"Há sempre receio." A história do português que é um dos recuperadores-salvadores mais antigos do mundo
Tem 60 anos e, em quase duas décadas como recuperador-salvador, já assistiu ao desespero, ao alívio, ao fim de vidas e até a nascimentos a bordo. A TSF foi conhecer o dia a dia de António Barreiros, militar da Força Aérea que, a partir do helicóptero, já operou alguns dos resgates mais difíceis em Portugal.
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Com a alcunha de "Kevin", ou como os militares dizem call sign "Kevin", António Ribeiro Barreiros leva já um longo historial como militar. São quase 40 anos ao serviço da Força Aérea Portuguesa e tem por estes dias um estatuto ao alcance de poucos: É dos recuperadores-salvadores com mais idade ainda no ativo. São 60 anos feitos em julho deste ano.
"Eu não sei se sou efetivamente o mais antigo [do mundo]. Mas acredito que se não for, há de andar lá muito perto", começa por afirmar o sargento-chefe António Barreiros, que recebe a TSF na Base Aérea Número 6, no Montijo, distrito de Setúbal. O militar é pelo menos o recuperador-salvador mais antigo da 751, a Esquadra responsável pela busca e salvamento em Portugal. Mas orgulho por este estatuto é coisa que não tem, já que "gostava tanto de ter 30 anos".
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O pai queria que fosse Engenheiro ou Professor de Educação Física e sempre pensou seguir algo relacionado com esta área do Desporto. Mas acabou anos mais tarde na Força Aérea, por causa do serviço militar obrigatório: "Fui chamado à inspeção, passei, vim parar à Polícia Aérea. Queria fazer os dois anos [de serviço obrigatório] o mais rapidamente possível para me ir embora. Só que depois comecei a pensar - Isto se calhar é uma opção - e acabei por ficar. Não foi um sonho de criança."
Parecendo que não, tem já quatro décadas como militar. Como recuperador-salvador é que são menos. "Estive a maior parte do tempo colocado aqui [no Montijo]. Sempre fui muito ligado ao desporto e achei que isto era uma coisa que iria gostar de fazer, só que pensava na família. Em 2002, divorciei-me, as miúdas ainda eram pequenas, e achei que estava na altura. Nunca pensei foi durar tanto tempo aqui", diz, acrescentando que "já veio tarde" para uma função que ocupa há 20 anos.
Durante estes anos até ganhou uma alcunha: Kevin. O nome surgiu quando estava destacado nos Açores e era dia de aniversário para António Barreiros: "Às escondidas fizeram uma graça de preparar um jantar. Quando veio o bolo tinha lá uma fotografia e eu disse - Onde é que foram arranjar esta fotografia, que eu não tenho nenhuma com o fato antiexposição e de gorro? - Começaram-se a rir e depois fui ver bem e era o Kevin Costner lá do filme."

Trata-se do "Guardião" lançado em 2006. O ator Kevin Costner interpreta Ben Randall, um histórico recuperador-salvador da Guarda Costeira dos Estados Unidos. Já reformado, dá aulas de regaste na academia e pela frente tem o jovem ambicioso, campeão de natação, Jake Fischer. Costner acaba por ter algumas picardias com ele, mas torna-o no melhor recuperador da escola, testando ao limite as capacidades do caloiro. É também com este espírito e com uma boa dose de realismo que o Kevin português ensina os recém-chegados à Esquadra da Força Aérea.
O curso de recuperador-salvador e uma função apenas com homens
"Cada vez que há um curso novo e os candidatos vêm, a lengalenga é sempre a mesma. Eu sento-os e digo: Vocês veem o cor-de-rosa, só a parte boa da missão, que é salvar vidas. O que vocês não sabem é que isto vos vai tirar de casa horas e dias a fio. Portanto, pensem bem, se é mesmo isto que querem. Se é para desistir é a altura ideal. Não vão andar a sofrer durante semanas porque a recruta não é fácil ou então depois dão maus recuperadores", revela.
Atualmente são 17 os recuperadores-salvadores no Montijo. Não há nenhuma mulher nesta função. O tema, assegura António Barreiros, é sempre muito falado quando abrem cursos e defende-se: "Não faz sentido pormos uma tabela de testes físicos diferente porque depois quando chega a operação e quando temos de por uma pessoa de mais de 100 kg para dentro do helicóptero, o recuperador voa sozinho. (...) A mulher não é ser mais forte ou mais fraca, não tem nada a ver. Em termos de força física é mesmo assim. Têm outro tipo de qualidades, como a flexibilidade. Mas na força não." O militar acrescenta que tem havido mulheres a concorrer e até "com bom desempenho físico", mas que até agora nenhuma entrou, já que não passaram nos testes.
"Para que outros vivam"

Criada em 1978, a Esquadra 751 da Força Aérea é responsável pela busca e salvamento em Portugal. De dia ou de noite, a qualquer hora, têm os olhos postos em permanência numa área de quase 6 milhões de quilómetros quadrados, o equivalente a 63 vezes o território continental português. É a segunda maior área do mundo, só superada pela do Canadá.
Perante tamanha dimensão há lugar para medos? "Não somos heróis, aqui não há heróis, mas medo, diria mais receio, porque pode sempre alguma coisa correr mal. Treinamos muito para que consigamos reduzir ao máximo o fator sorte (...) Torna-se perigoso quando deixamos de ter respeito por aquilo que fazemos, quando achamos que já fazemos tudo muito bem. Isto aplica-se a tudo. Quando já sei andar muito bem de mota e começo a facilitar, é aí que a coisa se dá", afirma.
Em pouco mais de quatro décadas de existência e sob o lema "Para que outros vivam", a Esquadra foi responsável por salvar mais de quatro mil vidas. Estão todas homenageadas numa sala especial na Base Aérea do Montijo.
Por aqui há fotografias, quadros, capacetes e claro, coletes, são centenas nas paredes. É o que mais salta à vista assim que se entra. A cor laranja que envergam não os deixa passar despercebidos. Cada um representa uma missão bem-sucedida, uma vida salva. À medida que nos aproximamos deles há uma inscrição a preto que se destaca. António Barreiros explica que está marcado "a tripulação que fez a missão e o dia". "É uma tradição que nós temos (...) Temos aqui muito da nossa história", acrescenta.
E, nesta sala, está algo que mostre algum resgate feito pelo recuperador-salvador mais antigo da Força Aérea? "Vou ter de procurar", responde, entre risos, António Barreiros. A busca por um colete durou pouco mais de dois minutos e, assim, encontrou as recordações. Vieram-lhe de imediato à memória: "2015, Irmã dos Caparros. Era um barco de pesca que estava com as redes metidas na água e foi muito complicado."
O militar não consegue particularizar um número de vidas salvas. Atira algumas dezenas, em missões verdadeiramente marcantes.
"No [Cabo] Espichel, junto ao farol, a meio da tarde. Saímos a meio da tarde para ir buscar uma senhora que tinha desaparecido há um ou dois dias. Os bombeiros já a tinham encontrado. Andava a Polícia lá em baixo a ver se conseguia identificar qualquer coisa. Eles não conseguiam subir para o local onde a senhora estava. Os bombeiros não conseguiam descer. Tivemos de lá ir com o helicóptero e foi uma missão... A senhora já estava morta. Mas é uma pessoa que está ali e há que ter sempre algum cuidado", recorda António Barreiros, quando questionado sobre as missões que lhe ficaram na memória.
Do transporte do Papa às evacuações médicas: as outras funções da Esquadra 751
Mas, se o recuperador-salvador já assistiu ao fim de vida, também já teve a "felicidade" de assistir ao começo de tudo. Dois partos, ambos nos Açores. Um deles, em setembro de 2013, acabou por ser o salvamento número 300 da esquadra. Numa evacuação médica da ilha Graciosa para a ilha Terceira, o militar estava a bordo quando ao seu lado nasceu um bebé. "No nascimento é um papel muito passivo. É dar algum apoio, se for preciso (...). É mais usufruir de toda aquela alegria", explica.
As evacuações médicas são uma das valências da Esquadra, possibilitada pela capacidade do EH-101. Ao serviço de Portugal desde 2004, é este o helicóptero que serve de casa emprestada a António Barreiros quando está no ar, seja em treino ou missões reais. Contam-se quatro ou cinco aparelhos num enorme pavilhão da base. É o recuperador-salvador quem nos guia e assim que abre a porta do pavilhão atira: "Não está cá ninguém. É bom sinal ou mau, devem estar de volta do helicóptero."
Aqui estão os EH-101 em manutenção de rotina ou a precisarem de peças. António Barreiros até se atreve a compará-los com veículos de menor dimensão. "É como os carros. Há umas mais ligeiras, umas que exigem uma intervenção mais profunda. Eles aqui descascam o helicóptero todo", afirma o militar, deixando elogios - "incansável" e "brutal" - à equipa que todo o dia está de volta dos aparelhos.
Conseguimos entrar num deles, num dos poucos que não está a receber assistência. Com o dedo em riste, apontando para os lugares que tão bem conhece, o militar vai-nos guiando: "Conseguimos colocar aqui julgo que 35 militares totalmente equipados com armamento e mochilas. Podemos ter o kit de passageiros para 20 pessoas com lugares, como se fosse um pequeno avião."
Foi deste modo que o helicóptero se vestiu para transportar, por exemplo, o Papa Francisco, em 2017, desde a Base Aérea de Monte Real, em Leiria, até ao Estádio de Fátima, quando o líder da Igreja Católica visitou, pela primeira vez, Portugal. Esta é uma das missões que a Esquadra faz, mas é menos habitual, uma vez que é com o fato de salvamento que o mais helicóptero mais vezes se veste. Nessa ocasião, a bordo costumam estar cinco militares: enfermeiro, operador de sistemas, recuperador-salvador e os dois pilotos.
A porta lateral deste EH-101 está aberta. É como costuma estar no ar, para permitir que António Barreiros fixe o seu olhar no mar ou na terra e, assim que seja preciso, possa descer para salvar alguma vida ou procurar alguém. Já o fez em dezenas de vezes e em lugares verdadeiramente difíceis. O militar recorda outra missão que o marcou, decorria o ano de 2008.
"Estavam a construir o farol do molhe norte da Foz do Rio Douro. Levantou-se um temporal enorme. Ficaram lá 18 pessoas presas. Era de noite. O INEM, como estava ali perto e tinha um helicóptero mais pequeno, conseguiu buscar quatro. Quando chegámos eram 14. Um tinha tentado passar a correr, foi apanhado pelas ondas e morreu. Deparámo-nos com um farol que estava em construção, cheio de pessoas lá dentro. Parecia um ninho com 'pardalinhos'. Conseguimos tirar todos de uma vez", lembra o recuperador-salvador, que conseguiu retirar, sem qualquer ferimento, 14 dos 18 trabalhadores, após quatro horas de isolamento.
O dia em que foi condecorado por Marcelo
As dezenas de missões que já tem no currículo, algumas do mais alto grau de dificuldade, despertaram a atenção do Presidente da República. Em 2017, no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Marcelo Rebelo de Sousa condecorou três militares. Um deles, distinguido com a Medalha de Serviços Distintos, grau de prata: António Barreiros.

Para lá da distinção, o baú de memórias das quase duas décadas nesta função tem também espaço para missões com um final inesperado. António Barreiros recorda o dia em que conseguiu retirar de um catamarã três franceses. Algo - que não consegue explicar o quê - atingiu a embarcação e esta começou a afundar. A Esquadra foi ativada, a missão concluída com sucesso e, já a bordo do helicóptero, um dos que acabara de ser salvo "saca de um pacotinho de Mon Chéri para dar à tripulação". A caixa de chocolates chegou a terra? "Não, foi consumida a bordo", graceja o militar.
Mas nem sempre os militares são presenteados com doces quando o pior já passou: "As pessoas estão a debater-se pela vida e quando veem que estão em contacto connosco perdem os sentidos, desfalecem. Porque parecem que já sabem, vou descansar (...). O alívio com que ficam quando depois de verem o recuperador-salvador, especialmente em vítimas de água, náufragos que estejam em balsas. Estão ali há horas ou, às vezes, até dias". São momentos em que a conversa fica para depois. "Habitualmente não dizem nada", até porque, como revela António Barreiros, o "helicóptero está a funcionar, o rotor está lançado, é um barulho incrível".
Para que a missão seja concluída com sucesso - e assim tem sido em tantas vezes - o treino é fundamental: "A esmagadora maioria de horas de voo aqui da Esquadra é em missões de treino."
Um toque de telemóvel é o primeiro passo para o início da missão
No caso das missões reais, estas não escolhem dia e podem durar cerca de três horas, mas calcular a duração ao certo é difícil, já que é tudo imprevisível. A meteorologia não costuma colaborar. "Assim que somos ativados temos meia hora para estar no ar, a menos que o helicóptero tenha que ser reconfigurado devido ao cariz da missão", revela.
Cada militar tem um telemóvel consigo e, assim que toca, estejam a "almoçar ou a dormir", sabem "o que têm de fazer". "Todos se equipam" e no caso dos recuperadores-salvadoras não falta equipamento para preparar, desde "capacetes, fatos" até ao arnês com que descem do EH-101. A mala costuma pesar de 50 kg e, quando a missão acaba, há que arrumar tudo. Cada um é responsável pelo seu equipamento e no final, apesar do cansaço, ainda têm de o secar e guardar.
"Temos de ser nós e às vezes vimos saturados do voo. No verão, é bom voarmos à noite porque a temperatura é mais agradável. O que tem de mau é que o sol se põe muito tarde. Enquanto que de inverno, às 18h e tal, fazemos um voo de noite, é mais cedo, mas é terrível. Nunca ninguém de nós morreu, mas é fresquinho", afirma o recuperador-salvador.
Para toda esta aventura, a camaradagem ajuda. "É o nosso velhote e amigo", diz Vítor Casimiro, à medida que bate com a mão nas costas de António Barreiros. Igualmente recuperador-salvador, mas há menos três anos do que ele, o sargento-ajudante confessa que tem ao seu lado uma referência: "Desde sempre o considerei como um exemplo que poderia seguir. Ajudou-me muito desde que cheguei a esta função. Foi meu instrutor e ajudou-me muito a ter mais noção do que é esta realidade."
E é uma realidade que vai continuar por muito mais tempo na vida do recuperador-salvador mais antigo da Esquadra? "Não faço ideia. Mantenho as minhas filhas, a minha família, vou ajudá-los. (...) Não faço grandes planos, deixa ver o que isto vai dar", afirma António Barreiros.
Promessa de quem, na terra ou no mar, está habituado a salvar vidas de quem as tem em suspenso, por minutos, horas ou até dias: "Assim vou cá ficando até que eles me mandem embora. Quero ter o bom-senso de sair antes de, em vez de estar a ajudar, ter de ser ajudado."
