Falta de profissionais não é a única justificação para a falta de dadores de gâmetas no SNS
Para lá da falta de profissionais e da falta de oferta no setor público, o privado é mais atrativo para quem queira doar ovócitos ou espermatozoides também por causa do número de colheitas exigido até se ser dador.
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Doar gâmetas, sejam espermatozoides ou ovócitos, no Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode ser um teste à paciência, em especial se o candidato a dador for homem. A coordenadora do Centro de Procriação Medicamente Assistida do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra defende que essa demora está relacionada com o facto de no Serviço Nacional de Saúde ser obrigatório fazer-se no mínimo sete doações até de ser considerado um "dador efetivo".
A médica Teresa Almeida Santos adianta que, no caso do privado, "cada banco ou centro define as suas próprias regras e portanto pode adaptar as regras à qualidade espermática do indivíduo. Um indivíduo que tenha um esperma muito bom, provavelmente com duas ou três colheitas o critério de qualidade é suficiente para um determinado banco privado".
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Contactado pela TSF, o responsável que dirige dois centros privados de procriação medicamente assistida, um no Porto e outro em Coimbra, confirma que esta é a realidade. O médico Vladimiro Silva afirma que "não há um número fixo de recolhas. Esse número é determinado em função da qualidade cada amostra de cada candidato a dador e da disponibilidade do candidato. Às vezes chegamos às dez recolhas, em outros casos apenas quatro ou cinco".
Ainda assim, o médico Vladimiro Silva esclarece que há vários aspetos idênticos, sejam o setor público ou privado: "há critérios que são transversais para todos os centros, seja o tipo de análises que devem ser feitas antes, seja a necessidade de fazer uma quarentena de pelo menos seis meses das amostras recolhidas, no caso dos dadores masculinos".
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O cenário é igual no Centro de Procriação Medicamente Assistida do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. A coordenadora Teresa Almeida Santos acrescenta que fazer sete recolhas até se chegar a dador efetivo "é um processo longo", já que depois "é preciso esperar alguns meses para confirmar que não tinham alguma doença que possa ser transmitida pelas doações".
Número de colheitas pedidas no SNS é uma das causas para a falta de dadores
O problema maior reside no número de doações, defende a médica. "É de facto algo que exige muita persistência e disponibilidade para se ser dador efetivo. O problema da captação de dadores masculinos se se resolveria se se modificasse o esquema e não fossem necessárias sete doações", defende Teresa Almeida Santos.
Já o médico Vladimiro Silva, que opera no setor privado, considera que o problema não está tanto no número de colheitas, antes no processo de candidatura a dador que é "tem alguma complexidade", já que "exige muitos recursos humanos, a realização de campanhas, um conjunto de procedimentos que é difícil de ser feito no setor público".
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Um dos exemplos é a flexibilidade de horários. "No privado acabamos por estar mais disponíveis. Por exemplo, recebemos dadoras de óvulos num horário bastante alargado, porque sabemos que muitas das pessoas são estudantes universitárias, têm aulas, não podem estar tanto tempo à espera. A mesma coisa com os dadores de esperma. Temos de ter alguma flexibilidade para ajudar as pessoas a concretizar as dádivas", afirma Vladimiro Silva, questionado sobre as razões que levam mais dadores ao privado do que ao público.
A médica Teresa Almeida Santos revela também que, no setor público, "há esperma congelado que não pode ser disponibilizado para outros candidatos, porque cada dador só pode dar origem a oito famílias. "Enquanto o esperma estiver distribuído pelos centros do país e não soubermos o resultado do tratamento, se houve ou não nascimento de uma criança, não pode ser libertado o esperma que está congelado, por forma a não haver mais do que oito famílias que resultaram do mesmo dador", acrescenta.
Questionado sobre o mesmo facto, o médico Vladimiro Silva considera que o limite "é equilibrado" e que também se aplica ao setor privado, já que é definido pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida: "Nós com este limite conseguimos atender a muitas necessidades, claro que podia ser maior, mas não me parece que o limite esteja exageradamente restrito (...) Claro que se tivermos menos dadores estamos sempre muito mais dependentes de conhecer um resultado de um dador, para perceber se pudemos ou não utilizar no casal seguinte".
Falta de profissionais de saúde e de centros públicos continuam a desviar doadores para o privado
O SNS tem há vários anos carência de dadores. Segundo revelou o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), o serviço público recebeu, no ano passado, apenas 2,7% dos ovócitos e 4,3% dos espermatozoides doados em Portugal nesse ano. Se juntarmos o total de dádivas, apenas 3% foram para o SNS.
A presidente do CNPMA, em declarações à TSF, admite que o privado é mais atrativo por causa da oferta: "Nós temos em Portugal 18 centros de procriação medicamente assistida e no SNS temos apenas três centros". Carla Rodrigues afirma que os centros não responderam às expectativas porque, quando foram criados, "não tiveram meios e recursos humanos e físicos para que pudessem funcionar em plenitude".
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Assiste-se a uma falta de profissionais de saúde nos centros públicos que provoca uma maior demora em dar luz verde para que um dador o possa ser e, os poucos que existem, têm funções acumuladas, tornado o privado mais eficaz que o público. "Além desta função de recolha, no centro dos públicos, os mesmos profissionais com os mesmo meios têm todo um outro trabalho que um centro privado. Não tem a disponibilidade e a facilidade de imediatamente marcarem as consultas, análises e a colheita dos gâmetas. O processo devido à carência de profissionais é muito mais demorado".
A médica Teresa Almeida Santos confirma essa carência, uma vez que "os poucos profissionais ainda são distribuídos por outras atividades. A maior parte dos médicos que trabalha em procriação medicamente assistida não o faz em exclusivo. Tem que fazer serviço de urgência, nomeadamente de obstetrícia e ginecologia. É necessário mudar esta realidade, concentrar os recursos, formar e recrutar mais".
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Ainda assim a coordenadora do centro no Hospital de Coimbra garante que "todos os candidatos a dadores são atendidos" e tem sido possível marcar todas as consultas de acordo com a disponibilidade. "Os centros privados são mais eficientes na gestão do escasso número de dadores que existem em Portugal. É necessário trabalhar no setor público para que haja uma situação idêntica. Reforçar os recursos humanos é fundamental", defende.
A TSF já contactou o Ministério da Saúde, no sentido de perceber se está em equação contratar mais profissionais e agilizar o processo de candidatura a dador no setor público, para o tornar mais atrativo, mas ainda não foi possível obter qualquer resposta.
Pode até pensar-se que é a remuneração paga aos dadores, que torna o privado mais atrativo, mas não é o caso. O valor é fixado por lei e é o mesmo para os dois setores. O médico Vladimiro Silva recorda o valor pago atualmente: "No caso das mulheres, recebem por doação, duas vezes o IAS (Indexante dos apoios sociais), ou seja, 878€, tendo em conta o valor atual. No caso dos homens, cada doação está em 0,1 vezes o valor do IAS. O que dá 45€ por doação".
Mulheres doam mais do que os homens
Em Portugal, são mais as mulheres a doar do que os homens. Carla Rodrigues, que lidera o CNPMA, diz, entre sorrisos, que é um "fenómeno que deveria ser estudado", já que não uma justificação clara para isso, apenas perceções. "Talvez as mulheres tenham mais empatia pelos problemas de fertilidade de outras mulheres. Estão mais disponíveis para doar. A compensação que é paga também pode ajudar, já que implica tratamentos e um grau de exigência maior, em comparação com a doação de esperma", atira.
A falta de gâmetas masculinos também se sente no setor privado. "Os próprios centros privados também não são autossuficientes gâmetas masculinos, porque frequentemente têm de necessidade de os importar", revela Carla Rodrigues.