Jorge Braga de Macedo: "O otimismo de António Costa não cola"
Há três décadas apontou o oásis, quando todos viam o deserto. Ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, Jorge Braga de Macedo não vê agora qualquer razão para o otimismo e considera estarmos num cenário económico e político de que não há memória desde a II Guerra Mundial. Afirma que as governações socialistas nunca tiveram ímpeto reformista e alerta que Luís Montenegro só conseguirá devolver relevância ao PSD se tiver uma mensagem e uma alternativa.
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Quando era ministro das Finanças, a inflação era um problema sério. Em 1991 estava nos dois dígitos. O cenário poderá repetir-se a curto prazo?
Se quer perceber a diferença da situação de agora e nos anos 90 tem de recuar. Porque há uma década, que foi a de 70, em que justamente aconteceu a combinação de inflação e estagnação. A combinação de inflação e recessão é um mal que toda a gente entendia estar resolvido. Estamos no início e o Banco Central Europeu vai reunir e decidir, apesar de já se saber que vai diminuir as taxas de juro, vai diminuir quanto? Se tiver de diminuir demais há uma deterioração da atividade económica, uma grande agonia parecida com os anos 80. O BCE, não só a presidente mas o economista chefe, está a ser prudentíssimo. Se fazem comparações com os anos 70, juntando uma pandemia e uma guerra na Europa, estamos numa situação de que não há memória desde a Segunda Guerra Mundial, estamos a ir muito para além das comparações que podemos fazer.
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Como interpretou os avisos do ex-PM e ex-PR Cavaco Silva a António Costa? Partilha das preocupações quanto às políticas económicas do Governo?
Sim, a resposta é muito simples, partilho. Cavaco Silva é um amigo, um académico, e tivemos uma série de decisões em conjunto. É uma pessoa que, para além de uma capacidade de líder, já demonstrou uma preocupação grande na comunicação. Dava guias aos ministros do que deviam dizer ou não. Acho que a maneira como alertou o primeiro-ministro, que se meteu com ele... Esta maioria, agora absoluta mas que já aconteceu com ligações pouco habituais - não há nenhum mal em inovar, mas há inovações melhores que outras -, leva a um estado de autossatisfação relativamente ao que se está a fazer que é incompreensível.
Fala do otimismo irritante de António Costa, como já foi classificado?
Não, isso era o oásis, era o que se dizia de mim. Eu não achava o meu otimismo irritante, mas este não é achar irritante ou deixar de achar: é que não cola, não cola. Quer dizer, há uma maneira de achar que está tudo bem, mas evitam-se os problemas. Se calhar, durante as maiorias de Cavaco Silva encararam-se problemas de mais e pensou-se que se conseguiam resolver os problemas todos e afinal não se conseguiu. Mas havia um ritmo reformista. As reformas estruturais são essenciais para uma economia que está em desenvolvimento.
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O Partido Socialista tem oportunidade para reformas nos próximos orçamentos? É cedo para apontar aquilo que possa ser o caminho do Governo?
Não é cedo, porque julgo ter acompanhado o que se passou durante este período e custa-me muito a crer que de facto esta maioria absoluta serôdia possa criar um ímpeto reformista que nunca existiu. É evidente que as reformas estruturais, se não se fazem num cenário positivo, são muito mais difíceis, não são aceites.
A ausência de reformas prende-se também com alguma falta de acutilância da oposição? A relevância que foi dada à intervenção de Cavaco Silva é um sinal de que nos faltam outros protagonistas críticos do Governo?
A oposição em Portugal sempre foi fraca. Isto foi assim no século XIX. Foi assim no Estado Novo, depois há alturas em que há o fartote, há uma revolução, mas muitas vezes não altera nada. A falta de oposição em Portugal é um problema e foi um problema com estes governos da "geringonça" e é um problema agora.
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Acha que o PSD é hoje um partido médio, como afirmou recentemente Pacheco Pereira? Espera que a liderança de Luís Montenegro venha inverter o estado da arte?
Sim, certamente que espero isso. Porque de facto ele tem as características que permitem pensar num reforço da mensagem junto do eleitorado. Mas o problema não se pode limitar aos partidos existentes, ou mesmo aos partidos tradicionais. Montenegro conseguirá que o PSD tenha mais relevância do que tem tido nos últimos anos, se tiver uma mensagem alternativa. Eu não tenho dúvida que é à volta das reformas estruturais, elencá-las, com cuidado, explicar até que ponto o que está a acontecer na educação, na saúde, nas Forças Armadas, na própria política externa é recuar relativamente ao que se tinha atingido antes deste período de governação.
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Esta semana soubemos que o PIB português foi o que registou maior crescimento homólogo no 1.º trimestre. Vê nesses números algum sinal de ânimo da economia ou, pelo contrário, são apenas um sinal enganador face à estagnação que tínhamos tido no trimestre do ano passado?
Já respondeu à sua própria pergunta. O que é absolutamente essencial, sobretudo para economistas profissionais, é evitar estarem agarrados à última estatística. Até porque os dados, neste momento, com a guerra, com os problemas do lado da oferta e as cadeias de valor, com a própria circunstância do euro e de estar rodeado - é a América que vai tomar a iniciativa, já tomou, do aumento dos juros -, realmente os valores do crescimento do PIB neste período são extremamente voláteis. Não lhes daria importância absolutamente nenhuma.
O Governo está a ser coerente quando recusa aumentos na Função Pública acima de 0,9%, mas por outro lado aumenta de forma acelerada o salário mínimo e pede aos privados que contribuam para uma subida de 20% do salário médio ao longo dos próximos quatro anos?
Excelente pergunta, porque de facto se vê aí até que ponto a política é uma no cravo, outra na ferradura, em função da capacidade de resistência dos vários grupos. Naturalmente quando havia a "geringonça" os sindicatos eram sagrados, se calhar agora são menos. A sensação que eu tenho neste Governo é que é o que dá. E repito: há muitos períodos na História de Portugal em que se governou assim.
É inegável que Portugal é um dos países da UE com os salários mais baixos...
Mas é o que é, é o que é! E mesmo assim estamos a ser ultrapassados pelos países do Leste. Portanto alguma coisa está a correr mal. Não pode haver contemplação relativamente à falta de preparação e mesmo se se olha para questões elementares, como a resiliência, à maneira como é o plano e se vai gastar os fundos europeus, a questão do ambiente, eu acho que não está a haver cuidado e não está a haver debate. A questão do salário mínimo e do salário médio tem sido muito grande, até a nível do Banco de Portugal. Há uma série de detalhes que são importantes e, de facto, a obsessão é sindical. Não tenho nada contra os sindicatos, mas acho que são demasiadamente usados do ponto de vista político.
O debate sobre a semana de quatro dias é também extemporâneo?
Nós temos de ter uma visão de conjunto. Um salário não é apenas uma hora, é também o número de horas. Estamos a falar do rendimento de uma parte da população! O efeito é uma falta de ímpeto reformista credível, em parte por não haver oposição política tão forte como seria desejável, mas, por outro lado, também porque é a maneira como o Partido Socialista governa. Eu volto ao exemplo de Guterres, que é um santo! Porque é que ele deixou que a almofada de juros fosse desperdiçada? Não há caso paralelo. Sem reformas não vamos lá.
Com a subida das taxas de juro e as dificuldades que está já a causar no crédito à habitação, justifica-se o regresso das moratórias? Teme que a guerra possa ter impactos desastrosos para as famílias?
Sim, eu temo esta guerra. A circunstância de nós estarmos muito longe ajuda-nos, indiscutivelmente. Quer dizer, sempre foi assim ao longo da História. Não fomos mais invadidos porque era longe. É uma realidade. Tenho receio que a guerra fique complicada no Norte. Acho que, neste momento, os países nórdicos estão aflitíssimos e a minha preocupação geopolítica é grande. Agora, a questão, voltamos à mesma. A política económica tem de se fazer em qualquer conjuntura internacional. E se a política externa não nos oferece grandes garantias, a política interna é muito mais discutível, porque passa a ser muito mais dependente de arranjos eleitorais ou de arranjos com os grupos de pressão, que é o grande perigo deste Governo, pelas razões que eu indiquei. Então porque é que eu desconfio mais da política externa, neste momento? Julgo que o Partido Socialista está muito mais enfeudado àquilo que é o pensamento da Internacional Socialista, que é bastante importante na Comissão, embora a comissária seja de outra orientação, e portanto, de facto, desconfio.
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O facto de estarmos longe, geograficamente, da guerra pode beneficiar setores como o turismo, ou o transporte logístico e o papel de Sines na recomposição no setor energético?
Sim, acho que sim. Eu poria é a ordem inversa. Questões como Sines são extremamente relevantes para o nosso posicionamento. Certos aspetos da alteração energética que vêm ligados também são altamente positivos. Ao que parece, até houve algum desacerto nas questões do hidrogénio com a Comissão. E o primeiro ponto que referiu, para mim, seria o último. É depois das outras coisas todas que se pode dizer: "atenção, o turismo é bom, mas quando é demais, é mau e autoliquida-se". E, se calhar, já em várias partes do país se está a chegar a isso. São realidades que um país turístico tem de aprender a gerir. Aprendeu? Não sei. Por isso, eu poria no fim.
Deixe-me só colocar-lhe uma pergunta e pedia-lhe uma resposta breve.
Da reforma fiscal não falámos. É pena. Tinha uma proposta tão bonita.
E qual é a sua proposta?
Era a taxa única do IRS. Foi chumbada. A própria Comissão da Reforma Fiscal a chumbou. Mas era uma maneira de simplificar o sistema fiscal. Por isso é que eu estou a insistir.
A pergunta ia nesse sentido. O país tem das mais altas cargas fiscais da Europa. Mas há uma grande complexidade da máquina fiscal e um problema de falta de transparência sobre a forma como são gastos os nossos impostos. Concorda com isso?
Totalmente. Se houve uma coisa boa que foi feita e que, enfim, espero que já ninguém a negue, foi feita pelo Governo de Passos Coelho, foi criar um Conselho das Finanças Públicas. Foi sempre liderado por mulheres até agora, e bem, muito diferentes uma da outra, e, portanto, haver um olhar sobre as contas públicas... Já havia a UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental), toda a gente criticava a UTAO. Eu até dizia, às vezes, "não deem tautau na UTAO". É essencial um sistema orçamental legível pelos cidadãos. Isto está uma confusão lamentável. A taxa única tem defeitos, mas consegue ser progressiva à mesma por causa das deduções e simplifica aquela questão de saltar de nível a nível, que é uma baralhada e uma confusão, por isso eu a propus quando estava na comissão fiscal. Não a aceitou, mas é a minha proposta, e propu-la com o Vítor Gaspar, já agora, não estava sozinho. Foi muito trabalho, o sistema fiscal melhorou um bocadinho, sim. Cadilhe atirou-se àquilo, nomeou, mas o sistema fiscal continua impenetrável. E isso é uma desvantagem. Atacar isso é bastante relevante e o facto de não ser feito, mais uma vez, confirma as minhas piores suspeitas.
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