Fernando Araújo: "2024 foi um ano perdido. Ministério da Saúde não defendeu a reforma do SNS que estava em curso"
O primeiro diretor-executivo do SNS acusa o Governo AD de não o ter apoiado e escutado. Na Grande Entrevista TSF-JN, admite que está ao lado de Pedro Nuno Santos para ajudar na estratégia da Saúde, mesmo que não queira dizer se pretende ser ministro da Saúde de um Governo socialista
Corpo do artigo
É candidato a deputado ou a ministro da Saúde?
Sou candidato, naturalmente, a deputado. O secretário-geral, Pedro Nuno Santos, pediu-me apoio, em função do meu conhecimento e da minha experiência, em termos de medidas, propostas do lado da saúde, mas sou candidato a AR.
E no caso de vir a ser ministro da Saúde, quem será o seu diretor-executivo do SNS?
Neste momento estamos empenhados em ganhar eleições e depois será o primeiro-ministro a escolher o ministro da Saúde. Agora, o que lhes posso dizer é que a sugestão que faço ao próximo ministro da Saúde do PS, é que não faça como este Governo, ouça as pessoas, avalie o desempenho, analise as propostas e os planos que tinham previstos para implementar e as decisões sejam baseadas na competência, no valor e nunca em questões partidárias ou políticas.
Ou seja, mantém o diretor-executivo atual?
Irei ouvi-lo, o que não fizeram comigo. E dar o máximo de espaço para poder mostrar o plano e o alinhamento que tem. E, naturalmente, se estiver alinhado com as propostas, será para ficar, mas será para ficar de uma forma apoiado, respaldado, com todo o apoio que o Ministério e o Governo poderá dar para ter capacidade de implementar as reformas.
Foi isso que não sentiu?
Foi isso que não tive.
Luís Montenegro disse esta semana que houve melhorias na saúde, este Inverno, que houve menos idas às urgências, menos tempos de espera, menos mortalidade. Já Pedro Nuno Santos diz que a saúde é o maior falhanço deste Governo. Em que é que ficamos?
Ficamos nos dados objetivos, muito mais que nas impressões ou nas expectativas. Este Governo, quando entrou, tinha um plano miraculoso para mudar o SNS em 60 dias, num ano. Enfim, muitas propostas, na prática, os resultados são maus. Dito isto, o SNS tinha problemas. Atenção, o SNS é extremamente complexo. Agora o que se vê é que os problemas agravaram. Vou dar três ou quatro exemplos reais. Diziam que, e a Ministra da Saúde dizia na última campanha, que ia dar médico de família a todos os portugueses, e um ano depois tínhamos mais de 80 sem médicos de família. Dizia que ia resolver o problema da lista de espera. Ontem tivemos o relatório da Entidade reguladora de saúde que foi treinado público e o que verificámos é que temos mais doentes a aguardar cirurgia, 200 mil, mais doentes a aguardar cirurgia oncológica e quando o primeiro-ministro dizia que não havia nenhum português a aguardar para além dos tempos máximos de resposta garantidos uma cirurgia oncológica, verificámos no relatório de entidade reguladora que há 1.296 portugueses que contrariam isto. Verificámos que mesmo nas urgências, as pessoas agravaram-se. Nós na Península de Setúbal nunca tivemos uma altura com todos os blocos de partos fechado e agora tem sido rotineiro. Não conseguiram cativar médicos de família, os concursos ficaram com muito menor adesão e isso levou seguramente depois a uma menor capacidade da resposta do ponto de vista de doentes sem médico de família. Portanto, há aqui um conjunto de questões reais, objetivas, que podem ser avaliadas e que não corresponderam ao que tinha sido prometido, pelo contrário, agravaram os problemas que existiam.
E que carta é que o Partido Socialista tem na manga para a saúde?
O programa foi disponibilizado publicamente e tem lá um conjunto de medidas que eu acho muito interessantes. Do lado dos profissionais de saúde, começando se calhar por essa via que é mais importante para podermos dar uma resposta, há ali um conjunto de iniciativas que eu acho que são relevantes, desde os concursos de ingresso. Eu recordo que o concurso de ingresso na carreira médica mais rápido da história do SNS foi em 2023. No dia a seguir às notas estarem publicadas, os hospitais estavam a contratar médicos. Estes tiveram atrasos significativos. Queremos melhorar a questão das mobilidades, melhorar a questão das progressões. Os médicos e os vários profissionais de saúde estão anos à espera de uma progressão. Desistem e vão embora. Vamos apoiar a questão das rendas, vamos apoiar a formação, vamos dar mais autonomia, vamos dar também capacidade do ponto de vista de inovação e tecnologia. Queremos criar um ambiente nos quais as pessoas se sintam integradas, motivadas, com um plano de desenvolvimento profissional e pessoal, dos quais não queiram sair do SNS.
Em poucos meses, o Governo da AD fez acordos com médicos, com enfermeiros, com farmacêuticos, com os sindicatos de administração pública, que no caso da saúde, integram os assistentes operacionais. Foi isto que faltou ao PS para pacificar o setor da saúde?
Seguramente que esses acordos são importantes, naturalmente, e estavam previstos e realizados, realmente o ano passado estava previsto nesse sentido. Dito isto, é importante que haja alguma pacificação do setor. Mas o certo é que, no dia a dia, o que nós vemos, e eu continuo a trabalhar num hospital do SNS, é que as pessoas estão desanimadas, os profissionais estão desmotivados e não há, do lado das lideranças, o fio condutor, não há uma expectativa, uma estratégia, não se sabe para onde é que vai. Há uma enorme desconfiança do Governo em rendimento SNS, há interferência política e há, acima de tudo, também uma desresponsabilização para os problemas. O INEM é um bom exemplo de como é que não se deve tratar estas coisas.
A partir daquilo que disse, há pouco, das críticas que fez à situação na Península de Setúbal. Acha que é viável voltar ao modelo de funcionamento rotativo em algumas áreas, sobretudo na área de Lisboa e Vale do Tejo?
O modelo era um modelo que estava em evolução. Eu devo dizer que antes da Direção-Executiva não existia nenhum plano nacional que mostrasse quais eram os locais que estavam abertos e que responsabilidades, competências ou especialidades tinham disponíveis. Os primeiros planos que foram públicos e nos quais os jornalistas até acompanhavam foram feitos pela anterior direção executiva. E que eram planos a três meses que davam garantia do processo. Agora, não era o fim, era uma etapa do processo que estava a ser construído para depois dar estabilidade. Eu recordo que nós, no Norte, temos há muitos anos concentração de urgências por especialidade, extremamente estáveis, com respostas aos cidadãos, e, portanto, há modelos que podem ser construídos, nos quais nós temos experiência, e que estamos a tentar fazê-lo. Agora, não é possível, em meia dúzia de meses, como foi na anterior direção executiva, alterar todo o processo que estava em curso.
Então, quanto tempo é que precisa para fazer o teste do algodão, para ver se funciona ou não?
No nosso caso era um mandato, os três anos eram suficientes para poder fazer as alterações necessárias para inverter este ciclo. E estamos nesse caminho. Eu devo dizer que esta reforma que estava a ser executada, e foi executada, eu gostava aqui de dar uma nota para quem não acompanhou, foi executada pelos profissionais, de baixo para cima. Os planos de cada uma das ULS foram construídos pelos profissionais, houve cerca de 1.500 profissionais que tiveram integrados nessas instituições durante meses, a construir os vários projetos em si, apoiados pela Escola Nacional de Saúde Pública, apoiados por instituições europeias e internacionais, dos quais venho valorizar a forma como foi feita essa reforma, quer do ponto de vista da integração de cuidados clínicos, quer do ponto de vista do financiamento per capita à sociedade ao risco, evitando o financiamento pela produção. E, portanto, a reforma, que é uma reforma complexa e exigente, estava a ser executada de acordo com o cronograma que tínhamos decidido e estava alinhada com esse cronograma. E foi numa fase inicial dessa reforma que tudo foi colocado em causa e que tudo foi revertido, criando um clima de desconfiança e desorientação dentro do próprio sistema sobre qual era o rumo a tomar, que ainda neste momento não se sabe qual é.
E, portanto, continua a acreditar que é possível, senão decalcar, pelo menos adaptar o modelo que tem funcionado a Norte, mas que aparentemente a Sul parece ser mais complicado de aplicar.
É mais complicado de aplicar, mas é possível de aplicar. E é um modelo que temos também em grandes cidades da Europa, nesse sentido, onde nós nos inspiramos na altura, mas é um modelo até adaptado ao nosso SNS, portanto é um modelo que é possível de levar a termo com resultados. O que é que não é possível? Eu vou dizer o que é que não é possível. É desistir do SNS. Achar que tudo isto é muita confusão, muita incompetência, portanto, o melhor é desistir disto tudo. Isso é que não é possível. Nós continuamos a acreditar no SNS, continuamos a acreditar que o SNS tem capacidade para ser recuperado, para dar uma resposta a todos os portugueses. O SNS realmente, para muitos portugueses, é a única porta de entrada, mas não é só para muitos, é para todos. Todos os casos complexos diferenciados, é no SNS que têm resposta. E nós acreditamos que é possível recuperar este SNS e dar-lhe aqui uma nova vida, com uma nova motivação dos profissionais.
Aproveitando que fala da reforma da SNS, a reforma das unidades locais de saúde, quem está no terreno diz que nada mudou, ou seja, continua tudo muito centrado no hospital e não no doente, como era o objetivo desta reforma, portanto, e da própria integração de cuidados. Foi falta de tempo para aplicar ou é um modelo que de facto não funciona?
Quando estou a construir uma casa e está na altura de construir os alicerces e chega alguém e começa a colocar em causa os alicerces e não os quer construir depois acham que a casa não é sólida. O ano que passou, 2024, foi um ano perdido nesse sentido. O primeiro ano das ULS era um ano que devia ser extremamente acompanhado, que tínhamos nós previsto pela Direção Executiva, pelo Ministério da Saúde, de modo a dar condições, observar boas práticas, temos excelentes boas práticas de integração de cuidados em muitas ULS, dispersar as boas práticas, apoiar aqueles que tinham mais dificuldade, era um ano muito sensível, muito exigente desse sentido. Foi um ano que foi perdido porque o que veio, foi desconfiança, desmotivação, não sabiam se eram para ficar, se eram para sair, se eram para acabar, se os dirigentes ficavam, se saíam, portanto, tudo parou.
Portanto, o que está a dizer é que o atual Governo mexeu nos alicerces da sua reforma e por isso é que não está a funcionar?
Perfeitamente. E sem colocar uma alternativa. O que colocou em cima da mesa foi desconfiança. Isto é, se calhar as ULS não vão continuar, mas continuaram. Se calhar os dirigentes que estavam a dirigir as próprias unidades, que deveriam implementar os projetos, se calhar não iam continuar. E todo esse clima de falta de confiança, de alguma forma de instrumentalização das próprias instituições, levou realmente a uma paragem da reforma. E, portanto, não queiram agora colocar culpas numa reforma que travaram e que não deram condições para ser levada a termo.
E ainda vai a tempo de ser retomada esta reforma?
Vai. Eu acho que o tempo é curto, mas é possível e por isso também venho aqui à luta nesse sentido. E como eu muitos colegas meus, dos vários grupos profissionais do SNS, que acreditam que ainda é possível, que é desejável e esta é a altura certa para o fazer.
O PS está disponível para um pacto de confiança no Serviço Nacional de Saúde, como foi pedido pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro?
Eu gostei dessa expressão do senhor primeiro-ministro porque quem lançou a desconfiança no processo foi ele e o Governo em si. Eles desconfiam do SNS, não acreditam no SNS, e depois a seguir vêm pedir um pacto de confiança para o SNS? Naturalmente que estamos todos disponíveis para apoiar medidas e opções, estratégias que levem à estabilidade do processo, uma previsibilidade das reformas. Todos estamos disponíveis, mas quem trouxe essa desconfiança e quem trouxe essa instabilidade foi a AD e, portanto, acho estranho que agora, no fim do processo, quando percebem que não estão a ter os resultados que tinham propalado, venham tentar fazer um pacto nesse sentido, que nem sei exatamente com que termos.
Já agora, já que desconfia deste pacto de confiança, acha que o Partido Socialista nesta altura está mais próximo do PSD e da AD ou da esquerda em matéria de organização do serviço de saúde?
Estamos mais próximos dos utentes, que é quem nos preocupa. Não há aqui nenhum preconceito ideológico sobre nenhuma das matérias. O que nós queremos é ter uma resposta com qualidade para chegar a todas as pessoas. Isso neste momento não existe, não acontece, mas também digo que não é fácil fazê-lo. Atenção, não ouvirá nas minhas palavras, o que ouviu também na última campanha, que temos um plano miraculoso para que em meia dúzia de meses resolvermos os problemas todos. Temos uma perspetiva, uma visão de como faremos. E eu acho que isso é o mais importante sobre para onde é que deveremos caminhar.
Mas percebe que o PS, de acordo com todos os cenários de estudos eleitorais que estão feitos neste momento, o PS não conseguirá ter uma maioria absoluta para impor, vamos utilizar esta expressão, para impor um plano, ou seja, terá sempre de consensualizar quaisquer soluções que venha a adotar com outros partidos. Por isso lhe pergunto se é mais fácil este tal pacto de confiança com o PSD, com a AD, ou com os partidos à esquerda?
Eu abria aqui um bocado o horizonte que é, nós temos pessoas ligadas ao SNS, à saúde em geral, dos vários partidos que comungam nesta visão, quer dizer, e portanto eu acho que é possível de, com os vários grupos parlamentares, em cada uma das medidas, conseguir o apoio necessário para implementarmos as medidas que são necessárias. Aqui o objetivo é muito claro, é os resultados, o que é que traz melhor para as pessoas, olha para uma pessoa que não tem medo de família ou está à espera de uma cirurgia, qual é a melhor política que podemos levar a cabo para dar-lhe uma solução. É isso que temos que trabalhar e eu tenho a noção clara que há dos vários partidos abertura para que cada uma destas medidas discutidas e negociadas possa ser levada ao seu termo.
Há pouco dizia que não interessam as questões ideológicas e eu pergunto-lhe se concorda com este passo que foi dado pelo atual Governo de retomar o processo das parcerias público-privadas?
Não tenho nenhum preconceito ideológico contra parcerias público-privadas, de modo algum, foi o PS que as lançou. Na direção executiva, em 2023 lançámos a maior parceria público-privada dos últimos anos, que foi a passagem da vacinação para as farmácias comunitárias, que são privadas. Dez instituições públicas e privadas, durante meses, trabalhámos em conjunto, mudámos leis, forma de financiamento, sistema de informação, a logística, eram 3 mil farmácias que estavam aqui em causa, a formação, a campanha de comunicação, a habilitação de resultados e, portanto, instituições públicas e privadas trabalharam lado a lado com sucesso apreciável. Portanto, não tenho nenhum preconceito nisso. O que tenho de preconceito ideológico é contra má gestão e contra falta de transparência. E, portanto, eu não percebo como é que é possível lançar uma ideia sem qualquer fundamento. Isto é, foram estudadas porque é que são cinco parcerias e não seis ou três ou dois? Há capacidade do mercado para responder de forma adequada a esses cinco concursos públicos? Do lado do Estado, foi percebido, estudado, porque é que são aqueles locais? Vou dar um exemplo. Porquê Braga? Braga tem até agora uma boa gestão, com bons resultados. O facto de ter sido parceria há 10 anos não tem nenhuma justificação. Onde é que nos interessa construir parcerias se for esse o caminho certo? Se calhar nos sítios onde precisamos construir hospitais de novo, em que eventualmente aí esta dimensão privada pode ser mais célere na sua construção, podia ser uma hipótese. Agora, vou dar um exemplo. Propuseram uma parceria em Almada-Seixal. Estudaram o impacto que ia ter na Península de Setúbal essa parceria, nos hospitais do Barreiro Montijo ou na ULS de Setúbal, que são muito mais vulneráveis? Qual será o impacto da parceria em Almada Seixal? Houve algum estudo? Houve nenhum. Portanto, foi uma ideia lançada para o ar, sem qualquer base, e, portanto, eu relativamente às parcerias público-privadas estou totalmente aberto a estudá-las. Nós fazemos-las desde que defendam o interesse do Estado e dos utentes, tragam melhores soluções. Desde que não sejam apenas para distribuir rendas ou que não sejam apenas anúncios de marketing para eleições.
Mas está a dizer que abrir uma parceria público-privada num determinado local tem impacto à volta?
Tem impacto, seguramente, à sua volta. Quer dizer, não é nada imune, normalmente em termos de recursos humanos. Não é que seja mau, tem que ser estudado o impacto que isso tem para que, no final do dia, a mais-valia para os utentes seja apreciável. E, portanto, vou dar um exemplo, no Algarve, onde é necessário construir um hospital de base, há muitos anos, onde não há competição entre outras unidades do SNS à volta, onde há muito impacto da medicina privada naquele local. Até poderia ser interessante eventualmente estudarmos, volto a dizer, estudarmos uma eventual parceria no Algarve. Agora, tem que ser é com fundamento para depois que, no final do dia, tragam mais valias. Portanto, nenhum preconceito ideológico contra parcerias sociais ou contra parcerias com o setor privado. Agora, não podem, volto a dizer, é ser parcerias sem fundamento de gestão e sem transparência.
Mas aquilo que se diz é que o fim das parcerias, nomeadamente na região de Lisboa e Vale de Tejo, foi causa para a debandada de muitos profissionais de saúde, nomeadamente muitos médicos ginecologistas, obstetras, naquela região. O regresso destas parcerias poderia ser uma solução para este problema?
Poderia, eventualmente, mas também não está estudado. Tem que se perceber quando acabou as parcerias, como é que foi feito aquele final de contrato e regresso dos hospitais ao setor do SNS. Se calhar não foi bem gerido, de parte a parte, e isso provocou algum caos na sua transferência. Tem que se olhar. Agora, volto a dizer, mais que qualquer impressão que nós tenhamos, temos é que estudar bem os dossiers, e depois lançá-los com convicção e com objetividade, para que no final possamos monitorizar os resultados, avaliar, e tenhamos sucesso. Esta coisa de fazê-lo de forma superficial, a correr porque vai haver eleições, não é uma forma clara de o fazer. Vou-lhe dar um exemplo. As parcerias a acontecer, vão demorar 2, 3, 4 anos, pelo menos, entre concursos públicos, as discussões, o Tribunal de Contas, vai demorar pelo menos isso. O que aconteceu é que nos locais onde disseram que iam acontecer parcerias, já há uma enorme turbulência, porque as pessoas acham que não vale a pena fazer projetos porque isto vai passar outra vez para uma parceria. Este tipo de anúncio é o pior que há em termos de instabilidade e desconfiança sobre a própria gestão.
E sobre os centros de saúde com gestão privada, portanto as chamadas USFC, serão para reverter, no caso de vir a ser ministro da saúde?
Eu, acima de tudo, gostava de perceber exatamente o seu contexto. Primeiro, a ministra anunciou que ia haver uma ULS em Cascais Sintra. No Orçamento de Estado deste ano, a primeira proposta tinha lá que ia haver uma ULS Cascais Sintra. Depois recuaram, por conta da pressão do autarca de Sintra. Apesar de serem contra as ULS afinal queriam mais uma ULS. Depois, afinal, adjudicaram, por ajuste direto, sem nenhum concurso público, nenhuma transparência, à parceria de Cascais, a resolução de 75 mil utentes sem médico de família. Viemos a saber este ano, através da Comunicação Social, que dos 75 mil, apenas 5 mil tinham conseguido médico de família, isto é, menos que 10%. Nessas USF modelo C, que era realmente um passo de mágica para resolver muitos problemas em áreas que eram mais difíceis de captar médicos, afinal, das 20 que queriam abrir, só há 6 candidaturas efetivas e, do que se percebe, algumas delas podem chegar ao fim porque as condições não são adequadas. No final do dia não vamos ter soluções para esses fins. Mais do que estas questões de expectativas ou de desejos que tenham, temos que ter soluções consistentes e robustas para os problemas. Se não, é como o OncoStop: íamos acabar com todos os doentes à espera de uma cirurgia oncológica, mas chegámos ao final do ano e, apesar de tudo a entidade reguladora diz que temos mais doentes com cirurgia oncológica à espera. O SNS é como um relógio suíço, é muito complexo e muito sensível. Portanto, quando vamos mexer nele, temos de ter perfeita consciência e conhecimento do que estamos a fazer, ou senão o que vai acontecer é que vamos estragar.
Há pouco falava da questão de que a Ministra da Saúde prometeu médico de família para todos os portugueses. Vai deixar Pedro Nuno Santos cair na tentação de prometer médico de família para todos os portugueses?
O que vamos prometer, porque vamos cumprir, é melhorar as condições para captar profissionais nomeadamente médicos e, com isso, vamos conseguir melhorar a resposta aos utentes. Há condições para que os médicos se sintam bem neste projeto e possam concorrer e manter-se no SNS. Há vários gargalos que existem neste momento dentro do SNS, o ingresso, a mobilidade, a progressão, as condições remuneratórias, as condições do ponto de vista dos sistemas tecnológicos, a burocracia, a autonomia, há várias dimensões para as quais o programa do PS traz respostas. E todas as propostas vieram de dentro para fora, são propostas de quem trabalha todos os dias na SNS, identifica as causas dos problemas e tenta trazer respostas. Há uma prioridade absoluta neste programa de Governo e no futuro Governo do PS, se for o caso, para que a saúde tenha o centro dentro da política do Governo.
E o programa da AD não vem de baixo para cima, como gosta de dizer?
Ainda não o conhecemos. O resultado deste ano, eu diria que não. Trabalho todos os dias no hospital e não é esse o sentimento dentro do SNS, continuamos a ver os concursos a ficarem vazios, as pessoas a mudarem, porque falta algo nesse sentido. As pessoas não mudam apenas por mudar, mudam na procura de melhores condições e não é só remuneratórias. E este programa do PS traz, na minha opinião, algumas dessas respostas para esses problemas.
Quando a campanha avançar, formal ou informalmente, o Dr. Fernando Araújo estará perfeitamente identificado com aquilo que fôr o discurso político do Partido Socialista em termos de saúde?
Não há divergências. A discussão desde o início foi clara, foi deixar os profissionais, os peritos, enfim, proporem tudo o que fossem medidas e opções que considerássemos importantes para mudar o curso do SNS. E o Pedro Nuno Santos incluiu-as, aprovou-as de alguma forma e seguramente vai implementá-las quando for primeiro-ministro, se for esse o caso.
A lei de bases da saúde deve ser alterada pelo Parlamento?
Esta questão das leis e desses instrumentos jurídicos dizem muito pouco às pessoas. Nós queremos as soluções para o dia-a-dia, para os problemas concretos...
Fazer leis vai ser o seu trabalho a partir daqui a uns meses!
Nós demoramos meses a mudar leis, com grandes discussões filosóficas e do ponto de vista de ideologia, de dogmas, e depois as pessoas continuam à espera de uma consulta. Pessoalmente, preferiria muito mais devotar o meu tempo e o tempo de quem trabalha no SNS a resolver o problema dessas pessoas do que a tentar mudar grandes leis porque não é isso que limita ou estrangula a resposta.
Ou seja, preferia ser ministro da Saúde do que deputado na Assembleia da República?
Se quer que lhe diga, preferia poder ser médico, que é uma coisa que eu gosto imenso.
Foi mais feliz como médico, como gestor ou como político?
Como médico, seguramente. A satisfação que temos em melhorar a vida de alguém doente, de uma família, ou por vezes dar-lhe o conforto necessário numa fase final da vida, isso não tem preço, é uma recompensa única que levamos para sempre connosco.
E o que é que acha que, como deputado, pode fazer, que não conseguiu fazer como governante até como gestor?
Ter uma voz técnica - tenho 30 anos de experiência no SNS, tive já o privilégio de trabalhar em diferentes dimensões - na Assembleia para poder defender o SNS, os utentes, os profissionais, sem dogmas, sem preconceitos, de forma muito aberta. Agora, volto a dizer, tem que ser feito com planeamento e com transparência.
Já percebemos que vai levar essa voz técnica do lado da saúde, mas queria perguntar-lhe, sendo candidato, ou primeiro candidato na lista do Partido Socialista do Círculo Eleitoral do Porto, quais são, para além da saúde, outros problemas que identifica como urgentes para fazer representar no Parlamento o Círculo Eleitoral do Porto?
Seguramente que a habitação é um problema transversal ao país, mas que no distrito do Porto também se coloca de forma relevante. A dificuldade que existe para as famílias, para os jovens, para os estudantes, para quem está a trabalhar noutros locais, a dificuldade de arranjar uma casa, de alugar, de comprar, é extremamente complicada. E isso tem impacto social, tem impacto na saúde mental. Todos estes problemas estão ligados. Não é por acaso que um em cada cinco portugueses têm patologia de saúde mental, a prevalência maior na Europa. Portanto, a questão da habitação, para mim, é uma questão fundamental. A questão da mobilidade e do transporte, portanto, é esta outra questão que no Porto também se coloca de forma relevante. Depois há questões dos comportamentos aditivos e outros. E, portanto, há aqui três ou quatro áreas dos quais nós queremos muito trabalhar em conjunto para que as pessoas se sintam bem no Distrito do Porto, nos oito conselhos, sintam bem, sintam que podem construir projetos de vida, sintam-se que têm respostas do ponto de vista social, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista profissional, relativamente aos seus anseios. Eu acho que é isso que é mais importante e é assim que se constroem famílias e projetos em si.
E acha que as soluções para esses problemas partem do nacional ou partem da região, das autarquias que a compõem e em conjunto delas a trabalhar em conjunto?
Acho que é misto. Nós temos que ter do lado nacional políticas abertas para esse fim, temos que ter do lado local com as autarquias, que são imprescindíveis em muitas das soluções. E também do lado civil. Os grupos, associações, instituições não-governamentais têm também em cada uma destas áreas um papel muito relevante. Quando se olha para a questão dos idosos. Os idosos são um problema por vezes, olha-se para a questão da saúde, os idosos são doentes, muitos deles, mas vai muito nessa questão da saúde, o apoio social, a mobilidade, ter cidades verdes, cidades amigas dos idosos, ter capacidade de incluir em atividades, promover a saúde mental e a saúde física. Portanto, há aqui um conjunto de atividades que só conseguimos em conjunto. Governos, autarquias, organizações não-governamentais, do terceiro setor. Portanto, há aqui um esforço acima de tudo numa rede. O SNS é um bom exemplo para isso. O SNS tem e deve funcionar em rede. Não tem funcionado ultimamente, mas esse é o nosso grande ativo. E aqui nestes problemas, que são problemas muito transversais, temos também que trabalhar em conjunto para conseguir soluções eficazes e sustentáveis no tempo.
Mas o que aconteceu com o Serviço Nacional de Saúde, já que insiste nesse ponto, é que nestes últimos tempos o que houve foi uma transição daquilo que estava regionalizado para uma direção executiva que é nacional. É essa a tendência?
Mas eu, se calhar, recordava um bocadito. Quer dizer, o que foi dado, e estava a ser dado, mais autonomia local a cada uma das ULS. E eu recordo-me que quando era presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, e não vai assim há muito tempo, para aprovar a contratação de um recurso humano, um assistente operacional, um médico, tínhamos de ter três ou quatro ou cinco patamares. Tínhamos de ter a ARS, da ARS à ACCS, da ACCS à Secretaria de Estado da Saúde, à Secretaria de Estado das Finanças, do Orçamento, enfim, e, portanto, para poder ter, demorava meses. O que é que se conseguiu com a direção executiva? Foi reduzir isso apenas a um patamar. A direção executiva tinha a delegação de competências da saúde e das finanças para aprovar essas contratações. E, portanto, nós, no ano de 2023, início de 2024, as contratações demoravam em média menos que três dias úteis. Ao invés de meses que eram antes. E, portanto, o poder aproximou-se das instituições e aproximou-se do local de prestação de cuidados. A direção executiva tinha um papel que era tentar evitar outros patamares de decisão, facilitar o processo, dar a máxima autonomia. A única coisa que tínhamos que avaliar era o impacto nas outras unidades do SNS, funcionando em rede, e se fazia parte ou não da sua carteira de serviços, mas era um processo extremamente desburocratizado, extremamente fácil, simples e linear. E agora voltámos outra vez a ter concursos que demoram meses a aparecer, alterações que demoram meses e, entretanto, os médicos saem. Portanto, o que eu posso dizer é que quando tínhamos uma decisão executiva eficaz, a burocracia reduziu, os patamares administrativos reduziram e o sistema estava muito mais fluido. E isso vocês podem, até, de fim, naturalmente, abordar com as várias ULS e perguntar exatamente essas metodologias e resultados.
Conta com Manuel Pizarro, como candidato à Câmara do Porto na campanha socialista na área do Porto?
Sim, claro que sim. O Manuel Pizarro é um socialista que acredita também na saúde, no SNS, e, portanto, seguramente aqui, e o Porto é uma área que ele conhece bem, ele estará seguramente na primeira linha da campanha a apoiar este projeto e este programa, naturalmente.
Deixe-me perguntar-lhe se o Partido Socialista no ano passado, na última eleição, em relação a 2022, o ano da maioria absoluta, perdeu seis deputados no Porto, portanto de 2022 para 2024. Perdeu também o facto de ser o partido mais votado e com mais eleitos. No entanto, a AD, no ano passado, não aumentou o número de deputados, manteve os 14 eleitos pelo círculo eleitoral do Porto. O PS caiu de 19 para 13. O objetivo na eleição deste ano é recuperar a liderança no Porto conquistando mais votos que a AD, ou há um objetivo quantificado de deputados que o PS deve eleger?
O objetivo é conseguir mais votos que a AD aqui no Porto e que isso também ajude naturalmente ao Partido Socialista de ser o partido mais votado em nível nacional. Portanto, o objetivo é esse e se não conseguirmos, será uma derrota pessoal, mais que de Pedro Nuno Santos, é uma derrota pessoal minha. Portanto, no Distrito do Porto o objetivo é claramente ser o partido mais votado e tenho a noção clara, agora que ando mais na rua, que as pessoas estão motivadas, empenhadas, querem esta mudança e acho que os resultados vão demonstrar exatamente isso.
