Góticos, punks e xamãs. O festival que primeiro estranha-se, depois entranha-se
Há uma música que os une. Todos os anos, em agosto, a comunidade que veste de preto reencontra-se em Leiria. Em 2018, fora do castelo, mas com a mesma paixão.
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O concerto dos Heilung, esta quinta-feira, empresta a Leiria e ao festival Entremuralhas - este ano, Extramuralhas - uma rara tribo de melómanos, inspirados pela mitologia nórdica e celta. Na fila de fãs maioritariamente vestidos de preto, que pagaram 30 euros para ver a estreia do coletivo dinamarquês em Portugal, Sara Valentim destaca-se pelos adereços: traz um chifre 'viking' à cintura e um bastão em madeira que lhe chega dos pés à cabeça.
Em palco, o espetáculo mistura referências pagãs e cantos rúnicos com tonalidades 'neofolk', num ambiente ritualista e tribal. "Levam-nos numa viagem no tempo. É muito xamânico". Sara deslocou-se de Lisboa com as amigas Ana Resendes e Catarina Gomes. Está a desenvolver um projeto para uma comunidade sustentável e identifica na música dos Heilung a banda sonora da vida que quer construir. "Diz muito sobre mim, em termos de valores e crenças. Sempre fui ligada à natureza".
Também Patrick Cunha Velho, da Marinha Grande, alargadores nas orelhas e rosto furado com 'piercings', está no teatro José Lúcio da Silva para embarcar com os Heilung. Afirma-se "iniciado em bruxaria tradicional alexandrina", ou 'wicca', que descreve como "um caminho espiritual" para se ajudar a si próprio e aos outros, que implica "venerar os deuses antigos e ter uma ligação próxima com a natureza". O título de sacerdote obteve-o nos Estados Unidos. Por cá, trabalha como metrólogo num laboratório.
Desde a primeira hora, o oculto e o pagão ajudam a delimitar o imaginário do Entremuralhas, que durante oito anos aconteceu na atmosfera mágica do castelo de Leiria. Nesta nona edição, sai da fortaleza medieval - reservada para obras - e desce à cidade, em quatro palcos junto ao rio Lis: teatro José Lúcio da Silva, museu de Leiria, discoteca Stereogun e jardim Luís de Camões. Daí, temporariamente, a mudança de designação para Extramuralhas.
Mais do que um evento gótico, que termina sábado, dia 25, este é o santuário para várias tribos que incorporam uma alternativa estética. E ideológica. Saias, corpetes e vestidos da época vitoriana, uniformes da segunda guerra mundial, 'punks' da era cibernética, acessórios de cabedal ou simplesmente um gosto por sonoridades mais negras. Uma imensa subcultura, não por ser inferior, mas porque habita fora dos canais 'mainstream'. Tal como lembra o 'slogan' da associação Fade In, que organiza o festival: uma cultura que não se vende aos apelos comerciais nem se encontra nas prateleiras dos hipermercados.
É a música que os une. Das 12 bandas em cartaz, só os Bizarra Locomotiva são portugueses e nove nunca tocaram em Portugal. As estreias nacionais são regra na programação liderada pela Fade In. Bruno Cordeiro, de Lisboa, marca férias em agosto de propósito para estar no Entremuralhas - só falhou um até à data, explica à TSF na esplanada do Praça Caffé, onde muitos festivaleiros se reencontram nas horas que antecedem os concertos. Vestido de preto, "o uniforme de vida", à espera do momento Current 93 e a confirmar que Leiria é mesmo a capital do gótico, pelo menos durante três dias. "Estes são os nossos casamentos e funerais das famílias normais, acaba por ser a reunião de toda a gente que está espalhada pelo país".
Ao longo dos anos, criam-se conhecimentos, amizades, relações que perduram. E que às vezes saltam dos fóruns da internet - por exemplo, o 'podcast' Unidade 304, da autoria de Carlos Matos, presidente da Fade In - para a realidade material. É o caso de Ana Patrícia Graça e Maria Ferreira, respetivamente de Aveiro e Lisboa. Ambas trajadas a rigor, a primeira num vestido comprido século XVIII, a segunda num registo 'pin-up'. Os pais de Maria Ferreira sofreram quando começou a aparecer com o cabelo parcialmente rapado, hábito que mantém aos 56 anos de idade.
Esteve na segunda edição do Vilar de Mouros nos anos 80 e é repetente em Leiria. "Criei laços muito fortes, bonitos, amorosos, com pessoas daqui e do resto do país", afirma, elogiando o 'glamour' e o espírito do Entremuralhas, que relaciona com "o interior", com "a alma" dos artistas e do público. Um sentimento. "Aquele silêncio confunde-se com tristeza e não é nada disso, é serenidade, é paz", assegura. O que Ana Patrícia Graça confirma: "descobri a música um bocadinho tarde, quando me descobri a mim. Foi um marco muito importante na minha vida".
Há quem venha de ainda mais longe. Yohana González e Pablo Anza, de Bilbao, no País Basco, Espanha, atraídos pelo "cartaz eclético" e "diferente", ele seguidor de sons mais pesados e metaleiros, ela desde sempre com "predilecção pelo obscuro em geral, o macabro, o estranho, o vampírico". Entre a melancolia, o barroco e os filmes Nosferatu.
Ou Mário Nunes e Sara Seixas, de Coimbra, mas a viver em Londres. Ele 'barman' num hotel, dono de uma coleção de 35 mil discos, ela 'manager' de uma marca de acessórios de luxo, um esqueleto no colar ao pescoço e o inevitável 'dresscode' do Entremuralhas. "O preto é a aglomeração de todas as cores e a ausência de luz, é uma contradição, mas, mais do que isso, significa não estar conivente", declara.
Este ano, há uma bala perdida que atinge o Extramuralhas. Um espetáculo de residência artística do festival Metadança ocorrido em abril na Igreja da Misericórdia - espaço dessacralizado e transformado em centro de diálogo intercultural - acendeu o rastilho da polémica em Leiria nas últimas semanas, com o município a desviar dois concertos do Extremuralhas da Igreja da Misericórdia para o museu de Leiria, depois da contestação por entidades religiosas e por vereadores da oposição (PSD). "O clero radical existe e tem muito poder. Cuidado!", lamentou Carlos Matos no 'Facebook', lembrando que luta "há mais de 25 anos por uma mudança de mentalidades" na cidade.
Fora do castelo de Leiria e da igreja da Misericórdia, o Extramuralhas oferece seis concertos de acesso livre. O centro dos acontecimentos é o jardim Luís de Camões, com quatro espetáculos, zonas de comércio e restauração, artes de rua, 'performances', teatro e instalações. Heilung, Ulver e Current 93 são os cabeças de cartaz da nona edição, num programa com nomes de culto que viaja do industrial ao 'dark wave', da electrónica ao 'post punk', sempre entre sonoridades mais alternativas. Priest, Captains, Horskh, Shortparis, Rïcïnn, Christian Wolz, Sudden Axis Disorder, Bragolin e Bizarra Locomotiva completam o alinhamento. "E era muito bonito que as pessoas viessem conviver connosco, perceber um pouco daquilo que está em jogo a nível estético, o porquê destas músicas, trocar impressões com os fãs das bandas e, porque não, tornarem-se elas mesmo fãs desta cultura que tem a monocromia como a sua maior bandeira", desafia o presidente da Fade In.
Leiria, cidade em que Eça de Queiroz viveu e onde se inspirou para escrever o romance "O Crime do Padre Amaro", já anunciou a vontade de concorrer ao estatuto de Capital Europeia da Cultura 2027.