Xavier Viegas, o coordenador do estudo sobre o incêndio de Pedrógão Grande, em entrevista à TSF e ao Diário de Notícias, lança pistas, criticando a falta de limpeza junto às linhas elétricas.
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Das muitas entidades com responsabilidades e que são identificadas ao longo do relatório, quer no de Pedrógão quer na tragédia de fogos que tem atingido o país, qual é que identificaria como a principal? A parte mais política, a das autárquicas, a Proteção Civil, os bombeiros? Qual é aquela que terá particulares responsabilidades?
Quando estudamos estes incêndios e ao fazer este relatório, fazemo-lo como técnicos, porque somos cientistas, investigadores. Procuramos dar a conhecer ao país a verdade tal como nos é dada a conhecer. Mas também não podemos tirar a nossa condição de cidadãos, de pessoas que observam realidade. Começámos o capítulo das conclusões com uma referência à governação do país e quando refiro a governação não quero entrar em questões partidárias. É uma questão sistémica, que atravessa o país há dezenas de anos. Aquilo que verificamos, ao andar no terreno e posso assegurar que este relatório é feito de muito trabalho no terreno. Eu próprio andei muito no terreno, durante três meses falei com literalmente mais de uma centena de pessoas, perto de duzentas. Percorremos muitos lugares, fui a todos os lugares onde houve perda de vidas. E o que encontrámos? Um país que está à margem do país que é imaginado em Lisboa. Estamos a uma pequena distância do mar, a pouca distância de vias principais e encontramos aldeias que não têm saneamento, casas que não têm água corrente, sem água quente em casa. Como é que pessoas com rendimentos tão baixos e que vivem do que cultivam, como é que é possível esperar que estas pessoas façam o trabalho de limpar as florestas? Há aqui uma falha na governação do país, na distribuição relativa da riqueza. Nós queremos o nosso espaço rural e florestal cuidado. Queremos que tenha pessoas para não ser um matagal, mas temos que dar condições às pessoas. Esse é o primeiro momento crítico e que é transversal a muitos governos.
Quer o vosso relatório quer o da comissão independente nomeada pelo parlamento apontam para falta de limpeza da EDP em torno das linhas de média tensão de eletricidade. Se não estou em erro, o vosso relatório diz que os dois fogos que tiveram na origem do incêndio de Pedrógão nasceram do contacto das árvores com as linhas. Acha possível a EDP vir a ser responsabilizada pelo que aconteceu em Pedrógão?
Isso não está na nossa mão. O que nos competia era dizer o que encontrámos. Fizemos isso com base em dados técnicos. Eu sou engenheiro, mas sou engenheiro mecânico, chamei um colega para a minha equipa de eletrotecnia, porque é exatamente essa área. Já tinha investigado outros incêndios causados por linhas elétricas, um em 2016, onde foi fácil verificar que houve responsabilidade da linha elétrica. Aí foi fácil com os conhecimentos que tinha, com os dados que solicitei à EDP e com todo o conjunto de elementos que apurámos. Aqui compreendi que o problema era mais complicado e que era fácil sermos tropeliados na consulta que fizéssemos. Podia estar a pedir uns dados, darem-me esses dados mas não serem os dados corretos. Escudei-me num colega mais competente no assunto que eu, tivemos uma reunião com a EDP em Lisboa e chegámos à conclusão que tínhamos que pedir outros dados. Esses dados vieram, analisámos, fomos até à subestação da Lousã que é de onde sai a linha que alimenta esta área e fomos esclarecidos de mais elementos. Dissemos aos técnicos da EDP com toda a franqueza, que tínhamos essas suspeitas. Fico surpreendido que digam que o relatório causou uma grande surpresa porque uma das nossas preocupações é a de agir com lealdade. Não estamos a esconder coisas às pessoas e quando queremos dizer algo, principalmente se for mau, confrontámos a entidade com essa proposta de conclusão que estamos a tirar, para que a entidade, se o desejar, poder responder. No caso da EDP foi a mesma coisa. Apresentamos as nossas suspeitas e demos à EDP a oportunidade de responder. Deram-nos respostas mas não foram suficientes para que não mantenhamos esta posição.
Para a opinião pública em geral, porque tinha havido outro tipo de conclusões, pode ser surpreendente deste ponto de vista. Nesse caso, a Polícia Judiciária terá feito mal por ter dito logo no dia a seguir ao incêndio que a culpa era de um raio, algo que é praticamente descartado do vosso relatório?
Não critico a Polícia Judiciária. Nós trabalhamos muito perto com a PJ também neste aspeto da ignição. Quando começámos o trabalho tínhamos todas as hipóteses em aberto. Aliás, alguém me terá ouvido no início deste processo a partilhar a hipótese de ter sido uma trovoada, mas logo o IPMA pôs de parte essa hipótese e nós acolhemos. Vimos em detalhe o que o IPMA fez o que eles fizeram para analisar as descargas e estamos pouco convictos que tenha sido um raio a causar qualquer um destes incêndios. A partir daí consideramos outras hipóteses: fogo posto, algum pirómano, algum meio aéreo. Pelos testemunhos de quem estava lá e havia gente a 500 metros do local de ignição, o local onde começou é de passagem, é uma estrada onde alguém que passasse podia ser visto. O ponto onde começou não seria o ideal para pôr um incêndio. E fizemos trabalho de campo. Verificámos que há várias árvores em contacto com a rede elétrica. Falamos com guardas florestais, nomeadamente com o SEPNA (Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente), que subiram à árvore e que viram cabos dessa linha com sinal de estarem chamuscados por estarem em contacto com a vegetação.
Tivemos o incidente de Regadas, a três quilómetros, e aí há um testemunho que viu o incêndio começar debaixo da linha. Parece-nos que são coincidências a mais. Além disso temos imagens de drones e de helicóptero que tirámos há poucos dias e que são visíveis os sinais do início do incêndio. Quem analisa incêndios florestais e analisa sobretudo a sua fase inicial percebe facilmente como é que o incêndio se começa a desenvolver, começa a ganhar intensidade e a partir de onde sai. Há indícios claros de que o incêndio tenha começado naquela área e por contacto entre a linha aérea e a folhada.
Admite que esse cenário se possa repetir noutras áreas do país?
Absolutamente. Não sei até mesmo se no dia 15 de outubro, com o vendaval que tivemos, não terá acontecido isso. Pelo que tenho estudado no passado de situações destas e compreendo que não é fácil manter estas, não sei se centenas ou milhares de quilómetros de linha elétrica por todo o país...Temos um país eletrificado e isso é bom, mas temos este preço que estamos a pagar. Isso implica haver um maior investimento no cuidado dessas proteções. Receio que não tenha sido feito o investimento necessário.
A Galiza teve um ano terrível de incêndios em 1989, creio eu, e logo nessa altura foi criada uma estrutura própria, autónoma, no governo regional, com orçamento próprio para tratar não só da prevenção mas também do combate houve uma profissionalização do combate aos incêndios. Espanha gasta anualmente dois mil milhões de euros apenas na parte de combate aos incêndios. Nós andamos na ordem dos cem milhões. É altura de começar a olhar para isto de uma forma mais séria e quando digo séria é orçamentalmente séria e deitar dinheiro para cima do problema?
Claramente é necessário investir mais dinheiro. Falou em cem milhões de euros mas acho que é um pouco mais. Só em meios aéreos ultrapassa essa verba.
A ministra da Administração Interna entretanto demitiu-se e o comandante interino da Proteção Civil demitiu-se em consequência da demissão da ministra. Há mais alguém que não estará no seu lugar certo?
No relatório não apontamos nada nesse sentido nem eu pessoalmente o faço. Damos a entender no relatório que houve falhas, quem quiser tirar ilações pode tirá-las. Não nos compete a nós julgar, avaliar ou tomar decisões. É manifesto que houve falhas devidas a erros humanos, de pessoas que por falta de experiência ou de conhecimento terão tomado decisões menos apropriadas. Mas não ou ao ponto de apontar nomes. Aliás, achei mau todo este processo, porque numa situação de demissões a meio de um processo quente, uma guerra como lhe chamaram, pode causar ainda mais complicação. Esperaria que estas decisões fossem tomadas no final de todo o processo. Já está em marcha, mas durante o processo podia criar uma instabilidade ainda maior. Veio criar algumas fragilidades ao sistema. Espero que tudo seja corrigido. Fala-se agora de criar um novo sistema e o meu apelo é que tenha cuidado de ao fazer a reforma não deite fora o que é bom, naturalmente tem que haver aperfeiçoamentos, mas que não se vá atrás de ideias originais que surjam agora que podem ser oportunistas. Tenho muito receio que haja alguma precipitação. O anúncio de que no Conselho de Ministros de sábado já vão ser tomadas decisões. Eu não sei que reflexão houve, que apuramento de dados há para que sejam tomadas decisões tão profundas sobre esta matéria num espaço de tempo tão curto.
Xavier Viegas é o convidado desta semana na entrevista TSF/Diário de Notícias, para escutar na íntegra neste domingo depois das notícias das 12h.