Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Quando finalmente, para o fim da sessão, descobri a página daquela influencer no Facebook, vi uma pessoa muito diferente da vítima humilde e surpreendida que estava no banco dos réus. Entrei ontem na sala onde Rita se queixava de dissabores familiares, das grandes dificuldades que tinha ultrapassado e as que ainda enfrentava, a dizer que ganhava a vida a ensinar "o que é a liberdade de expressão", e a diferença entre Instagram e Facebook, sendo este "mais intimista, mais leve, mais descontraído". Tentava explicar isto com simplicidade, ela que era cultora da expressão da “feminilidade” e porque, sinceramente, não percebia porque é que tinha sido acusada pelo Ministério Público dos crimes de “discriminação e incitamento ao ódio”, ela que trabalha a bem dos seus seguidores ensinando Direitos e questões jurídicas na Internet. Mas de súbito subia-lhe à voz uma nota azeda e, aos olhos, a mirada sarcástica e superior que encontrei a seguir na página do Facebook, com a mesma senhora em fato de banho a mostrar as pernas e o rabo de cavalo, ou em fatinho de executiva a avançar para nós em passerelle, ou em figurino e pose Ferrero Rocher, dentro de um carro, a dizer parvoíces contra a vacina Covid, a postar vídeos patrioteiros anti-emigração e anti (para simplificar) direitos LGBT, com uma violência verbal e um prazer evidentes em fazer mal e em espalhar desinformação.
Em causa, uma publicação de Novembro de 2022, quando se discutia o acesso, nas escolas públicas portuguesas, a casas de banho neutras, de maneira que Rita dera a sua opinião, como várias vezes repetiu, “ao abrigo da liberdade de expressão”. Por exemplo, sobre pessoas trans, ela sinceramente apenas colocara o ashtag “doença mental” porque, como em muitos casos, por exemplo, a depressão, etc., há sofrimento da pessoa, portanto era apenas a pensar no sofrimento dos transsexuais, que ela não é médica. E os ashtags eram um “chapéu” simplificador, sem qualquer conotação negativa, que apenas dirigia as pessoas para o Instragam, onde está o seu trabalho de influencer.
Como vêem, estou também a simplificar para que se entenda uma longa conversa de duas horas em tribunal, mas vamos ao que ela efectivamente escreveu no post. Foi a procuradora que leu a cristalina terceira frase de Rita:
— "Podem mutilar-se, fantasiar-se, falar esganiçadamente, injectar-se com substâncias medicamentosas, podem fazer o diabo a sete e nunca terão o privilégio e o ORGULHO (em letras maiúsculas), de serem mulheres!"
Rita tinha a resposta preparada, mas era uma em que, na minha opinião, claramente não acreditava:
— Terão o privilégio e o orgulho de serem mulheres transgénero... Isto é uma declaração ao abrigo da minha liberdade de expressão.
A queixa foi apresentada por uma organização de defesa dos direitos humanos que acompanha os discursos de ódio e foi André, o seu fundador, homem de barba, que por vídeo-conferência falou — lá está, é curiosa coincidência, mas neste caso era verdadeiro — do sofrimento que a publicação de Rita tinha provocado em muitas pessoas “ao denegrir o nome das mulheres”, dos homens trans, como ele, e das mulheres trans, negando-lhes o direito constitucional de autodeterminação, e de todas as “mulheres cisgénero que não podem ter filhos”, a maldade de sugerir que eles andavam a manipular criancinhas para mudarem de sexo, pois também isso estava nas publicações de Rita.
Atalhando o caso: vendo o que havia para trás e o que aconteceu para a frente, uma inspectora da Polícia Judiciária, que irá ainda depôr em tribunal, conclui haver discriminação e incitamento ao ódio. O mesmo concluiu o Ministério Público. E para que se veja de onde vem isto, e ao que chegámos, uma das testemunhas abonatórias era um senhor de idade, vestido como um cavalheiro, que conhecia Rita desde criança, a qual definiu como patriota, “da igreja apostólica romana”, “frontal”, “educada numa família tradicional”. Segundo este senhor, isto era uma perda de tempo que nem percebia, um “julgamento político” ditado “pela esquerda”, de forma que a procuradora teve de lhe explicar que o que estava em causa era a defesa dos valores da constituição e da República. O homem só se calou quando a sua mulher lhe começou a sibilar nas costas que se calasse:
— Chega, cala-te, chega!
Em 2025 faz 35 anos que escrevi a primeira crónica Levante-se o Réu. Creio que, entre milhares de casos que vos contei, alguns deles muito desagradáveis, nunca passei por esta situação de me apetecer dizer tal coisa: senhora influencer, vá-se tratar!
#doençamental; #víbora; #quegentinha.
Atenção, isto é só a minha opinião, ao abrigo da liberdade de expressão.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
