José Pimenta Machado: "Podemos ter de fazer descargas na barragem de Odelouca nos próximos dias"
Em entrevista à TSF, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente detalha os números históricos de armazenamento de água em Portugal nos últimos meses e insiste que a água salvou-nos no dia do apagão elétrico.
Corpo do artigo
As águas de março e de abril acabaram com a seca em Portugal Continental?
É mesmo isso! Eu quero recordar que em dezembro de 2024, tivemos o mês de dezembro mais seco de sempre, desde que há registos. Isto é, desde 1931. O volume de água armazenado nas albufeiras era na ordem dos 70% - média nacional - sendo que no Algarve era na ordem dos 24%. É verdade que tivemos os meses de janeiro, fevereiro, março e abril, que nos trouxeram sete eventos extremos, e de uma natureza diferente. Desta vez, felizmente, tivemos muita chuva a sul do rio Tejo. Normalmente só muito mais a norte do Tejo, mas desta vez tivemos duas frentes, e a Jana em particular, permitiu encher as barragens do Algarve, e mesmo dar um bom contributo para as barragens das bacias do Mira e do Sado, e foram também muito bons para encher a barragem do Alqueva. E portanto foram quatro meses muito bons, que mudaram, diria, de uma maneira muito significativa, o volume de água armazenado nas nossas albufeiras. Dados de hoje (quinta-feira), fresquinhos, atuais: a média nacional das albufeiras é de 93% - é um muito bom número - e quero recordar que temos prevista mais chuva, no Algarve em particular. Eu destaco o Algarve, porque nós no ano passado estávamos na pior situação de sempre, e este ano estamos na melhor situação de sempre. No Algarve, neste momento, a média do das albufeiras é de 89%, com destaque para a grande barragem do lado do barlavento, que é Odelouca, com 92%. Aliás, com estas previsões que temos de chuva, podemos ter de fazer uma descarga preventiva por questões de segurança desta barragem, uma coisa que eu não consiguiria antecipar, mesmo com o maior otimismo de sempre.
É inédito?
É quase inédito. No lado do Sotavento, temos duas albufeiras muito importantes, Odeleite e Beliche, uma está a 92%, que é a albufeira de Odeleite, e 97% a albufeira de Beliche. Diria, que estamos muito bem, no Algarve. Já agora, no Algarve, convém destacar uma barragem que os portugueses conhecem, que é a barragem da Bravura, pelos níveis historicamente baixos, e que no ano passado estava com 11%. Hoje, está com 61%. E sabemos bem que aquela barragem é tão importante para a agricultura, e os agricultores nos últimos anos foram muito sacrificados que foram impedidos de regar, porque não tínhamos água nessa albufeira, e hoje está com 61%, e portanto a regra vai ser normal. São muito bons números!
Isso quer dizer que se pode gastar à vontade ou não é assim?
Não, não diga isso. Eu digo sempre na minha intervenção pública, que este ano é uma exceção à regra. Eu quero recordar que nos últimos 12 anos, no Algarve, choveu menos 30% em relação â média. E que nos últimos 13 anos, há um agravamento dos 30% para 45%. Temos que encarar este ano como uma excepção. É uma boa excepção.
Neste caso, temos água para quanto tempo?
A água que temos no Algarve permite-nos, mesmo que não caia, uma pinga de chuva, para três anos. Dá-nos tempo e tranquilidade para...
Mas com consumos eficientes...
Com consumos eficientes e esses é o trabalho que o Algarve tem feito. Eu quero recordar que o Algarve fez um trabalho absolutamente notável. É usado nos fora internacionais, mas também cá, em Portugal, pelo trabalho que fez na gestão da seca.
Foi uma austeridade da água?
Mas em que os setores, todos eles, contribuíram de uma maneira muito comprometida. Eu quero recordar que a agricultura fez um trabalho incrível, cobrindo muito especial dos seus agricultores, em particular o engenheiro Macário Correia, que liderou o perímetro de rega do sotavento. Eles fizeram um trabalho incrível, pouparam 30% daquilo que eram os consumos médios históricos, e não comprometeram as culturas. Portanto, o Algarve foi um exemplo na questão da seca. É muito elogiado nos fora internacionais na Europa, na Califórnia. Aliás, um dia destes tivemos uma reunião com os colegas da Agência do Ambiente da Califórnia, que quiseram perceber “como é que vocês fizeram isso”. O Algarve, de facto, é um exemplo internacional.
A Califórnia é um bom exemplo de seca como tragédia contínua, há vários anos?
Exatamente. Eu concordo com a sua expressão, é uma tragédia contínua e, de facto, puderam perceber como é que Portugal geriu, em particular o Algarve, geriu essa situação.
Esses três anos de garantia de água no Algarve, inclui as necessidades para o abastecimento doméstico, industrial - no caso do Algarve industrial é o turismo - e a agricultura? É isso?
É isso.
E no resto do país?
No resto do país estamos muito bem, também. Nós temos neste momento uma média armazenada no conjunto das albufeiras de 93%. Nós temos armazenado cerca de 15 mil hectómetros cúbicos. São 15 mil milhões de metros cúbicos. É muita água! Vou dar um exemplo: estamos aqui em Lisboa e a grande origem de água para Lisboa é a barragem de Castelo de Bode que neste momento está a 97%. Repare bem: 97%! Já agora no Zêzere, temos uma barragem de montante tão importante. A barragem de Cabril é a 4ª maior barragem de Portugal, e tem 97% da capacidade. E a barragem entre elas, que é a barragem da Bouçã, está a 100%. Nós temos hoje em Portugal, uma coisa incrível: 19 barragens com 100%. E portanto estamos muito bem preparados para enfrentar os anos seguintes.
Quer dizer que não há ponto de comparação com o passado em relação ao momento atual, em termos de volume de água que está já armazenado?
Não, este é um ano muito bom, do ponto de vista de reservas de água.
Porque também nunca tivemos tanta capacidade de armazenamento como temos agora...
Tal e qual! Já agora o Algarve, e insisto no Algarve, porque é a zona que mais nos preocupa, estamos na melhor situação de sempre. Nunca tivemos tanta água armazenada no conjunto das 6 albufeiras. Temos 396 hectómetros cúbicos, enfim, são 396 milhões de metros cúbicos, quando o consumo anual é de 110 milhões. Repare bem, eu tenho quase 400 hectómetros cúbicos nas 10 albufeiras, e o consumo anual, quer do ponto de vista do turismo, do ponto de vista do setor urbano e do ponto de vista da agricultura são 110 hectómetros. Portanto, estamos muito bem preparados para enfrentar os próximos 3 anos. E agora o foco - e eu digo sempre isto aos colegas do Algarve - é executar os projetos que vão acrescentar a resiliência à região do Algarve: ligação ao Pomarão, ao Guadiana, tão importante para o sotavento, a central de dessalinização, e apostar numa coisa que é muito importante, que é o tema das perdas de água, quer no setor urbano, quer na agricultura. Está falar de eficiência?
Eficiência. A primeira prioridade é mesmo a eficiência. E depois. uma outra dimensão que é muito relevante do Algarve. Também no país, mas no Algarve em particular, até porque há um player fundamental: os campos de golfe. Trata-se de usar a água das ETAR com tratamento adicional para, no fundo, poupar as águas naturais. Neste momento do Algarve, nós queremos chegar ao final deste ano a reutilizar 2 milhões de metro cúbicos de água das ETAR. Não faz sentido usar a água que nós bebemos para regar campos de golfe, ou para lavar ruas, ou para regar jardins. Não faz sentido nenhum! De facto, é uma grande oportunidade usar a água das ETAR com tratamento adicional para usos não potáveis.
Uma das questões de que se tem falado muito ao nível da gestão das águas no país tem a ver com um recurso que o Alqueva veio potenciar muito, e que é o das alterações das explorações para culturas de regadio. No Algarve há também muitas culturas que exigem muita água. Há necessidade de repensar que tipo de culturas é que temos, até percebendo as limitações de água em algumas regiões?
Isso é um tema muito pertinente. Dizer duas coisas: o Algarve, de ponto de vista económico, é muito dependente do turismo. Então, diversificar a área económica é uma coisa que me parece que é importante para o Algarve. E a agricultura tem aqui um espaço muito relevante. E é importante aquilo que os agricultores têm feito. Vou dar aqui números para se perceber: no caso do perímetro de rega do sotavento, tem uma eficiência de 90%.
O Alqueva tem entre os 92% a 95%. Mas é verdade - temos que referir aqui - há outros perímetros de rega, muitos deles desenhados nos anos 50, cuja preocupação era a energia porque a água não era tema, não era preocupação, e têm perdas acima de 40%. E, portanto, a agricultura está a fazer um caminho, e bem, um caminho de acrescentar eficiência aos perímetros de rega. É o caminho que deve ser mesmo. E esse deve ser sempre a nossa primeira prioridade, e é para continuar o trabalho que temos a fazer. Como disse, no Algarve, o Sotavento está muito bem, do ponto de vista do seu desempenho de eficiência, mas obviamente há sempre possibilidades de melhorar. Do lado do barlavento, há ali perímetros de rega - por exemplo da Bravura – onde é preciso acrescentar eficiênciaque também tem perdas elevadas. Portanto, há um conjunto de projetos que são financiados pelo PRR que vão mesmo acrescentar eficiência a esse perímetro.
E haveria necessidade de criar novos sistemas de armazenamento - novas barragens - ou não, ou o sistema como está, está bem?
Eu quero recordar que Portugal fez - eu fui um dos autores – a “Água que une”, a estratégia que pensa o país até 2040, e uma das medidas previstas é aumentar o armazenamento. Mas, de facto, a primeira prioridade é apostar na eficiência. Não faz sentido meter água num sistema que perde 40% de água. Portanto a primeira prioridade é mesmo apostar na eficiência, quer no setor urbano, quer na agricultura. E o Algarve tem um caminho também a fazer do lado do setor urbano e está a fazê-lo com o bom desempenho dos municípios, com grande articulação com as águas do Algarve. É muito importante o tema da eficiência, e portanto essa será sempre a primeira prioridade. Mas, obviamente, não podemos esconder que é preciso aumentar também em alguns sistemas, a capacidade de armazenamento com novas dimensões. Para lá de aumentar alturas de barragens que existem, se possível, de uma forma mais rápida e mais barata de aumentar o armazenamento, e interligando sistemas. Há duas barragens do lado do sotavento e quatro barragens do lado do barlavento, e neste momento estamos a ampliar a adutora que interliga estes dois sistemas. Muitas vezes, são mais de uma zona do sotavento e são menos de uma zona do barlavento, e eu em interligando sistemas, estou a aumentar a capacidade de gerir bem situações em que há mais água de um lado e menos água do outro lado. É outra das grandes medidas.
Em Portugal, falamos muito de autoestradas, de ferrovias, de aeroportos, de mobilidade urbana, como sejam os investimentos essenciais e aqueles que mobilizam mais recursos. Mas às vezes, esquecemo-nos um bocadinho das vias de circulação da água. Isso que estava a dizer da interligação das barragens do Algarve, pode ser feito a nível nacional com transvases de Norte para Sul, como a Espanha já faz em alguns momentos?
Obviamente, do ponto de vista da APA, vai sempre ouvir-me dizer isto: a primeira prioridade que temos de fazer para nós é apostar na eficiência. Ouvir-me-á sempre dizer isto! E também ouvir-me-á apostar naquilo que é otimizar os sistemas que temos hoje. Será sempre a segunda prioridade. Haverá uma terceira prioridade, muito importante, que é usar a água das ETAR para usos não potáveis. É muito importante! Não faz sentido meter mais água, e não faz sentido usar a água que eu bebo com aquela qualidade para regar jardins, regar campos de golfe... Não faz sentido! E depois, obviamente aqui e acolá, podemos ter que fazer barragens. Está pensado, e há um conjunto de barragens que estão previstas em um conceito, que eu gostava de explicar e até desmistifica, porque há uma notícia que diz vamos fazer 14 novas barragens. Mas, verdadeiramente barragens são duas, e são muito pertinentes porque elas têm fins múltiplos. Além da questão das cheias e, obviamente da reserva estratégica da água. A questão dos transvases é incontornável. Na APA, essas são as prioridades, mas obviamente na APA não há tabus. Podemos estudar tudo, mas será mesmo a última das últimas opções. Até lá, temos de trabalhar nas outras.
Porquê é mais cara?
Porque é mais cara, porque tem custos sociais, ambientais, económicos... Naturalmente, são temas muito complicados. Portanto, até lá, temos de trabalhar nas outras. E depois, se não houver mais nada a fazer, será mesmo a última das últimas soluções.
Onde é que se perde mais água em Portugal?
Nós temos médias nacionais, e sabe que as médias causam problemas. As médias nacionais, do ponto de vista do setor urbano, são de cerca de 21%, com perdas de 178 milhões de metros cúbicos que perdemos nos tubos em mau estado. É muita água! E esta é a média. Mas temos sistemas, que eu conheço, que têm perdas acima de 60% e 70%.
Quando está a falar de sistemas, está a falar de regiões e de autarquias?
Sistemas urbanos. Estes 70%, eu conheço bem, é de Trás-os-Montes. Não vou aqui, por uma questão de simpatia, dizer qual é o município. Enfim, é fácil consultar a aplicação da ERSAR (Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos). E, e facto, diria que esse há um caminho a fazer do lado das perdas.
Onde é que se perde?
Tubos em mau estado. E nós medimos pouco. Para gerir bem, temos que medir. E este país tem que apostar na monitorização. Quero recordar que Espanha, no PRR, tem um conjunto de investimentos muito importante da área da monitorização, na área da digitalização dos sistemas urbanos, e, talvez, dos regadios. É muito importante. E, para gerir bem, tem que se medir. É essa a nota. Na agricultura, temos sistemas muito eficientes: o Alqueva e o perímetro de rega do sotavento, se quiser. Mas temos outros com perdas de mais de - e estou a ser simpático -, mais de 40, 45%.
Mas porque é que se perde?
Canais ineficientes...
Estamos sempre a falar do tema da idade ou há outras razões?
O tema da idade. Quero recordar que grande parte destes perímetros de rega foram feitos nos anos 50, e a preocupação era, obviamente, a energia. Gravíticos, em canais abertos e com muitos anos. Muitos a precisar de investimentos de reabilitação. E agora, temos que os modernizar pensando na eficiência do ponto de vista da gestão de água.
A relação com Espanha é acompanhada diariamente, em termos de volumes dos caudais nos rios que são internacionais?
Para começar, é preciso dizer que Portugal depende de Espanha em matéria de água em mais de 50%. E, portanto, somos um dos países juzantes mais vulneráveis. Temos que perceber que os rios não nascem na fronteira. Nós temos cinco grandes rios que partilhamos com Espanha: o Minho, o Lima, o Douro, o Tejo e o Guadiana. São grandes bacias que partilhamos com Espanha. E, como vale em Portugal mais de 50% de água disponível, é um tema muito sensível. Nós temos uma excelente relação com a Espanha. Nós temos 27 anos do acordo da Convenção de Albufeira, em 1998. São 27 anos!
Obviamente é um documento com uma formalidade jurídica, mas ele é tão importante do ponto de vista daquilo que é um espaço de um diálogo permanente e franco e aberto com as intenções de Espanha. Porque há pessoas de um lado e do outro que aplicam isso. Com três dimensões. Uma dimensão mais técnica, uma dimensão mais da diplomacia, naturalmente, e também uma dimensão mais política. E, portanto, este diálogo franco e aberto é tão importante nas crises. Quando temos água a mais. Este ano, em Março, no Tejo, foi difícil de gerir o Tejo, mas conseguimos, apesar de tudo, e bem. E, obviamente, aquilo que foi a articulação permanente e contínua com a Espanha foi fundamental. E no tema das secas, das crises de falta de água, é fundamental esta boa articulação. Estamos aqui em Lisboa, em plena bacia do Tejo. Há uma captação de água muito importante - a captação de água do Conchoso para as lezírias, que é um perímetro de rega muito importante nesta região – e pode falar com os senhores agricultores: se aquela captação teve água de qualidade no Verão, foi a APA, e a nossa homóloga em Espanha, a Direção General de Água, que se articularam para garantir um caudal de água no Tejo, para empurrar aquilo que é a cunha salina. Quando os caudais do Tejo baixam, a cunha salina progride e contamina a água doce. Esta boa articulação com a Espanha é histórica, e é muito elogiada em vários fora internacionais. Ainda hoje, todos vemos as notícias da guerra que está a acontecer, o conflito entre a Índia e o Paquistão, e um tema que foi muito colocado sobre o tema da água. A Índia cortou a água ao Paquistão! Repare bem, a mesma coisa nos Estados Unidos, entre o México e os Estados Unidos. Em muitos fora internacionais, é elogiada esta boa cooperação entre Espanha e Portugal para a gestão dos rios que partilhamos, e de facto somos um exemplo internacional.
Mas há forma de melhorar isso, ou não há necessidade de mexer em grande coisa?
Há sempre forma de melhorar, e nós temos uma forma de melhorar com duas dimensões. Por um lado, nós temos um conjunto de equipas técnicas, nas áreas dirigidas a temas específicos, como a poluição e a seca. É muito importante ter equipas técnicas especializadas nessas áreas, e também do planeamento dos projetos conjuntos. Estas coisas fazem-se sempre para ganhar confiança da outra parte. E quando temos projetos conjuntos, isso melhora a cooperação e reforça a confiança entre as partes. E é bom isso, acima de tudo para a gestão dos eventos extremos. Na cheia no Douro e também no Tejo, os colegas lá de Espanha, às duas horas da manhã, estavam a telefonar-nos a avisar “vamos enviar muita água por aí abaixo. Preparem-se”. Mostram esta boa cooperação. Temos o canal aberto com a Espanha. Isso é bom para os dois países e é bom, acima de tudo, para a gestão sustentável dos rios. Eu acho que neste país não se valoriza muito aquilo que nós conseguimos neste último ano. O acordo feito em Faro, quer para o Guadiana, quer para o Tejo. Eu digo muitas vezes isto: acabaram os dias de caudal zero no Tejo. Repare, no acordo anterior, Espanha tinha como valor mínimo semanal 7 hectómetros cúbicos, mas podiam enviar essa água em 3 dias, e ficávamos com o resto dos dias a caudal zero. Depois de muitas negociações - aqui a senhora ministra tem um papel fundamental, porque nós a certa altura estávamos quase a desistir - a liderança política foi fundamental, tenho de confessar. A senhora ministra com toda a sua experiência europeia foi fundamental, e a boa articulação com a homóloga da Espanha, conseguimos convencer a Espanha do interesse para aquilo que é a gestão sustentável do Tejo, fixar um caudal diário para evitar dias de caudal zero. Foi um ganho enorme para a gestão do Rio Tejo. E a mesma coisa no Guadiana: se hoje o Algarve tem a autorização para captar água no Pomarão e levar a água para sotavento, foi obviamente incluído neste acordo que acabámos de elaborar em Faro.
As barragens que tem estado a referir várias vezes desde que começámos esta conversa, são um mal menor, um mal maior ou um bem essencial? E estou a pensar no equilíbrio que é a gestão da água, mas também o dos ecossistemas.
As barragens são muito importantes. São uma reserva de água estratégica para diferentes fins, agricultura, setor urbano, para o turismo, para a produção de energia, para a gestão das cheias. Se nós hoje temos capacidade de minimizar o efeito da cheia, é porque temos a barragem. Este ano passámos a vida a esvaziar barragens. É mesmo assim. Apesar de encaixar, temos de libertar água que venha mais. Se a barragem não existisse, nós não tínhamos condições de minimizar o efeito de cheio. E elas têm essas grandes mais-valias. Mas não podemos ignorar que elas também têm um impacto ambiental. Obviamente, estamos a colocar uma barreira àquilo que é a conectividade do rio, tem interferência nos ecossistemas, no transporte de sedimentos. E portanto, temos acima de tudo que, quando vamos projetar uma barragem, de ponderar estas várias dimensões. É uma razão entre o custo e o benefício e têm que ser ponderados.
O que é que é o valor justo de uma fatura média de água para consumo doméstico em Portugal? Existe esse valor?
Obviamente que quem está mais preparado para responder a essa pergunta é a entidade reguladora, é a ERSAR. Sobre a questão da tarifa, é uma questão que a mim preocupa, e eu acho que o país deveria refletir sobre a diferença de tarifas dos vários concelhos, porque é uma competência municipal. Os últimos dados foram lançados por um estudo que eu li. Há muitos anos atrás, eu também fiz um estudo, e há uma grande diferença dos tarifários que são praticados em diferentes municípios, e que muitas vezes podem variar sete vezes. Aquilo que é o esforço por mudar de concelho de uma família média - tipicamente 10 metros cúbicos por mês para uma família composta de 4 pessoas -, o esforço para aceder àquele serviço de água, sanemento e resíduos - quero recordar que a tarifa incorpora estes três serviços - pode multiplicar por sete vezes. Portanto, há aqui um caminho a fazer para harmonizar.
Mas essa diferença é justificável em função do custo de disponibilização da água às famílias? São sete vezes mais, nalguens casos pela mesma água, de um município para o outro!
A tarifa é fixada pelo município, e há opções legítimas, que são tomadas, naturalmente. Mas é um tema que acho que o país deverá pensar no futuro. Harmonizar esse esforço.
Mas isso levaria a um aumento?
Não tem que levar a um aumento. Acho que a primeira questão que devemos colocar não é pensar na tarifa, mas na eficiência. Se eu tenho um serviço, um sistema que perde 60%, a minha primeira aposta não é olhar para a tarifa, é olhar para a eficiência. Na Dinamarca, por exemplo, há um sistema engraçado que penaliza quem é pouco eficiente. É o mesmo que que devemos pensar aqui.
Quem gasta mais, paga mais?
Não! Quem é menos eficiente, que tem um sistema que perde 60% da água, tem um incentivo do ponto de vista daquilo que é uma penalidade para estimular a eficiência. Portanto, acho que há um caminho a fazer, é acrescentar a eficiência aos sistemas.
Aquele sistema das duplas canalizações nos prédios era daquelas coisas que deviam avançar? Tornava as coisas mais eficientes.
Há um exemplo de Portugal, que de facto é conhecido no contexto internacional como milagre Português. E de facto isso é mesmo um milagro. Todos os dias corre nas nossas torneiras água de qualidade. E continua e não falha. Há muito trabalho para que a água chegue lá com qualidade. Eu vou dar três números impressionantes. Nós temos 170 mil quilómetros de condutas enterradas. É impressionante. Dá para ir ao Japão 18 vezes! Isto é que é, no fundo, a quantidade de infraestruturas que nós executamos, em 30 anos, e que nos garante, do ponto de vista da cobertura, em água 96% e em saneamento 89%. E que nos garante também 90% de água de qualidade na torneira. Nós estamos a começar a época balnear deste ano. Neste momento, temos 404 praias com bandeiras azuis. Somos o quinto país no mundo com o maior número de bandeiras azuis nas nossas praias. E um dos critérios é a água de excelência. É o resultado deste trabalho.
É a prova da eficiência das ETAR?
Isso mesmo. No fundo temos feito esse trabalho incrível. A mesma coisa nas praias do interior. Nas praias fluviais, onde é mais difícil garantir a água de excelência, nós somos o segundo país da Europa com o maior número de bandeiras azuis em praias fluviais. No fundo, isto é resultado do trabalho que se faz nesta área da circularidade da água.
O recurso a tecnologias, como é o da transformação de água do mar, salgada, em água de consumo, vai ter um impacto no preço que pagamos pela água?
Essa é uma questão que está a ser ponderada. Como sabe, fomos o primeiro país europeu a construir uma central de dessalinização, usando a tecnologia de osmose inversa que está na ilha do Porto Santo, na Madeira. Uma pequena central, mas que funciona tão bem, e que eu já tive a oportunidade de visitar. E agora, como sabe, está em concurso público financiada no PRR, e que agora vai passar para o Portugal 2030, que será localizado em Albufeira, para a gestão do Algarve. São 16 hectómetros cúbicos, que ela pode aumentar a 24 hectómetros cúbicos, e que é tão importante para dar uma espécie de seguro para a região do Algarve, até percebendo aquilo que a região vai enfrentar nos próximos anos, que é o tema da seca. É um tema que terá que ser refletido, e que está a ser ponderado na região. Obviamente que há um custo acrescido, e é preciso ponderar como refletir nos diferentes utilizadores.
Vou voltar às barragens, para falar daquilo que estávamos a falar há pouco, que tem a ver com o forte investimento que, de facto, permite controlar caudais, mas ao mesmo tempo está a ser feito porque também permite produzir eletricidade. É um duplo uso que pode ser conflituante em algumas situações, e nesse sentido, como é que isso é gerido?
Nós temos que olhar para todas as albufeiras numa lógica de fins múltiplos, percebendo que como primeira prioridade - isto está muito claro na Lei da água – a primeira prioridade é o uso urbano, é para as pessoas. Será sempre a primeira prioridade. Depois, estão identificados as diferentes prioridades. Nós temos que visitar muitos contratos que foram assinados no passado, de muitas albufeiras tinham como finalidade a produção de eletricidade e dar-lhe, no fundo, esta nova visão, e aquilo que é assegurar os diferentes fins múltiplos, para o uso urbano, para a agricultura, ou para o turismo. É importante para o turismo, também, harmonizar estas diferentes utilizações.
A empresa gestora da barragem pode definir essa prioridade ou essa prioridade é definida pela entidade pública que tem a tutela?
Essa prioridade está na Lei da água, e é um elemento da competência da autoridade nacional de água, que é a Agência Portuguesa de Ambiente. É mesmo a nossa competência.
Escreveu nos últimos dias que a água salvou-nos, outra vez, quando, a propósito do apagão que aconteceu em Portugal e também em Espanha, falava do papel desempenhado pela albufeira de Castelo de Bode e da unidade hidroelétrica que lá está instalada. Uma unidade que, ficamos agora a saber, é essencial na restauração da energia em Portugal, numa situação de apagão. Para produzir energia, a barragem de Castelo de Bode, que abastece cerca de um quarto - mais coisa menos coisa - da população portuguesa, uma vez que abastece a grande Lisboa e os arredores, teve de libertar água. Naqueles números que estava a falar há pouco, até que ponto é que as reservas ficam afetadas se tivermos necessidade de produzir energia através daquela barragem?
Isto é tudo equilibrado. Quero recordar que Castelo de Bode teve um apelo fundamental naquilo que foi o restabelecimento da energia. Ela tem um sistema black start, muito importante. Eu quero recordar que a primeira região de energia foi Abrantes, mesmo ali ao lado. Mas depois, as outras albufeiras também começaram a produzir energia, não foi só Castelo de Bode. Eu quero recordar que Castelo de Bode está com 97%, e a barragem de montante, que é Cabril, tem muita água, está com 97%. Estamos com as albufeiras cheias, e vem mais chuva aí. Obviamente, temos sempre que olhar para isso, porque há sempre uma prioridade muito importante que é o uso urbano, e Castelo de Bode tem uma prioridade fundamental, porque é a grande origem de água para a região de Lisboa. Isso será sempre tido em consideração. Mas quero dar uma outra nota muito importante. Eu disse que a água salvou-nos, e é a mesma verdade. Eu quero recordar que às 10 horas da noite de dia 28 de abril - eu tenho um gráfico da REN que explica muito bem isso - a grande origem de energia na recuperação do sistema elétrico nacional foi hídrica em 80%. Portanto, as barragens desempenharam aquele papel fundamental, e a partir daqui, eu creio que temos que refletir, e reforçar o papel das barragens e dos sistemas de bombagem, na sua capacidade de armazenar energia. É mesmo muito, muito importante. E é um sistema que é estável, e ainda por cima é endógeno. É nosso! Nós não temos gás, nem temos carvão, mas temos água.
Ainda a propósito do tema dos conflitos de interesse que possam existir aqui, no caso da eletricidade, a REN ou a E-Redes são empresas que são geridas por capitais estrangeiros. No caso dos sistemas de gestão da água, isso é mais raro acontecer, embora as unidades hidroelétricas de muitas barragens, tenham gestão de empresas que não são portuguesas. Há aqui um risco de soberania, no caso da gestão da água, nas empresas que gerem sistemas ou subsistemas?
A água é um bem que é público, é de todos nós. Somos nós, a Agência Portuguesa do Ambiente, a autoridade nacional da água. É uma competência que é nossa, e o bem é sempre público. Há regras, há contatos com as concessões e as regras estão definidas. E obviamente a primeira prioridade é sempre aquilo que é o uso urbano, e portanto a lei protege claramente aquilo que é um bem, que é tão importante, que é a água.