João Goulão: “A guerra às pessoas que usam drogas é um retrocesso civilizacional”
O presidente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e Toxicodependência, na Grande Entrevista TSF-JN, diz que “as verbalizações que endurecem o discurso político” quanto às drogas indiciam um retrocesso, que contraria o “farol que temos sido para o mundo nesta área”
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Está em funções ao abrigo de uma exceção aberta pela lei geral do trabalho em funções públicas, que só permite trabalho depois dos 70 anos, por manifesto de interesse público. Esse interesse público já lhe foi reafirmado pela atual tutela? E já agora se foi, está disponível para continuar em funções?
Fui convidado ainda pelo Governo anterior para continuar e para assegurar estas tarefas de consolidação ou de constituição de um novo organismo. Fui convidado pela atual tutela, a secretária de Estado da Saúde, Ana Povo, com quem interajo diretamente, mas aquilo que está combinado é que, tão breve quanto possível, o lugar que eu ocupo e o do meu colega vogal do Conselho Diretivo (Manuel Cardoso) será colocado a concurso. E pronto, é o normal, eu estou em substituição, é aquela figura que se conhece.
Já está, neste momento, em substituição?
Estou, estou em substituição, com a tal determinação específica do interesse público, foi-me autorizada a continuidade para além dos 70 anos. Mas, francamente, não há um prazo. O prazo que fixámos e que estabelecemos - a senhora secretária de Estado e eu próprio - foi que, quando o concurso para o provimento deste lugar estiver concluído, sairei. Acabou! Já chega. Desde 1997 que exerço funções de direção nos sucessivos organismos, o que tenho feito com enorme gosto e entusiasmo, mas francamente também está na altura de haver aqui uma renovação - até geracional - na direção deste organismo e penso que temos condições para isso. As coisas estão a andar, a caminhar para entrar em velocidade de cruzeiro.
E essa indisponibilidade, estende-se também ao restante Conselho Diretivo, que neste momento integra apenas o seu vice-presidente, se não estou em erro?
Sim, estamos ambos com esta disposição de estar enquanto for necessário, mas de sair assim que for possível. Ele está perto da minha idade, tem perto de 70 anos, temos sido companheiros nestas funções, também ele desde o tempo do SPTT, desde 1997, 1998, por aí. Temos feito uma excelente equipa, mas está na altura, de facto, de dar lugar a outros.
E estas dificuldades que este ano sentiu, do ponto de vista orçamental, também contribuíram para esta decisão de sair num momento em que a integração dos serviços ainda não está estabilizada e é um processo em curso?
As dificuldades financeiras decorreram do facto de não ter sido aprovado e todos sabemos as vicissitudes políticas que aconteceram ao longo deste ano, não houve uma aprovação. Embora o ICAD tenha sido criado no papel em outubro, não houve a inclusão de um orçamento para o ICAD para o ano de 2024. A única coisa que foi aprovada, foi o orçamento do SICAD. Como disse, há uma discrepância enorme de números, nomeadamente de profissionais.
São 11 vezes mais, só em termos de profissionais...
...portanto, é óbvio que ficou curto. E a partir daí, a partir do momento em que estávamos à beira de esgotar o orçamento do SICAD, foi necessário vivermos de balões de oxigénio sucessivos, e foram feitos por transferências casuísticas, sempre acorrendo às nossas necessidades. Às tantas houve aqui alguma perturbação. Até na comunicação e na identificação das nossas necessidades, mas pronto, ainda quinta-feira houve mais uma transferência que nos permite satisfazer os compromissos até ao final do ano - ou perto disso - pelo menos com as ONG que trabalham connosco. Agora, para o ano de 2025, aquilo que está previsto também é curto. Vamos precisar de reforços ao longo do ano relativamente àquilo que está previsto. Mas não é isto que é determinante para que eu saia. São 30 anos de atividade nesta área. Francamente, já chega. E não se justifica, que uma situação de exceção, uma autorização excecional para que um profissional de provecta idade continue em funções. Penso que já não se justifica.
As relações entre o Conselho Diretivo do ICAD e o Ministério da Saúde ficaram beliscadas com estes problemas de comunicação e com os atrasos que foram havendo neste ano?
Repare, beliscadas... É evidente que houve aqui episódios que não foram de todo agradáveis, mas também lhe digo, desde 1997 até agora já trabalhei com não sei quantos governos, não sei quantos ministros, não sei quantos secretários de Estado, e não é a primeira, seguramente não será a última em que há alguns desencontros na identificação ou na assunção das dificuldades. Mas pronto, acabou por ser suprido e creio que chegaremos ao final do ano sem défices. Foi isso que sempre tentámos fazer com a nossa gestão ao longo dos anos. Agora, não dá para grandes rasgos e isso sim depende da priorização política que possa ser dada a esta área. Todos nós temos visto nos últimos tempos algumas manifestações de preocupação com a visibilidade acrescida dos fenómenos relacionados com a droga nas ruas das nossas cidades. Todos nós vemos pessoas muito expostas no espaço público, muito fragilizadas do ponto de vista social e é evidente que para responder a estes desafios, precisamos de meios. Precisamos de meios, precisamos de suporte político, porque isto também é alguma coisa que não pode ser feita apenas por um organismo do Ministério da Saúde. Nós precisamos de suporte e de articulação, e pugnamos por isso, também com outras entidades que têm responsabilidades ao nível da habitação, do suporte social, enfim.
Da Educação?
Da Educação, obviamente, mas assim no mais imediato e naquilo que tem a ver com a tal visibilidade que dá inclusive lugar a que haja já alguma verbalização de intenções de inverter aquilo que é o paradigma em que nos movimentamos, um paradigma de descriminalização, de apoio e de consideração de que pelo Estado português é entendido que mais vale tratar do que punir. Portanto, algumas verbalizações que surgiram entretanto, no sentido de endurecer as políticas e de regressar...
É um retrocesso.
É um retrocesso. Do ponto de vista civilizacional, nós temos sido um farol para o mundo nesta abordagem. Não nos esqueçamos que a decisão de descriminalizar o uso e posse para uso pessoal foi tomada em 2000, foi verdadeiramente pioneira no panorama mundial. Hoje em dia houve vários países que seguiram, enfim, um caminho semelhante, mas pensar que afinal o modelo português se traduz num fracasso e é preciso emendar a mão e voltarmos outra vez à linha dura, à guerra às drogas, à guerra às pessoas que usam drogas, porque é disso que se trata, do meu ponto de vista seria verdadeiramente um retrocesso civilizacional.
Ainda em relação ao orçamento do ICAD que é, para o próximo ano, de 58 milhões de euros. O IDT (Instituto da Droga e da Toxicodependência, tinha um orçamento consideravelmente superior, de 74 milhões de euros. Já fez as contas para perceber quanto é que seria o reforço necessário para o próximo ano?
Já! Aquilo que está identificado e que foi a nossa proposta, andava à volta dos 80 milhões. Isto para que possamos ter a perspetiva de crescimento, de inovação, de oferta de novas respostas à população que pretendemos servir. Portanto, há aqui uma “décalage” muito importante, que é importante que seja gerida também do ponto de vista político. Vamos ver assim: nós falamos e bem do orçamento do IDT, próximo da sua extinção. Nessa altura, os problemas da droga e da toxicodependência eram identificados pelos governos como a primeira preocupação dos portugueses. Isto tinha reflexos políticos, obviamente, naquilo que era o investimento que o Estado estava disposto a fazer nesta área. Se calhar trabalhámos bem demais e as questões da droga vieram por aí abaixo e hoje são para aí a décima terceira ou décima quarta preocupação dos portugueses. E isto também tem reflexos políticos. Agora, a escolha é: queremos que o fenómeno continue a recrudescer e que ganhe as proporções que tinha, por exemplo, no final dos anos 90, em termos de estimativa, detetaríamos pelo menos 100 mil utilizadores problemáticos de droga, sobretudo de heroína? Se deixarmos as coisas evoluir, se calhar voltaremos a esses números.
Aquilo que nos estava a dizer nesta conversa a propósito do orçamento, leva-me a perguntar-lhe se acha que só uma pessoa de esquerda compreende as políticas de prevenção da toxicodependência? Porque as estratégias são diferentes à medida que os governos vão mudando de sentido.
Sim, mas voltando outra vez à longevidade da equipa, a minha e do meu colega do conselho diretivo, Manuel Cardoso, eu penso que conseguimos garantir uma certa linha de rumo, independentemente das inflexões políticas, porque também estamos muito habituados a que os governos, os governantes com responsabilidades nesta pasta, nos chamem e nos consultem a propósito daquilo que será mais indicado fazer. E ouvem, e de uma maneira geral ouvem, e temos sido ouvidos na definição das políticas. Ainda por cima porque o presidente do IDT, agora o presidente do ICAD, também o diretor-geral do SICAD, foi e é por inerência, o coordenador nacional da política das drogas. O responsável político das políticas de droga, de comportamentos aditivos em Portugal é o Ministro da Saúde. Mas depois. há estruturas de coordenação nacional que congregam variadíssimas áreas governativas. Cada um dos ministros que tem assento no Conselho Interministerial para os Comportamentos Aditivos designa um representante pessoal que esse sim trabalha diretamente comigo e nós construímos juntos e refletimos juntos a propósito daquilo que é mais indicado fazer nesta ou naquela área, seja na redução da oferta. Quando falamos de drogas estamos a falar de combate ao tráfico, de combate à importação dos produtos em larga escala, de preferência, e temos sido muito eficazes. A Polícia Judiciária, as outras forças policiais, PSP, GNR, enfim, vários parceiros, as alfândegas, têm sido muito eficazes e, aliás, aumentaram a eficácia depois da descriminalização, Porque em vez de consumirem todo o seu tempo e energia com as vítimas, puderam dirigir a sua atenção às grandes organizações criminosas e têm infligido, todos os dias vemos agora, felizmente, nas televisões e ouvimos as notícias de grandes apreensões de larga escala, que doem, já doem, de facto, nessas organizações.
Também aqui as multinacionais estão a investir em Portugal...
Sim, aparentemente, também. Mas pronto, a questão da redução da oferta traduz-se também naquilo que é a regulação de algumas atividades lícitas e também, por exemplo, naquilo que tem a ver com as bebidas alcoólicas. O álcool é legal, mas isto não o isenta (ao Estado) de alguma regulação, isto tem a ver com a questão da publicidade, por exemplo, onde é necessário fazer mais do que tem sido feito, há uma política de preços, que também seria importante que fosse feita, o álcool em Portugal é disparatadamente barato, portanto, faria sentido que houvesse também alguma regulação da oferta por via de uma política de preços, de uma política fiscal. A publicidade, enfim, há vários aspetos onde a regulação é também, e esta vertente da pressão da oferta é importante. Também no jogo, por exemplo, também na internet, há uma série de atividades regulamentares que é fundamental desenvolver. Claro que o ICAD, enquanto organismo do Ministério da Saúde, não tem a capacidade de o fazer, mas no âmbito das estruturas de coordenação nacional, em que interagimos com a Economia, com as Finanças, enfim, com a Educação, obviamente, mas também com a Administração Interna, com a Justiça, por aí fora, é possível consertar, influenciar e conduzir, digamos assim, as discussões de um determinado sentido. Na redução da procura, que se consubstancia em várias áreas de missão, desde logo a prevenção, é fundamental, por exemplo, a intervenção da educação, do Ministério da Educação, e interagimos muito intensamente com esta nova configuração do ICAD teremos maior capacidade de participar localmente no esforço preventivo, ao nível escolar e não só. Nós falamos muito das escolas, mas se calhar é importante pensarmos no abandono escolar precoce que deixa vulneráveis franjas importantes da população juvenil, enfim, apenas para dar o exemplo. Mas depois temos tratamento, redução de riscos e minimização de danos, que é um conjunto de políticas muito mal visto em termos até da ONU, até há muito pouco tempo, porque é tido como um conjunto de políticas que contemporiza com o facto de as pessoas escolherem utilizar. Do nosso ponto de vista não é isso, nunca foi. É um conjunto de políticas que tentem proporcionar às pessoas que usam drogas ou que têm um determinado tipo de práticas, uma melhor esperança de vida e uma melhor qualidade de vida.
E as instituições internacionais, nomeadamente a Organização Mundial de Saúde, já estão a virar também aí?
Sim, e até os Estados Unidos. Eu ouvi no ano passado, em março, em Viena, o secretário de Estado, Antony Blinken, fazer um discurso favorável ao desenvolvimento de políticas de redução de danos, que era impensável.
Isto agora pode mudar, não é?
Isto agora pode mudar. Não sabemos para que lado é que vão apontar os ponteiros.
De todas estas arquiteturas com as quais o Dr. João Goulão foi convivendo, qual é que é o modelo ideal, aquele que mais se aproxima do correto? O atual, ou seja, uma concentração de liderança nas diversas áreas dentro do ICAD?
Sim! Aliás, batemo-nos por isso e logo foi tomada a decisão do tal “split”, que foi um bocado o que aconteceu em 2012, começámos a bater-nos pelo regresso ao modelo anterior, porque se entendeu de imediato que, apesar de todo o esforço que as próprias ARS fizeram para assegurar um trabalho e aos profissionais no terreno, uma coisa é ter um organismo completamente devotado a este tipo de temática, outra é ter um gigante como eram as ARS, com inúmeras preocupações com a saúde em geral dos cidadãos, com uma manta que é sempre curta, ou se tapa a cabeça ou os pés, nunca dá para tudo, e no meio desse universo de preocupações esta foi sempre uma área menor. Portanto, sentimos que havia algumas entropias a serem introduzidas. Pouco depois da decisão, houve um abaixo-assinado subscrito por 600 e tal profissionais da área, reivindicando o regresso ao modelo de concentração, capacidade de pensar a política e de a executar com meios próprios. Tardou, mas conseguimos de facto regressar a um modelo que é muito próximo do do IDT, mas tem algumas nuances, algumas diferenças, nomeadamente a supressão de instâncias regionais e no modelo atual o empoderamento é todo devotado às unidades de intervenção local que têm uma responsabilidade territorial ao nível do distrito e não de uma grande região, seja região norte ou centro, Lisboa e Vale do Tejo. Portanto, temos unidades, são os CRI - Centros de Respostas Integradas – e cada um deles tem a capacidade e a responsabilidade de desenvolver no seu território as atividades de prevenção, tratamento, redução de danos, reinserção social.
E nota sinais de eficácia desse grupo?
Sim, sim, muito mais do que no anterior.
Esteve no Brasil recentemente a colaborar num eventual modelo de descriminalização das drogas leves a aplicar pelo Governo brasileiro. Que conselhos é que levou da experiência de Portugal?
Eu tive a honra de ser chamado pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, que está a discutir efetivamente a descriminalização do uso, para já só da maconha (cannabis). Não se perfila uma medida semelhante para algumas outras substâncias problemáticas no contexto brasileiro, como seja o crack, por exemplo. Todos ouvimos falar das “crackolândias” e de situações muito problemáticas relacionadas com isso. Aquilo que fiz foi partilhar a nossa situação. Foi, de facto, uma sessão interessante com o Supremo Tribunal Federal, com o Ministro da Justiça, com o staff, digamos assim, de ambos os órgãos, e partilhei alguns aspetos práticos da nossa aplicação da lei da descriminalização. Nomeadamente, defendi a instalação do órgão que operacionaliza a descriminalização em Portugal, os órgãos, que são as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, e que nos proporcionam uma instância de interação com pessoas que de outra maneira não procuram o apoio dos serviços de saúde. Aí, nessas comissões, é possível interagir com determinadas pessoas que, de outra maneira, não tocamos. E nesta atividade, nestas comissões, nós conseguimos, por um lado, encaminhar quem é dependente, quem precisa de tratamento, etc., para as respostas adequadas, mas sobretudo para aqueles que não são dependentes, mas que já consomem, identificar fatores de risco suplementares, possam ser de alguma forma removidos. Felizmente, na nossa experiência, a esmagadora maioria das pessoas que são presentes às comissões para a dissuasão da toxicodependência não são toxicodependentes. São utilizadores ocasionais, recreativos, etc. Isto na proporção, pelo menos 20 toxicodependentes para 80 não dependentes, se calhar é superior esta percentagem. Mas com os não dependentes, nós podemos identificar “pronto, eu não tenho problemas com drogas, eu fumo um charro no fim de semana com os amigos para ir à festa, para ir à discoteca, mas os meus pais estão em processo de divórcio, o meu pai ficou desempregado recentemente, eu próprio estou com algumas dificuldades a lidar com, sei lá, com a minha sexualidade, com a minha orientação sexual, o que for”. E isto permite aos membros da Comissão encaminhar estas pessoas para respostas da comunidade que possam ajudá-las, ajudar estes utilizadores de drogas a lidar com os seus problemas e evitar que o consumo possa vir a ser mais problemático mais tarde. Portanto, isto é uma instância de prevenção indicada. E foi muito nesta ideia que eu insisti junto do Supremo Tribunal Federal do Brasil e do ministro da Justiça brasileiro, que eu diria que ficaram fascinados com a ideia. Portanto, eu espero ter conseguido deixar ali uma pequena semente, ou pelo menos uma achega, àquilo que já era uma discussão bastante aprofundada.
Do ponto de vista do médico que está a lidar com os casos de tratamento e também da prevenção, acha que por cada traficante que for retirado das ruas, há um impacto imediato na dimensão ou no volume de droga que chega às ruas?
Eu penso que não. Aquilo que é determinante é, de facto, a interseção de grandes quantidades que entram no mercado. E aí penso que há reflexos que são sensíveis depois do funcionamento do tal mercado. Desde logo pelos preços, porque se chega menos uma tonelada à rua, o preço dispara.
Portanto, há menos gente a conseguir.
Exatamente. É evidente que depois isto é uma série de reações.
O mercado regula-se?
O mercado regula-se e há uma série de reações em cadeia, porque se calhar a criminalidade também aumenta em resposta às necessidades aquisitivas dos utilizadores que são dependentes e que não passam. E temos que ter a consciência de que a dependência ocasiona, de facto, uma inventividade brutal, sem fim.
Portanto, a aposta tem de ser na limitação da procura?
A aposta, penso que deve ser consertada entre a redução da oferta, portanto, e a tal eficácia acrescida que temos assistido por parte das nossas forças policiais, penso que é um esforço louvável e de continuar e dotar as forças policiais de meios para serem cada vez mais eficazes. É evidente que a desproporção financeira é brutal, nós vemos agora que foi possível dotar a Polícia Marítima de lanchas rápidas que, durante anos sem fim, era quase brincar ao gato e ao rato quando os traficantes utilizavam, de facto, lanchas rapidíssimas e nós andávamos a passo de caracol. Hoje em dia, as coisas estão mais aproximadas e é possível, de facto, ser mais eficaz, mas em absoluto é pela redução da procura que lá vamos, muito mais do que pela redução da oferta.
A outra dependência é a do jogo. É mais, neste momento, é mais ou menos relevante do que o impacto que tem em termos sociais a droga e o álcool?
Eu acho que o maior impacto em termos sociais e de saúde advém do abuso do álcool. Neste momento é talvez a preocupação dominante. Depois virão as substâncias ilícitas, nomeadamente o crack, que é uma substância muito desorganizadora, muito propiciadora de passagem ao ato e que passa por violência, algo a que não estávamos muito habituados. Mesmo quando tivemos a tal população de 100 mil utilizadores de heroína, eles eram, de uma forma geral, cordatos e pouco dados a atos de grande violência. Havia um ou outro roubo por esticão, mas assassínios e coisas de grande violência eram incomuns. Com o crack, as coisas são um bocado diferentes.
Os efeitos secundários mais graves.
Exatamente, é aquela sensação de poder e do “quantos são”, que propicia de facto essa situação. Agora, o jogo, a dependência da internet, termos muitas pessoas jovens e menos jovens, em frente do computador ou do telemóvel e nem sempre para atividades muito produtivas, na maior parte dos casos a exploração das redes sociais. Mas também temos que ter a consciência que, por exemplo, no que diz respeito aos jovens, há aqui equilíbrios que temos que procurar, porque de facto há uma determinada geração que, por exemplo, foi afetada no estabelecimento de relações interpessoais pela ocorrência da pandemia. E aprenderam a comunicar e comunicam e falam uns com os outros através do telemóvel.
Ganharam competências por um lado, mas perderam outras...
Exatamente, perderam outras. Agora, eu gostaria muito de ver um caminho a ser feito e que incorpore de uma forma menos perturbadora a utilização destas tecnologias, mas a par daquilo que é o restabelecimento de relações interpessoais, que eu acho que é a grande chave disto.
A proibição de telemóveis na escola, por exemplo, neste caso, pode ser uma medida com utilidade?
Para miúdos mais novos eu acho que pode ser importante, mas depois, a partir daí, eu acho que é preciso ponderar muito bem até onde é que é legítimo ir.
E este, tanto no caso dos ecrãs como no caso do jogo, acha que há a necessidade de adaptar aqui também a resposta em relação à saúde mental?
Sim, sim. Também uma interação cada vez maior. Agora, nós já estamos tendo pedidos de ajuda relacionados, quer com o jogo, quer com a tal dependência de ecrãs, nas unidades dedicadas às drogas e ao álcool.
E chegam das unidades de saúde ou das próprias famílias?
Todas. Próprias, das famílias, ou são referenciados pelo médico de família, enfim. Há várias vias para cá chegarem. E, ao fim e ao cabo, aquilo que subjaz todos estes comportamentos é o mesmo tipo de mecanismo, que é o mecanismo da recompensa, é o prazer que determinada atividade ou determinada substância proporciona ao indivíduo. Portanto, os nossos profissionais com experiência nesta área são muito eficazes a lidar com estas questões. Claro que isto depois entrecruza com a patologia mental mais ou menos pesada, pode acontecer.
Queria perguntar-lhe se o estar a apoiar e a financiar os jogos da sorte, se isto não é uma contradição, quando o Estado tem de prevenir e depois tratar os custos de uma doença, depois estar a financiar a própria causa da doença?
Repare, há de facto aqui algumas incoerências difíceis de sanar. Vale para tudo isto, por exemplo, nós temos a exploração dos jogos sociais em Portugal, feita pela Santa Casa da Misericórdia, que depois distribui uma parte muito significativa dos proventos, enfim, do jogo, para alguns beneficiários, entre os quais o ICAD. É evidente que isto não pode, de alguma forma, tolher a nossa atividade, mas é sentido, obviamente, como isto não é talvez a melhor solução quando temos responsabilidade nestas matérias. Mais uma vez, esta é também uma matéria que tem uma responsabilidade repartida, eu não sinto que o ICAD tenha que empunhar a bandeira do combate aos jogos sociais, mas também não acho que se possa inibir de tomar determinadas posições quando se discutem medidas a propósito, por exemplo, do jogo mais controverso e mais vezes badalado com uma raspadinha, por exemplo. Mas pronto, há de facto aqui alguma incoerência.
Ia perguntar-lhe mesmo sobre as raspadinhas. Um estudo de há um ano concluiu que há cerca de 100 mil pessoas com problemas de raspadinhas em Portugal e que cá joga-se mais do que lá fora. Eu gostava de perceber como é que vê este fenómeno e como é que podemos, enquanto país, invertê-lo para podermos aproximar-nos, enfim, de outros comportamentos europeus.
Essa também é uma pergunta de resposta muito complexa. Nós vemos, e mesmo sem estudos, existem estudos, nós próprios já publicámos também um estudo a propósito dos jogos sociais e, nomeadamente, a raspadinha. Têm números que não são exatamente coincidentes com o que tem sido mais recentemente aflorado, mas todos nós podemos ver a olho nu a utilização da raspadinha, basta entrar em qualquer quiosque a determinadas horas e vemos uma fila de senhoras de idade, de classes sociais bastante fragilizadas, a jogar compulsivamente na raspadinha na expectativa de que possam resolver os seus problemas económicos e de facto estão a avolumá-los cada vez mais.
Basta estar lá e olhar para as pessoas...
Basta olhar, é um estudo empírico ali “à boca das urnas”, como se costuma dizer. É evidente que contrariar este fenómeno, passa também por alguma pedagogia que os próprios agentes de pontos de venda possam eventualmente desenvolver, mas passa por informação, pelo desenvolvimento da literacia também da nossa população. Mas tudo isto é também muito geracional e demora tempo a atuar. Mas vejo com preocupação essa realidade que, mais uma vez, afeta sobretudo os mais frágeis.
Quando diz que é geracional, noto aí alguma expectativa de que na próxima geração já não seja um fenómeno tão intenso, é isso?
Sim, sim, tenho essa expectativa.
Até pela questão da literacia?
Exatamente, até pela questão da literacia E no entender-se também que quanto mais imediato é o resultado de um determinado jogo ou de uma determinada atividade, mais apelativo ele é. Por exemplo, temos muita gente, muitos milhares de pessoas que jogam no Euromilhões, que sai duas vezes por semana. Mas a capacidade aditiva do jogo Euromilhões é completamente diferente do que acontece com a raspadinha, que eu compro e imediatamente tenho o resultado. E a tendência é de, isto agora só saiu um euro, vamos jogar este euro, porque a seguir vão sair os 10, ou os 20, ou os 50, portanto a capacidade de motivar a repetição do ato é muito maior quando o resultado é imediato. Mas a discussão deste fenómeno passa pela tal literacia, pela discussão no espaço público, pela informação, e de facto penso que nós não vemos com a mesma frequência os jovens a aderirem a este tipo de jogo.
Mas não aderirem a outros? Ou seja, em vez de jogos de sorte, não estão a aderir a outros jogos online?
Também penso é que nós não podemos diabolizar em absoluto tudo. Há aqui uma componente lúdica que eu acho que deve ser preservada. Nós não podemos patologizar tudo. Nem ter a embarcar na tendência de proibir ou de pôr regras muito complexas. Lá está, a educação é a grande base para a intervenção nestas matérias e considerar de facto que as coisas estão a ir para além do normal, quando efetivamente estão a ir para além do normal.
