Hallelujah! Porto Post Doc: um festival de reencontros e gente jovem no 'Ceuta'
Dario Oliveira, diretor do Porto Post Doc abre o livro sobre o festival que esta noite começa no Coliseu da cidade. Com muito cinema documental, música e reflexão sobre o que é o poder... e a resistência na Europa em que vivemos.
Corpo do artigo
Esta nona edição do festival é uma edição de reencontro, desde logo entre o festival e o público?
Eu espero que sim. Estamos prestes a começar e eu gostava muito que esta fosse de facto a edição do reencontro com o público mais vasto. Estamos a chegar aqui a um ponto de viragem, uma clivagem enorme entre os últimos dois anos em que parte do nosso público assistiu ao festival a partir da versão digital e viu em casa, no sofá, no sofá pandémico. E eu agora gostava de facto de ver as pessoas de novo nas salas. Estamos a ocupar oito lugares diferentes no Porto. Começamos no Coliseu com uma sessão muito especial.
TSF\audio\2022\11\noticias\16\16_novembro_2022_dario_oliveira_porto_doc_online
Esta quarta feira às às 21h30 no Coliseu, o filme Hallelujah: Leonard Cohen, A Journey, A Song...
Exato. Esta canção e este nome são icónicos só por si. É um filme que nos dá a conhecer muito mais sobre a história desta canção e suas várias vidas na voz do Cohen primeiro, depois do Johnny Cale, Rufus Wainwright, e, por último, é uma das canções mais interpretadas nos concursos de talentos nas televisões desse mundo fora, o que é uma curiosidade. Mas o filme é muito mais do que isso. É uma emoção de reencontro desta canção com o público. E também para nós é muito simbólico abrir no Coliseu, que foi onde terminámos a última edição, com uma performance e com imagens do Pedro Costa, exatamente há um ano. Portanto, voltamos ao lugar onde já fomos felizes e por isso vamos arriscar tudo na maior sala da cidade, no maior ecrã e também a sala mais popular, pelo menos para as gerações acima dos 50 que viram lá muitos filmes. E é uma forma de abrirmos a um público ainda mais jovem, mais vasto. Esta sala que tem tantas condições para estas atividades, como por exemplo, abrir um festival de cinema, não tem sido usada para isso. É uma pena.
A pandemia mudou alguma coisa na forma como víamos cinema e como vemos agora?
Mudou, Mudou de facto, Há dados concretos. Os outros festivais que têm acontecido, o público resiste mais a sair de casa para ver cinema, até porque é um dos conteúdos da cultura popular que que mais facilmente nos chega a casa através de todos os interfaces e pela facilidade com que se veem filmes a partir do sofá. Como eu dizia, há aqui uma estranheza enorme se pensarmos que quando acontece a pandemia estavam criadas as condições para nos colarmos, de facto, ao sofá lá de casa. A profícua produção internacional de séries de televisão, a forma como as grandes empresas que dominam o audiovisual neste momento, a HBO, a Amazon, a Netflix, produzem e apoiam o cinema de grandíssima qualidade em todo o mundo, a começar pelos Estados Unidos. Está bem. Estava tudo preparado para que? Ficávamos em casa, quase contentes com o mundo lá fora. Proibido e perigoso, é muito estranho. Agora, trata-se de reabilitar as pessoas a sair. É de facto uma tarefa difícil e um risco, mas que nós temos que correr. Temos um festival e pensámos este festival para acontecer. De facto, não nos pusemos a questão de continuarmos com a versão digital e decidimos fazer esta pequena provocação, que é um convite também as pessoas para saírem e reencontrarem os outros e verem o cinema onde ele deve ser visto, porque é muito mais emocionante. É uma experiência social, cultural, sensorial, de ir a uma sala ver um filme. Por isso, temos quase todo o festival dedicado ante estreias ou estreias nacionais, algumas internacionais; portanto, é uma oportunidade de descoberta. Contamos com a curiosidade habitual do público, da cidade e do Grande Porto para que nos acompanhem. Fizemos o nosso trabalho. Agora as portas estão abertas, convidamos toda a gente a participar.
Depois da abertura, a programação começa dia 17, quinta-feira , e vai até dia 26. Além do Coliseu, o festival acontece também na sala ao lado, do cinema Passos Manuel, também nas duas salas de cinema Trindade, no Maus Hábitos sede do Festival, mas também na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto, no Planetário, na Escola das Artes e até o Café Ceuta, que vai ser transformado numa espécie de laboratório de cinema. E isso em que medida?
O Café Ceuta tem um historial que é reconhecido. É um momento de reabertura do Ceuta, com uma gestão muito aberta à cultura popular e o Lab Ceuta, como nós designamos, é uma forma de reconciliar aqui os mais novos, os estudantes de cinema, os jovens cineastas com primeiras obras na competição, cinema novo, a usarem este espaço, os dois andares do Café Ceuta, para fazermos conversas com realizadores, masterclasses, algumas projeções, aulas de cinema. Portanto, nós vamos ocupar os dois andares do Café Ceuta com atividades dirigidas aos mais novos, quase todas elas de acesso gratuito. E é uma forma de sinalizarmos este lugar, que é um dos lugares mais bonitos que resistiu a esta transformação dos espaços icónicos da cidade, por esvaziamento e por falta de clientes. Claro que é o que acontece em todas as cidades e o Porto não é exceção. Agora, transformamos este café num lugar vivo, onde não sejam só os clientes de há 50 anos que frequentam o café e possamos ver de novo teenagers, adolescentes e jovens a circularem durante esta semana num sítio tão bonito e que fica muito próximo dos outros lugares do festival. Essa é uma prerrogativa da equipa de programação e de produção: que possamos ir de uns lugares aos outros a pé, sem grande esforço. E o Porto tem essa capacidade, com algumas subidas, mas também algumas descidas.
E qual foi a preocupação que essa equipa de produção e direção do festival teve ao desenhar esta edição do festival? Que olhares procuraram refletir na programação que desenharam para este ano?
Acima de tudo, esta vontade de não falarmos mais de pandemia e olharmos para a frente e pensarmos o espaço comunitário e que todas as clivagens sociais que estão a acontecer são repetições, não há nenhuma novidade. Lamento: é a nossa postura. Na história, já aconteceu isto. Quando foi pensada, por exemplo, uma secção a que chamamos Nós, A Revolução dedicada a dois cineastas húngaros, não tinha começado a invasão da Ucrânia. Mas faz todo o sentido ver estes filmes.
Essa escolha dos filmes de Marta Mészáros e Miklós Jancsó, que tratam o cinema, no fundo, como como força necessária para resistir, como vocês escrevem, aos totalitarismos e à manipulação de massas. A escolha do cinema húngaro está relacionada com o próprio momento político que a Hungria está a viver?
Sim, sim, sem dúvida. E também era um ciclo que gostávamos já de ter apresentado. Muitas vezes, nós temos que esperar que os filmes estejam prontos. Estes são filmes dos anos 70 e 80, mas são filmes que estavam a ser recuperados pelos arquivos húngaros. E a partir do momento em que estas digitalizações estão prontas - e as cópias são cópias extraordinárias com uma luz e uma recuperação extremamente bem feita - nós começámos então a pensar de que forma é que podíamos apresentar a vasta obra de ambos. Foram um casal também na vida real. Vai cá estar o filho de ambos, que foi diretor de fotografia da mãe para apresentar a obra e para dar uma aula de cinema na Escola das Artes. Estes filmes foram pensados de facto, para pôr as pessoas a pensar no que está a acontecer na Europa. O que está a acontecer na Ucrânia neste momento foi algo que aconteceu depois de programarmos. Estas coisas são pensadas com muita antecedência, como devem imaginar. De qualquer forma, é um pensamento que percorre a programação do festival.
Outra retrospetiva é de Sierra Pettengill. Ela fala exatamente da violência policial desde os motins do final dos anos 60 em várias cidades americanas, protagonizadas por afro americanos ou por pacifistas que se opunham à guerra do Vietname. E a Sierra Pettengill que usa só imagens de arquivo - vamos apresentar toda a sua obra - ela...
Produziu há uns anos um documentário sobre a presidência de Ronald Reagan...
Exatamente. É provavelmente o filme mais conhecido de Reagan. Este filme foi candidato ao Óscar e, no fundo, é um filme que desconstrói esta coisa do espetáculo televisivo, que é quase um prenúncio do que iria depois acontecer no reinado de Donald Trump. O Reagan, se calhar, foi o primeiro a fazê-lo de uma forma magistral, usando a propaganda televisiva para se promover como como cidadão icónico e o presidente de todos os americanos, que não era e fez uma carreira algo duvidosa, não é de conhecimento de todos e eu acho que são estas pontes que nós queremos estabelecer entre a memória coletiva, as imagens de arquivo, o trabalho dos cineastas documentais e dos cineastas de ficção que lutam todos em épocas diferentes. E a maior parte do festival são filmes muito recentes, que falam desta questão que nos persegue: o que é o poder e a corrupção? A violência começa na polícia, mas não só, ganha uma dimensão nova a cada dia, a cada momento da política internacional e, mesmo paradigmaticamente, aqui, com alguns ecos na política nacional.
O cinema documental, como bom aliado nessa batalha pelo não-esquecimento. Há também uma série de filmes que abordam questões associadas à saúde mental, a componente Neurodiversidade, uma das secções do festival...
Sim, todos os anos temos um tema que percorre o festival que também ocupa aquilo a que chamamos o Fórum do Real. São conversas à volta de temas mais abrangentes, que saem da esfera do próprio cinema. E aqui partimos de cinco filmes que falam de Neurodiversidade, um conceito sociológico para falarmos de saúde mental. Convocámos cinco filmes e 12 pessoas de quadrantes diferentes na Europa, psiquiatras, músicos, bailarinos, coreógrafos, realizadores, escritores. E estas conversas partem sempre de um filme. Escolhemos três filmes portugueses: o Jaime, do António Reis, o Super Natural do Jorge Jácome e o Para-me de Repente o Pensamento do Jorge Pelicano. E depois, dois filmes extremamente curiosos: Les Infants de Isadora, que parte de uma coreografia da Isabel Duncan e o Sol, um filme de um cineasta belga que fala de um caso real da ultrapassagem da doença mental. O realizador é o Artemio Benki, é o filme que abre este ciclo. Como a música pode ser uma libertação da doença mental, por exemplo, entre outras coisas. São filmes complexos, mas muito bonitos. São abordagens poéticas de um tema que nos preocupa não só nestes anos, que podemos chamar de pós pandémica, mas também da nossa sociedade e principalmente de um certo preconceito, que existe na cultura popular portuguesa, de esconder a doença mental. E é para lutar contra os preconceitos que pensamos estas conversas e estes filmes. Esperamos que sejam concorridas estas conversas, que as pessoas venham descobrir estes filmes e acompanhar estas conversas. Até porque o fórum é um lugar de debate e aberto à participação de todos. Acontece no cinema Trindade.
E o que é o Transmission para além de uma canção célebre do Joy Division?
É um bom nome para um ciclo de cinema e música (risos!) e também é uma secção competitiva de que muito nos orgulhamos e é das mais populares do festival. Muito abrangente, onde costumamos mostrar os filmes mais recentes que achamos que merecem apenas ser partilhados com o nosso público. Este ano temos aqui uma variedade de estilos musicais e de filmes portugueses e internacionais que espero que possam interessar a todos. Rui Reininho, Orquestra de Martim Sousa Tavares pelo interior de Portugal, techno de Detroit é um filme em particular, Meet Me in the Bathroom, um filme que é o melhor retrato dos anos zero, pós 2001, em Nova Iorque, com os LCD Soundsystem, The Strokes e todas as outras bandas que pulularam nessa altura. E é uma secção que atrai outros públicos. É para esse tipo de públicos que nós pensamos a programação. Nunca quisemos programar para outros programadores. Acho que o lugar de um festival de cinema é mesmo defender o cinema popular, que cada vez mais está distante das pessoas e que não passa pelas salas comerciais. Há uma profusão e uma produção internacional como nunca houve, graças ao digital e à capacidade de se produzir com cada vez menos dinheiro. E há filmes que podem ser esquecidos e passarem ao lado por não terem uma distribuição bem feita. E é contra esse esquecimento da própria produção cinematográfica que os incluímos aqui, nomeadamente nesta secção, onde temos muitos filmes para serem descobertos pelos fãs de música e de cinema que queiram vir aqui.
Por que é que o vosso projeto mais querido é este Working Class Heroes? É literal? Estamos a estamos a falar dos heróis das classes trabalhadoras?
Eu acho que os festivais são de todos, mas aqui vou ter que falar na primeira pessoa. Isto era um projecto que eu tinha quando criei o Porto Post Doc e que só agora a começou. No passado, na oitava edição, consegui concretizá-lo porque dependia de um financiamento. A partir do momento em que a Filma Porto entra em atividade e tem uma bolsa para apoiar a produção local, o projecto é fácil de explicar. Contar as histórias dos anti-heróis desta cidade, uma cidade operária e burguesa, muito burguesa, mas muito operária, porque as duas coisas sempre estiveram ligadas e há histórias esquecidas que muitos de nós, que somos daqui conhecemos, que estão escritas, mas que não estão no cinema. E é ir buscar essas histórias, convidar todos os anos três cineastas a escreverem uma abordagem de autor dessas histórias que estão por aí, que é preciso ir à procura delas. Muitas estão por descobrir e transformá-las em filmes, ensaios cinematográficos, ficções, documentários. Isso fica ao critério de cada um. A cada edição, um júri de profissionais escolhe um desses projectos que deverá resultar num filme, que será apresentado dois anos depois. Damos dois anos para a produção desse filme. Claro que são curtas-metragens, são filmes de baixo orçamento e procuramos sair daquele gueto em que muitas vezes estes projectos se transformam, que é convidar cineastas da cidade. Aqui não são três cineastas da cidade, há sempre um cineasta internacional e dois portugueses. E depois o júri decide qual é o projecto mais interessante, mais contemporâneo. E olhando para a história desta cidade, que tem muitas histórias para contar e que falta transformá-las em filmes.
Vamos por sim, falar de um filme que está na sessão de encerramento, embora o festival continue depois por mais um par de dias. All The Beauty and the Bloodshed, de Laura Poitras...
Esta documentarista é bastante conhecida e este ano ganhou o Festival de Veneza com o Leão de Ouro. Este filme é um retrato da Nan Goldin, uma artista que já teve uma retrospetiva em Serralves, que será homenageada na semana a seguir ao festival aqui na cidade. É uma antestreia na cidade, dado que ele estreia noutro festival, em Lisboa, no LeFfest, na semana anterior. E é um retrato também daquilo que é um país, os Estados Unidos e a capacidade de a corrupção dominar uma população inteira. Há aqui uma ligação entre a família Sackler, que apoia as artes, fizeram fortuna com o comércio de medicamentos. É uma história que não é tão conhecida assim, foram processados por um número infinito de pessoas. E é também a história da Nan Goldin, numa cruzada por desmascarar esta situação. É uma ativista, para além de uma fotógrafa bastante reconhecida, com uma qualidade de trabalho que julgo estar acima da média. Para nós esta é uma oportunidade de mostrar este filme em antestreia, que espero que seja depois distribuído no mercado das salas comerciais. Pelo menos é isso que está anunciado. Portanto, é uma oportunidade de descobrir este filme na quinta-feira, 24, às 21h45, a seguir à entrega de prémios das competições. O festival depois prolonga-se até sábado, 26.