"Foi a nossa desgraça." Há dois anos incêndio matou 11 pessoas em Vila Nova da Rainha
Dois anos após o incêndio que vitimou 11 pessoas num torneio de sueca numa associação de Vila Nova da Rainha, a TSF voltou à aldeia e ouviu as queixas dos habitantes, que não esquecem aquela noite trágica, mas que querem também seguir com a vida, ansiando pela construção de uma nova coletividade onde possam passar alguns momentos de convívio.
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"Foi a nossa desgraça aquela noite", afirmou à TSF um morador, que se escusou a gravar declarações, desculpando-se com a pressa para ir trabalhar. Não quer falar muito sobre o que aconteceu.
Em Vila Nova da Rainha poucos são aqueles que aceitam conversar com jornalistas, dar a cara e até identificar-se. O trauma ainda está presente e recordar o que se passou há dois anos só traz "más memórias".
"A gente nem quer falar para não se lembrar das coisas. Tive lá um irmão meu que está num cemitério", afirma uma morada, que recusa identificar-se. "Foi difícil, ia ficando lá o meu filho, a minha nora, a minha irmã, um cunhado, dois sobrinhos... O que havia de ser da nossa vida... Parecia um filme de terror quando ouvimos gritar", recorda, com a voz embargada, uma mulher que se encontrava no rés-do-chão da coletividade a preparar comida para servir aos participantes do torneio de sueca.
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Desde o fogo que a associação continua de portas encerradas. Numa das entradas e junto a uma janela continuam duas faixas negras, em sinal de luto e em memória das vítimas mortais. Os vidros mantêm-se partidos.
Do exterior consegue ver-se as paredes negras no interior. Junto a um vidro que rebentou na noite do fogo estão ainda amontoados vários troféus. Depois do incêndio, pouco ou nada mudou nas instalações onde anos a fio se viveram inúmeros momentos de lazer e convívio.
É desses momentos que as gentes de Vila Nova da Rainha agora sentem falta. À TSF os moradores dizem sentir-se "abandonados". "Nunca ficámos tão abandonados como agora porque não temos nada para nos divertir", apontam.
"[A associação] faz muita falta. Se não fosse aquele rapaz ali em cima [que tem um café aberto] pior estávamos. Não tínhamos onde tomar um café; se não fosse ele, não tínhamos cá nada. Tínhamos a missa ao domingo", atira uma residente, em jeito de lamento.
O desejo de todos é que nasça em Vila Nova da Rainha uma nova associação em que todos possam confraternizar, mas não pode ser nas instalações antigas "porque tudo lembra o que se lá passou dentro".
"Devia abrir, mas ali não. Tem que ser noutro sítio", defende outra habitante.
Com o apoio da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal, está já a ser estudada a construção de uma nova coletividade que será criada em colaboração com a localidade vizinha de Gandara, que ficou sem associação nos incêndios de outubro de 2017.
"A nossa associação continua fechada porque ainda não temos solução para ela. Há uma hipótese sobre a mesa de fazer uma associação entre a Gandara e Vila Nova da Rainha e estamos a tratar do assunto. Vai nascer entre as duas povoações", revela Jorge Dias, presidente da coletividade de Vila Nova da Rainha.
O dirigente diz que o projeto conta com o apoio "de toda a comunidade", até porque é algo que "é sempre necessário e que faz falta nas aldeias" para as pessoas se encontrarem.
Para já a única coisa que se sabe é que tem que ser construído um edifício de raiz, não havendo uma estimativa dos custos.
"Estamos a estudar a forma como é que vamos fazer a associação, ainda não há definição do que vai ser", afirma, acrescentando que também ainda não há uma solução para o edifício antigo e que se encontra em ruínas.
À TSF Jorge Dias recusa ainda falar sobre a investigação judicial em curso por ter sido constituído arguido. Contactada, a Procuradoria-Geral da Republica diz apenas que processo se encontra em investigação, escusando-se a avançar mais detalhes.
Depois do incêndio, a Câmara de Tondela lançou uma operação para melhorar as condições de segurança nos edifícios do movimento associativo local para evitar novos acidentes.
A autarquia assinou protocolos com 74 coletividades, que sofreram várias intervenções e obras de melhoramento.
"Temos 51 desses processos concluídos, faltam-nos 23. E por que é que nos faltam concluir? Porque estes processos são muito complexos e muito diferentes. Temos associações que construíram edifícios em terrenos baldios e que não estão legalizados, que foram fazendo acrescentos sem nenhum tipo de projeto ou licenciamento, e, portanto, a Câmara aproveitou, não só para melhorar as condições de segurança contra incêndios nos edifícios, mas também para fazer o licenciamento dos processos, e isto é uma tarefa de uma enormíssima complexidade", argumenta Miguel Torres, vereador no município.
Os melhoramentos nas sedes das coletividades foram feitos após um levantamento realizado por quatro entidades credenciadas pela Autoridade Nacional de Proteção Civil.
"O que fizemos na esmagadora maioria dos casos foi a instalação de centrais de detetores de incêndios, extintores, fizemos a verificação de redes de gás, portanto tudo coisas que são tecnicamente hoje muito fáceis de verificar, mas que ao tempo que estas pessoas foram fazendo a construção dos edifícios não eram uma preocupação primeira", acrescenta o responsável, adiantando que aos dirigentes associativos foi também dada formação sobre medidas de autoproteção.
Estas medidas custaram aos cofres municipais 500 mil euros, num investimento classificado como "primordial" e que deverá estar concluído até ao final do primeiro semestre do ano.
À TSF, Miguel Torres acrescenta que a ideia da Câmara de Tondela é lançar uma espécie de manual de boas práticas para ajudar outras autarquias do país.
"É um processo que acho que é uma aprendizagem para nós todos. A nossa intenção é fazer um pequeno resumo histórico do que foi a complexidade do processo para que outros municípios que eventualmente possam pensar fazer iniciativas como estas possam aprender a partir da nossa experiência", aponta, vincando que esta "é uma coisa de uma enormíssima complexidade", mas também "uma responsabilidade muito grande em defesa de um tecido associativo seguro e coeso".
