"Guerra dos corredores" foi há 30 anos. O dia em que o 25 de Abril passou ao lado do Parlamento
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Dia 23 de março de 1993. Os jornalistas parlamentares iniciam o primeiro de 36 dias de greve aos trabalhos na Assembleia da República (AR), depois de a maioria absoluta do PSD, liderado por Aníbal Cavaco Silva, aprovar um regulamento que restringia a mobilidade dos jornalistas nos corredores à volta do hemiciclo. O ponto alto da "greve" foi o boicote à sessão solene para comemorar o 25 de Abril, que acabou por não ocorrer, por solidariedade de Belém com os jornalistas.
A circulação livre dos jornalistas pelos corredores do Parlamento português é "uma característica única" e "caso único nos Parlamentos ocidentais", daí que a greve tenha ficado conhecida como "a guerra dos corredores". Os social-democratas pretendiam "diminuir essa liberdade de circulação".
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O "ideólogo" da iniciativa foi o então deputado e vice-presidente da bancada do PSD Pacheco Pereira, que "entendia que havia um excesso na forma como os jornalistas circulavam no espaço nobre da AR". Há 30 anos, a presidente da Associação de Repórteres Parlamentares era Anabela Neves, jornalista da SIC, que à TSF admite que "a liberdade de informar e de ser informado" estava em causa.
"Criou-se um regulamento de circulação que limitava e muito a circulação dos jornalistas no andar nobre, praticamente, acabava com essa circulação. O que desencadeou protestos que foram apoiados pelos grandes diretores de informação da altura", lembra.
Se o boicote não fosse total, teria menos força e menos impacto
O jornalista Paulo Baldaia, um dos mentores do protesto, explica que "se quiséssemos falar com um deputado, tínhamos de pedir a um continuo que fosse chamar o deputado e toda a gente ficaria a saber com quem o jornalista estava a falar". Ou seja, as fontes de informação seriam facilmente identificadas.
A luta começou por ser apenas dos jornalistas que estavam no Parlamento, mas os diretos de informação, como Emídio Rangel, da SIC, e Vicente Jorge Silva, do Público, abraçaram a causa dos repórteres, mediando as negociações e dando força ao protesto.
"Na altura, havia um grande pessimismo. Havia uma maioria parlamentar, as televisões privadas estavam a nascer e todos achavam que a unanimidade seria muito difícil. Havia muita gente a acreditar que a RTP e a RDP não iriam participar no boicote, mas participaram. Se o boicote não fosse total, teria menos força e menos impacto. Podia ter corrido mal e hoje podíamos ter algumas restrições, que não fariam muito sentido", sustenta Paulo Baldaia.
Anabela Neves admite que, num primeiro momento, "os órgãos públicos resistiram", mas "com o movimento que foi imparável", acabaram por aderir ao protesto. A jornalista entende que um protesto de igual dimensão é "impossível de acontecer hoje em dia". "Não há ambiente mediático e político. E não haveria esta união de esforços para proteger um valor essencial que é o valor de informar e ser informado", lamenta.
Jornalistas e maioria absoluta chagaram a consenso após "duas ou três reuniões"
Embora os jornalistas estivessem em "greve" aos trabalhos parlamentares, continuaram no Parlamento para noticiarem o próprio boicote: "As únicas notícias que os jornalistas davam eram sobre o boicote, procurávamos fazer reportagens ouvindo os deputados e os próprios jornalistas", diz Paulo Baldaia.
A oposição, tanto a esquerda como o CDS-PP, solidarizaram-se com os jornalistas, contra uma iniciativa que, para Anabela Neves, foi "um exemplo do exercício quase totalitário da maioria absoluta cavaquista".
PSD teve dificuldades em lidar com maior escrutínio
Ainda assim, com o passar do tempo, o próprio partido que liderava a oposição "começou a manifestar sinais de desconforto". Os jornalistas foram ouvindo incentivos pelos socialistas para que o boicote fosse ao Executivo de Cavaco Silva, e não no Parlamento, já que "a vossa luta é contra o Governo".
Anabela Neves garante que a luta dos jornalistas "não era contra o Governo", mas sim contra a iniciativa do PSD, que aceitou, depois, negociar diretamente com os jornalistas. "O apoio inicial foi-se diluindo e há um momento fundamental, que deve acontecer em todos os conflitos, ou seja, quando as partes entendem que se deve negociar", recorda a jornalista.
As negociações começaram a meio do boicote, que durou 36 dias, com "duas ou três reuniões e chegou-se a um consenso que permitiu que Pacheco Pereiro não perdesse a face", com as conclusões anunciadas a 26 de abril. "Ele acabou por cantar vitória, dizendo que os jornalistas tinham obstruções para circular, mas não era bem verdade. Aumentou-se o que defendi sempre, que era a autorregulação", explica Anabela Neves.
Paulo Baldaia lembra o papel da TSF que "mudou não apenas a rádio, mas a forma de fazer jornalismo" e "cada vez que alguma coisa acontecia, os repórteres parlamentares estavam obrigados a correr para dar a informação o mais rápido possível", com informação de hora a hora.
"O PSD teve dificuldades em lidar com isso, porque a maioria absoluta passou a ser muito mais escrutinada. Foi uma defesa que o PSD encontrou, havia alguns excessos nas regras que era preciso cumprir, mas a verdade é que a reação foi exagerada, muito para lá do admissível. O PSD acabou por dar um tiro no pé", reconhece o então jornalista da Rádio Renascença.
O apoio de Mário Soares
Logo no início dos 36 dias de protesto, os jornalistas tiveram um aliado de peso: o Presidente da República, Mário Soares. O chefe de Estado "estava num confronto institucional com o Governo, com a segunda maioria de Cavaco Silva, e transformou-se numa força de bloqueio".
Mário Soares recebeu os jornalistas, no Palácio de Belém, logo nos primeiros dias da greve, e reconheceu que "não era um problema menor", já que tinha a ver "com a liberdade de informação e o direito dos jornalistas a terem acesso independente às fontes de informação".
O problema em si, não é um problema menor
O Presidente da República, em solidariedade com os jornalistas, recusou discursar nas comemorações do 25 de Abril, no Parlamento, que não teriam cobertura jornalística, o que "obrigou" a cancelar a sessão.
"Na véspera do 25 de Abril, Mário Soares avisou o presidente da Assembleia da República, que era Barbosa de Melo, que não estaria presente nas cerimónias oficiais. Tanto o PS como o PCP anunciaram que não fariam qualquer intervenção e, assim sendo, a cerimónia foi anulada", explica Paulo Baldaia.
O jornalista reconhece que, naquela altura, o grupo parlamentar do PSD estava "divido" e existiam "muitas intrigas palacianas" com oito anos de Governo, faltando dois para os dez anos de Cavaco Silva. "Era uma parte final dessas maiorias, com muitas complicações, algumas semelhantes às que vemos hoje, e estamos também com oito anos de Governo", acrescenta.
