Conheça a vereadora da Câmara Municipal de Lisboa que já viveu em barracas.
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A vivência de Floresbela Pinto no bairro autoconstruído da Quinta da Serra (Loures), que há 20 anos foi incluído no Programa Especial de Realojamento (PER), deixou "lastro" no percurso da hoje vereadora na Câmara Municipal de Lisboa.
O ponto de encontro é o terminal de autocarros do Prior Velho. Floresbela Pinto, vereadora independente da associação política Cidadãos por Lisboa eleita pela Coligação Mais Lisboa (PS/Livre), conduz a Lusa até à sua antiga casa de família, que localiza apesar de hoje o terreno estar coberto por mato, ervas daninhas, plantas e flores.
Na Travessa da Fraternidade, sobreviveram as roseiras, que eram cuidadas por uma comunidade de irmãs religiosas, "uma referência positiva" no bairro.
Quando para ali foi viver, Floresbela, nascida em 1979, tinha uns 07/08 anos e "a vista" ainda não tinha as estradas que se avistam hoje, mas o barulho dos aviões já era uma constante, agora entrecortado por cigarras e ralos que ali encontraram refúgio.
No auge, terão residido na Quinta da Serra 750 famílias, contabiliza a vereadora, explicando que as sucessivas fases de realojamento foram diminuindo esse número.
As pessoas - primeiro portugueses da província, depois africanos de língua portuguesa - foram-se juntando naqueles terrenos agrícolas à medida que a palavra de amigos e familiares foi passando. "Havia um sentido de comunidade muito grande, as pessoas entreajudavam-se muito", recorda.
Muitos dos homens trabalhavam na construção civil e ainda é possível distinguir, entre a terra batida, alguns caminhos de cimento, trazido pelo pai de Floresbela, e que hoje servem a outros como corta-mato até Sacavém.
"A maior parte das construções era de alvenaria. Barracas, enquanto chapa de zinco, não era o que se via aqui", distingue a antiga moradora.
Na ausência do Estado, tudo era autogerido, dos postos de correio à recolha do lixo.
No início, não havia água, que iam buscar em baldes a um chafariz, mas "progressivamente as pessoas organizaram-se rua a rua e foram trazendo água canalizada para dentro das casas".
Com a eletricidade passou-se o mesmo e, a dada altura, cada família tinha a sua ligação certificada. "As condições de habitabilidade foram aumentando progressivamente", conta.
Os comerciantes vinham a dias fixos por semana e os autocarros serviam as senhoras das limpezas e as crianças e jovens em idade escolar. À vista ainda está o campo de futebol, para a miudagem.
Originária da ilha de Santiago, em Cabo Verde, Floresbela identificou-se com uma comunidade de "grande mistura" e partilha.
"Mesmo fora daqui, nós encontramo-nos e existe muito essa saudade da forma solidária como as pessoas aqui viviam. Embora as condições gerais do bairro pudessem não ser as ideais, existia uma grande ligação humana entre as pessoas", recorda.
Quando saiu do bairro, "na última leva", tinha 30 anos, uma licenciatura em Tradução (agora está a fazer um segundo curso, em Finanças) e um currículo repleto de vigílias, associações, movimentos.
Já estava empenhada na defesa do direito à habitação. "Todo o meu percurso profissional tem sido uma decorrência natural desta experiência", confirma.
Floresbela viu uma "comunidade a desintegrar-se". Sem pôr em causa que o PER "era necessário" para o objetivo proposto de erradicar as barracas da Área Metropolitana de Lisboa, critica, porém, "a forma como foi feito".
Quem ali vivia queria ter continuado a morar no Prior Velho, mas, na Quinta da Serra, não havia terrenos vagos e "as pessoas foram espartilhadas", deixando "uma mágoa muito grande" na comunidade.
Dessa memória, Floresbela fez "trabalho público", retirando a lição de que é preciso "ouvir as pessoas" e "salvaguardar os laços de comunidade, de vizinhança, de suporte".
A experiência que marcou o seu caminho ensinou-a "a reivindicar e a não prescindir" de melhorar a qualidade de vida das pessoas. "A não baixar os braços", no fundo.
"Quando desenhamos políticas públicas [...] em primeiro lugar tem de se colocar as pessoas no centro das decisões [e] fazer o equilíbrio entre aquilo que é possível [...] e o desejo das populações", sustenta.
Os resultados podem levar mais tempo, mas serão mais consolidados, acredita, confiante de que o diálogo com as populações evitará a criação de guetos, "como se fez" com o PER.
"Ao longo dos tempos, a Câmara [de Lisboa] tem demonstrado ser sensível" aos problemas de habitação na área metropolitana, avalia, realçando que tem havido um foco no trabalho com as comunidades, apesar de a forma nem sempre ter sido a melhor.
"Neste momento, infelizmente, não sei se vai continuar esse caminho. Se não for, tenho pena", diz, sublinhando a mais-valia de construir as soluções com a comunidade, que "faz toda a diferença" para o "nível de satisfação que as pessoas têm com a solução final que lhes é proposta".
No "muito bom para o cultivo" terreno da Quinta da Serra, que agora é municipal - e a vereadora espera que venha a ser utilizado para habitação acessível -, crescem hortas comunitárias, que "sempre reflorescem com a crise".
Antes de se despedir, de novo, do seu primeiro bairro em Portugal, Floresbela colhe umas quantas flores silvestres da mata que entretanto o engoliu e improvisa um ramo para dar à mãe, que continua a morar ali perto.