Fundo da ONU para a População: "Não deixar mais para trás aquelas que já estão atrás"
Desde 1994, mais de 60 países fizeram progressos no aborto seguro, mais de 160 aprovaram leis contra a violência doméstica, duplicou o número de mulheres que usam contracepção, a taxa de gravidez não intencional caiu 20%. Vamos festejar? Não, longe disso. Muito está por fazer e a piorar. O relatório é apresentado hoje.
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Mónica Ferro dirige o escritório em Londres da UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População) e é responsável por essa agência para o Reino Unido, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália. Entrevista na TSF.
Oitocentas mulheres morrem todos os dias ao dar à luz, um número que não tem alterado desde 2016. Um quarto das mulheres não pode dizer não a sexo com o parceiro e quase uma em cada dez não pode tomar as próprias decisões sobre contracepção em 40% dos países com dados. O relatório Vidas entrelaçadas, fios de Esperança: acabar com as desigualdades em matéria de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) para a população, é apresentado esta quarta-feira. Mónica Ferro, obrigado por estar na TSF… os grandes ganhos globais que se conseguiram nos últimos anos em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, estão manchados, dizes vocês, por uma dura verdade. Que verdade é essa, Mónica Ferro?
De facto, trinta anos depois da grande Conferência de Cairo sobre População e Desenvolvimento e do seu programa de ação que guia o Fundo das Nações Unidas para a População e outras organizações internacionais que trabalham nesta matéria, nós temos muitos sucessos para celebrar: a mortalidade materna reduziu-se em 34% de 1990 a 2021, o número de mulheres que utilizam contracepção moderna duplicou, os nascimentos na adolescência diminuíram cerca de um terço desde 2000 na última década, registou-se uma diminuição de 7% no número das adolescentes sujeitas à mutilação genital feminina, mais de 60 países melhoraram o acesso ao aborto seguro. Contudo, em muitas partes do mundo nós temos um abrandamento, um bloqueio do progresso, há números que devem fazer soar o alarme. Desde 2016 não há progresso na redução da mortalidade materna, 800 mulheres morrem todos os dias, quinhentas em contextos humanitários e a esmagadora maioria destas mortes são facilmente preveníeis com intervenções.
Porque é que estamos a falhar, então?
Estamos a falhar, em primeiro lugar, no volume dos investimentos, nós sabemos o que é que resulta para salvar vidas, para aumentar a dignidade das pessoas. E esse investimento tem um custo associado. Estamos a falhar, em alguns contextos, de vontade política. 99% dessas mortes, Ricardo, são em países em desenvolvimento, portanto, nós sabemos como salvar estas mulheres. Sabemos como resgatar a esperança para estas comunidades.
Estamos a deixar para trás aqueles que já estavam mais atrás?
Esse é o grande tema deste relatório, é a outra grande lacuna na ação Internacional. Nós não estamos a trabalhar na remoção das barreiras sistémicas ao acesso à saúde e aos direitos sexuais reprodutivos e que traduzem esses dados. As pessoas que sofrem múltiplas e interseccionais discriminações, como a raça, etnia, género, pertença a uma minoria, seja ela qual for. São pessoas que já estão afastadas do progresso, são aquelas pessoas a quem é mais difícil chegar. Portanto, essas ficaram ainda mais para trás. Nós mostramos, por exemplo, que nos países em que as mulheres pertencem a um grupo socioeconómico elevado, têm melhores resultados de saúde materna do que as mulheres que pertencem a grupos socioeconómicos desfavorecidos. Isto parece não constituir uma grande novidade, mas do ponto de vista da ação Internacional, isto é um apelo a que se identifiquem e desmontem as discriminações sistémicas que não só deixam pessoas para trás, como que as empurram para trás, pela inação em remover estas barreiras.
Inação e sobretudo, vontade política, porque depois também podemos falar da questão da ajuda financeira, dos donativos, mas tudo isso é consequência da existência ou não de uma vontade política para mudar…
Nós dizemos no relatório que num mundo com uma riqueza tão abundante como é o nosso, com certeza não é por falta de recursos ou por falta de lições aprendidas que nós não estamos a conseguir os resultados desejados. Eu diria que é falta de vontade política em muitas circunstâncias, mas é também falta de investimentos estratégicos e de dados desagregados. Nós temos que saber quem são as pessoas. Mas para podermos chegar a essas pessoas e, portanto, um dos grandes apelos e uma das grandes missões do Fundo das Nações Unidas para a População são os dados desagregados, que já era uma das mensagens fundamentais em 1994. Aí já se dizia qualquer projeto de desenvolvimento tem que assentar num conhecimento desagregado da população que vai servir e essa população tem que ser desagregada pelas várias pertenças, para não se correr o risco de estarmos a desenhar programas que não sejam, de facto, de acordo com aquilo que nós precisamos de saber. E nós temos um cardápio de intervenções que, quando desenhados de forma a chegar a essas comunidades, dão resultados verdadeiramente impressionantes, quer em termos de vidas resgatadas de dignidade assegurada, mas também de retorno financeiro para os países.
Mas quando se olha para a evolução da situação, em termos mais longitudinais, ou, se quisermos, mais estruturais, se dizemos que as coisas melhoraram e há progressos significativos nos últimos trinta anos e, ao mesmo tempo, estamos a dizer que aqueles que estão em situação mais vulnerável, seja por razões étnicas, religiosas, de género ou até geográficas, porque a geografia também tem um fator importante, isto quer dizer que estivemos, a comunidade Internacional esteve e estiveram as Nações Unidas, muito tempo a investir nos sítios, onde já era mais fácil chegar e que não investiu naqueles onde era mais difícil?
Esse é o último esforço e isso é o que tem que ser acelerado. Agora, nós temos muitas lições do que resulta e temos muitas lições que resultam exatamente dessa experiência que temos em chegar a comunidades que estão em situação de marginalização, que estão numa situação de grande vulnerabilidade.
E é preciso desagregar os números ainda mais, é preciso que os programas sejam desenhados ainda mais à medida dessas comunidades, porque nós sabemos quem elas são. E é esse o sinal de alarme que nós queremos lançar com este relatório, é preciso vigilância e é preciso um compromisso renovado com ação. O pessimismo não vai ajudar. É por isso que, não obstante os dados menos positivos que nós temos, há situações em que houve até um certo retrocesso, por exemplo, na autonomia corporal das mulheres, basta ver a quantidade de países que estão a limitar o acesso das mulheres a uma tomada de decisão mais ampla sobre os seus corpos e as suas vidas.
Mas em que é que isso se traduz?
Isso traduz -se por limitações no acesso à contracepção, em limites e obstáculos institucionais e a realização de intervenções na área da saúde sexual e reprodutiva, a uma série de ações que poderiam ser tomadas, por que facilitariam a autonomia corporal das mulheres.
Nós há 3 anos perguntámos às mulheres quantas é que podiam responder SIM a 3 questões: dizer que não a ter sexo com o marido ou companheiro; a escolher o seu método contraceptivo e procurar cuidados de saúde sempre que o desejarem. Apenas 54% das mulheres onde os questionários foram aplicados disseram que sim a estas 3 perguntas, portanto…
Significa que há quase metade que não o podem fazer….
Este é um dos indicadores dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) do qual UFPA é o guardião, somos nós que recolhemos os dados que indicam uma série de limitações ao exercício dos direitos, como nós temos países em que as mulheres, para poderem receber a contracepção que escolheram, precisam de autorização dos maridos. Embora, no geral, o progresso seja positivo, o apelo deste relatório é: os números são bons, mas vamos olhar para as disparidades dentro dos países, porque muitas vezes o bom desempenho nacional oculta ou mascara realidades internas a que é preciso dar atenção. Por exemplo, o facto de a mortalidade materna entre a Comunidade negra nos Estados Unidos e no Reino Unido, as pessoas de ascendência africana terem uma maior probabilidade de sofrer maus estados obstétricos e até de morte materna durante o parto nos Estados Unidos e no Reino Unido, a incidência da morte materna é várias vezes superiores para mulheres negras do que para mulheres brancas.
E como é que hoje podemos superar isso?
Claro, o objetivo é sempre esse, quanto mais nós olhamos para dentro de cada realidade e mais procuramos quem é que ficou para trás, mais os vamos descobrir e, portanto, tem que ser um esforço deliberado e não nos deixarmos enncantar pelos bons resultados globais, temos sempre que compreender que as pessoas, cada uma das pessoas, tem que ser considerada na sua procura por dignidade.
Sendo que certamente mais plausível conseguir resultados em países desenvolvidos e democráticos como são os Estados Unidos, em que há esse tipo de discriminações, e provavelmente isso é extensível a vários países europeus, incluindo aqueles que a Mónica ferro tem tem sob a alçada, como é o caso dos países ibéricos, Itália e depois Reino Unido e Irlanda, mas será certamente mais difícil conseguir resultados em países que têm regimes autocráticos ou em que em que a religião está muito ligada ao sistema político e é por via dos leis religiosas que determinadas condições são impostas, nomeadamente às mulheres, em países que estão a viver conflitos…
Com certeza, a verdade é que já em 1994, a diretora do do Fundo das Nações Unidas para a População que era a Secretária executiva da da Conferência, dizia de uma forma muito clara aquilo que se estava ali a discutir no Cairo, a definição do que é que era a saúde sexual e reprodutiva, os direitos reprodutivos, a ideia revolucionária que já tem mais de 50 anos de que cada pessoa deve escolher se quer constituir uma família. E quando o decide fazer poder decidir livremente o número de filhos que vai ter e o espaçamento entre eles, esta ideia revolucionária que o planeamento familiar é um direito humano. Aliás, Portugal tem-no inscrito na Constituição. O que se estava ali a discutir, no Cairo, eram causa-efeito da democracia e é muito engraçado lembrar isso trinta anos depois, que já em 1994 se percebia que esta agenda é uma agenda que anda de mão dada com uma agenda democrática, uma agenda no qual as mulheres, as minorias, podem participar de forma plena. Não se pode desenhar um projeto de saúde para a Comunidade LGBTQIA+ sem os ter sentados à mesa, porque são esses os nossos interlocutores, que nos dizem de que é que precisam? Não podemos é querer que as mulheres indígenas tenham uma experiência de parto saudável sem garantir que elas podem aceder às práticas tradicionais que fazem parte da sua cultura. Claro que numa mescla com boas práticas actuais nos países que baniram essas práticas tradicionais, por exemplo, têm um desempenho na saúde materna das mulheres indígenas. A participação no processo de tomada de decisão de todas as pessoas que pertencem a Comunidades, que têm sido deixadas para trás é o único caminho para construirmos uma sociedade em que as pessoas possam ser saudáveis e possam todos participar. Nós dizemos no relatório que a limitação à realização plena dos nossos direitos não pode depender da latitude onde se nasce nem do regime político onde se nasce. E portanto, esta garantia pressupõe que haja uma análise muito detalhada do que é que resulta.
Na nossa latitude e no regime político que temos há 50 anos praticamente, há determinadas coisas não deveriam acontecer. No momento em que a democracia é alvo de ataques e o discurso do ódio a vai proliferando e visando especialmente minorias e grupos mais vulnerável, digamos que esta agenda, que o UNFPA tem, é uma agenda de resistência nesta altura?
É uma agenda de resistência e agenda que claramente fala da desinformação e da propagação de mitos sobre políticas populacionais, por exemplo. Nós temos dito muitas vezes num mundo que tem 70 processos eleitorais em curso só este ano, as questões da população foram centrais e estão a ser centrais em quase todas as campanhas eleitorais, seja através da sustentabilidade dos mecanismos de segurança social, através das taxas de fertilidade, através dos movimentos migratórios, esteve sempre no topo da agenda. Nós temos dito de forma clara: se nos focarmos em números, estamos a fazer as perguntas erradas. No Fundo das Nações para a População, a recomendação que fazemos é não se foquem em quantos filhos é que estamos a ter nem em quem é que está a ter mais crianças num país ou numa Comunidade. O que nos interessa saber é se as pessoas estão a ter o número de filhos que querem, porque isso é uma agenda de direitos, Se nos focarmos em números, abrimos a porta para uma série de narrativas populistas que se focam no papel da mulher enquanto criatura reprodutora.E nós assistimos em muitos sítios que este foco no papel de produtor das mulheres não vem acompanhado com uma plena discussão de tudo que isso implica. Eu posso discutir as taxas de natalidade, mas ninguém quer discutir as questões da saúde menstrual. Ninguém quer discutir o acesso ao aborto seguro. Depois, não estão disponíveis para discutir porque é que as mulheres estão a ter menos filhos do que o que querem, nomeadamente as várias barreiras institucionais, o trabalho precário, a falta de creches, a falta de um sentido de futuro e no bem-estar das nossas sociedades e, portanto, há aqui uma série de mitos que se alimentam da desinformação e que jogam um papel muito importante na manutenção destas desigualdades. Daí eu dizer que a agenda não está desligada de uma agenda democrática. Aliás, não é por coincidência que os países com regimes democráticos consolidados têm melhor desempenho em quase todos os indicadores que aqui temos, ou como dizíamos que a taxa de mortalidade materna é especialmente preocupante nos contextos humanitários, onde todo o sistema de apoio colapsou, quando nós assistimos ao bombardeamento de instituições ou de unidades de saúde, percebemos que, de facto, não há muita esperança que a saúde materno melhor num sítio desses.
Ou seja, situações como a que estão a acontecer na Palestina, no Sudão, na República Centro-Africana, na Ucrânia, vão certamente contribuir para piorar os números no relatório do próximo ano?
Têm contribuído. Nós temos operações em todos esses esses contextos, trabalhamos em 130 países a desempenhar atividades coordenadas com os governos e com os outros parceiros, desses 130, cerca de 60 têm perfis humanitários, são países onde nós estamos a prestar cuidados de saúde sexual e reprodutiva, onde estamos a trabalhar toda a parte da prevenção da violência com base no género e nesses contextos o problema do acesso é logo um problema fundamental. Os números revelam que, de facto, as mulheres e as meninas são as mais impactadas por qualquer crise e num contexto humanitário é muito visível como essas que têm sido as que ficam para trás, são ainda as que têm os piores resultados.
E é particularmente grave, a esse nível, a situação da Palestina?
A Palestina e a e a Ucrânia são países onde o os números são e a realidade são particularmente chocantes. É porque estamos com um problema também de não haver instituições. hospitais e centros de saúde, aí é muito difícil, onde não há centros de saúde e não há hospitais a funcionar e não há garantias de acesso, é virtualmente impossível fazer o nosso trabalho. E nós temos chamado muito a atenção: por exemplo, em Gaza não nasce um bebé com peso normal. Já não nascem bebés com peso normal, a fome está a afetar de uma forma brutal as mulheres grávidas ou a provocar riscos de abortos, riscos de nados mortos muito acima do que são as médias, já negativas, globais e portanto, nós temos feito também soar o alarme nestas questões.