"Janela para o mundo" nas aulas e "terrores" e "degolas" na SIC e no Expresso. Ricardo Costa recorda lado "muito difícil de replicar" de Balsemão
"Ele não interferia, não se metia a montante, mas depois era bastante exigente no dia seguinte ou depois das coisas serem publicadas", conta Ricardo Costa à TSF
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O atual diretor de conteúdos do grupo Impresa, Ricardo Costa, trabalhou durante décadas com Francisco Pinto Balsemão na SIC e no Expresso, mas foi como aluno que se cruzou pela primeira vez com o então professor.
"Na altura, era um mundo muito fechado. Não havia internet, o nosso acesso a jornais internacionais era nulo ou praticamente nulo. Vendiam-se jornais internacionais, em Lisboa, no aeroporto e nos Restauradores numas bancas boas de imprensa internacional. Conseguíamos comprar umas revistas de vez em quando, uma ou outra coisa, mas não tínhamos o acesso que as pessoas têm hoje. E as aulas dele eram uma janela para o mundo", conta Ricardo Costa à TSF.
O acesso era dado por Balsemão: "Ele falava dos jornais italianos, de grupos de media italianos, de grupos japoneses, americanos, brasileiros e nós ficávamos a saber o que é que era a Folha de São Paulo e o que é que era o Estado de São Paulo, o que é que separava esses dois jornais. Qual era o jornal mais vendido do mundo, que eu ainda hoje digo que é um jornal de Tóquio. Não sei se ainda é, mas na altura era e durante muitas décadas foi o Yomiuri Shimbun. Falava e explicava o que é que era o projeto daquele jornal e isso tinha um peso muito importante."
Mais tarde, encontraram-se no Expresso, semanário que tinha em Francisco Pinto Balsemão o leitor mais exigente.
"Ele não interferia, não se metia a montante, mas depois era bastante exigente no dia seguinte ou depois das coisas serem publicadas. Ou seja, por exemplo, em relação ao Expresso, que durante muitos anos era apenas um semanário, não tinha operação digital e era mais fácil de analisar, as reuniões à segunda-feira por vezes eram duríssimas. Nós, aliás, usávamos na redação e na direção o jargão de que 'íamos à degola'. E a degola não era porque íamos ser degolados literalmente, como é óbvio, mas porque durante o fim de semana ele tinha lido o jornal de ponta a ponta e analisava-o como jornalista", recorda.
Foram tempos de muita aprendizagem: "O que ele mais focava era se a notícia estava bem escrita, se o português era bom, se as vírgulas estavam bem colocadas, se o texto estava bem construído de forma a agarrar a atenção do leitor, se o título correspondia ao artigo, se a primeira página estava bem desenhada, se as fotografias tinham sido bem escolhidas. Isso às vezes era feito durante longas horas e nessas horas eu aprendi muito."
Essa exigência, revela Ricardo Costa, continuou depois da criação da SIC.
"Um dos meus maiores terrores a certa altura, já há muitos anos, numa primeira vez que eu fui diretor da SIC Notícias, entre 2003 e 2008, em que houve ali um período em que o doutor Balsemão seguia um modelo de organização em que à quarta-feira trabalhava em casa. Para nós era um terror, porque ele passava o dia com a televisão ligada e depois ia ligando a perguntar porque é que aquela reportagem estava mal feita ou porque é que aquelas imagens não correspondiam ao texto ou porque é que aquele oráculo tinha um erro, porque é que não atualizávamos uma notícia que estava a passar igual há dez horas e que já tinha coisas novas. Portanto, ele colocava uma pressão muito positiva, porque era uma pressão muito construtiva. Às vezes também se zangava bastante e nesse cômputo eu tive grandes lições de jornalismo, mesmo já quando tinha 30 anos de experiência", explica.
E, por isso, é difícil encontrar um perfil semelhante ao de Francisco Pinto Balsemão: "Esse lado é um lado que é muito difícil de replicar por qualquer outra pessoa e com todo o respeito pelos empresários e patrões da comunicação social passados, atuais e futuros, que há de haver muitos, espero. Essa característica é muito difícil de replicar porque só era possível em alguém que tinha decidido querer ser jornalista, ainda por cima quando não precisava de nada para isso, porque podia ter, como ele disse várias vezes, ficado só a viver dos rendimentos, porque nasceu numa família em berço de ouro, ou ser advogado, porque também tinha todas as condições para ser um advogado de sucesso, mas decidiu que não. Decidiu ser jornalista, primeiro no jornal do tio, o Diário Popular. Ficou muito chateado com a venda do Diário Popular que na altura o tio decidiu fazer, porque conseguiu vender a um bom valor, mas depois foi isso, aliás, que lhe deu a ideia de, pedindo também ajuda ao tio, poder, pouco tempo depois, arrancar com o Expresso", lembra.
Francisco Pinto Balsemão, antigo primeiro-ministro e fundador da SIC e do Expresso, morreu esta terça-feira aos 88 anos.