Alcoutim homenageia aqueles que, no século passado, se dedicaram a uma atividade clandestina mas usual na zona raiana. Durante três dias vão ouvir-se histórias e ver espetáculos dedicados ao tema.
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António Melo começou nas lides do contrabando com 16 anos. Era pastor, não sabia ler nem escrever e as necessidades da família eram muitas." Era raro ver um tostão", diz este homem de 82 anos, que na altura foi aliciado para levar uma mochila com café para o outro lado do rio Guadiana, para Espanha.
Café era o que se contrabandeava na época. "Deram-me 30 escudos. Nunca eu tinha visto tal na minha vida". Foi assim que começou. Contrabandeou café para Espanha até aos 30 anos. De lá trazia miolo de amêndoa. No escuro da noite, António punha-se a caminho, sempre escondido. Com sacos de 30, 50 ou 100 quilos às costas. Passava o Rio Guadiana a nado.
Uma vida de perigos, sempre com a Guarda Fiscal à perna do lado português, e os Carabineiros, do lado espanhol. Polícia que atirava assim que via um contrabandista."Uma das vezes, o gajo não me matou porque a natureza não quis", conta. Para fugir, muitas vezes tinha que largar pelo caminho a mochila com os bens que contrabandeava. Nessas alturas nada recebia. Mas havia aqueles que não tinham tanta sorte. "Mataram aí uns poucos", lembra
António Melo lembra que todos na terra sabiam quem vivia do contrabando, guardas fiscais incluídos. António Galrito estava do outro lado da barricada, era guarda fiscal. Recorda-se desses tempos como se fosse hoje. Cumpria ordens do comandante para vigiar a fronteira. "A gente estava lá à espera que alguma coisa se passasse, mas se nos encontrávamos no norte eles passavam no sul", diz a rir. " Eles eram artistas, não faziam barulho nenhum".
O antigo guarda fiscal garante que nunca atirou sobre os homens que passavam a salto a fronteira, mas a guarda espanhola raramente brincava em serviço e atirava a matar. São todas estas histórias que se vão ouvir durante os três dias no Festival do Contrabando. A iniciativa, integrada no Programa 365 Algarve, vai desenrolar-se nos dois lados da fronteira: em Alcoutim e San Lucar del Guadiana.
Osvaldo Gonçalves, presidente da Câmara de Alcoutim lembra que queriam fazer esta homenagem há muito tempo. Na altura "era a única forma que estas pessoas tinham de governar vida e dar de comer aos filhos". Durante o festival, as duas margens vão ser unidas por uma ponte flutuante que pode ser atravessada pela população. Não faltará animação, com música, teatro e a recriação da época em que se fazia contrabando.
Neste certame, António Melo irá dar o seu depoimento e lembrar estórias antigas. Perguntamos-lhe se tem saudades desse tempo. "Faz ideia do que era ter essa vida? Ter que abalar daqui, noite escura, a chover, ficar todo molhado e não dormir uma noite tranquilo?". A resposta está dada: o contrabando ficou apenas como memória e uma história de vida para contar aos netos.