírus, pelo próprio executivo: "é aconselhável ao governo ter... não digo despesismo, não é fazer coisas de que não precisamos, mas vamos precisar de fazer coisas que vão gastar os excedentes que tivermos", afirma.
Paes Mamede admite que, dependendo da evolução do vírus e das consequências económicas da doença, pode haver "a necessidade de rever fortemente a estratégia orçamental para este ano" e afirma que se isso se verificar, "uma das coisas que necessariamente terá de ser revista é o objetivo para o saldo orçamental. Não é verdadeiramente normal que países que estão em forte dificuldade económica tenham contas públicas positivas. Isso significa o Estado estar a fazer mal à economia, o Estado a fazer mal à sociedade", porque "um Estado ter excedente orçamental num contexto de forte abrandamento da atividade económica, significa que o Estado está a retirar dinheiro à economia, porque tem mais receitas do que despesa. Num momento de abrandamento económico, se há coisa que o Estado não deve fazer é retirar dinheiro à economia".
Receita e despesa sob observação médica
Ricardo Paes Mamede sublinha o custo, ainda indefinido, de medidas já tomadas pelo executivo: "quando o governo se predispõe a ajudar a financiar uma linha de crédito para as PME que tenham registado quebras na faturação, quando decide agilizar o recurso ao layoff das empresas com quebras abruptas de vendas, isto são medidas que têm impacto nas contas públicas", recorda.
No capítulo do aumento da despesa, o outro economista entrevistado pela TSF, Ricardo Reis, alerta que os custos com saúde vão disparar: "vai haver um desgaste enorme nas contas do Serviço Nacional de Saúde em que vamos ter de mobilizar todos os recursos disponíveis e mesmo alguns que não estejam disponíveis". Esses custos extraordinários vão registar-se "não apenas em medicamentos que tenham de ser comprados, que pelas forças do mercado terão preços mais altos. Também terão de ser adquiridos equipamentos médicos, e isso vai fazer subir a despesa em consumíveis".
Para além disso, haverá uma subida dos gastos com pessoal. "As horas extraordinárias são muito mais dispendiosas com 35 horas do que com 40 horas de trabalho semanal", calcula Reis, que realça no entanto que esta opinião "não é uma crítica ao que foi feito, não é altura para criticar nada". O economista acrescenta que no lado da despesa também haverá custos indiretos, como "nas forças de segurança".
No capítulo da receita, Paes Mamede aponta os "mecanismos de transmissão variadíssimos" que o vírus pode ter no encaixe do Estado. O economista sublinha que "se estamos perante uma situação em que a produção e as compras são afetadas, isto significa que quer os impostos indiretos, nomeadamente o IVA, quer os impostos diretos, e em particular o IRC e o IRS, serão afetados".
O coronavírus vai ter, explica o professor universitário, um efeito de dominó na economia, e, por arrasto, na receita que Estado arrecada com imposots: "se há paralisação ou abrandamento da atividade económica, as empresas têm menos lucros, há menos pessoas a trabalhar menos tempo, há menos rendimento a ser gerado. Se chegarmos ao ponto de ter medidas tão severas como na China - e que estão a começar a ser adotadas em Itália, como impor quarentenas e grandes restrições aos movimentos -, isso afeta também o consumo e tem grande impacto na receita de IVA", recorda.
Ricardo Reis tem um entendimento semelhante, e exemplifica com um sector que tem crescido nos últimos anos: "se o turismo foi a boia de salvação nos últimos tempos também é o primeiro ponto a falhar neste contexto de emergência", afirma o economista, que entende que "todos os impostos associados ao turismo - a começar pelas taxas cobradas aos turistas pelas câmaras - vão ter um reflexo. E também no IVA haverá um impacto forte".
O professor da Católica realça "outro imposto que também é crítico, o imposto sobre os combustíveis, na medida em que a atividade económica vai ressentir-se de um menor número de deslocações" mas tem a expectativa que "o governo não deixe cair o preço da gasolina seguindo o preço do petróleo, e vai aproveitar esta margem para compensar".
Admitindo que esta altura é "completamente impossível" estimar um impacto concreto e numérico do coronavírus nas finanças do Estado, "até porque as estimativas que temos da China, que ainda nem terminou este ciclo, ainda não estão concluídas", Reis realça que apesar de tudo o país tem alguma margem de reação: "é muito melhor isto acontecer em março do que em outubro ou novembro. Temos tempo até ao final do ano para recuperar".