Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Não lhe via a cara, só a nuca do homem que ontem, perto da hora do almoço, ouvia as alegações no tribunal. Eu estava curioso: este homem batia na mãe à frente do neto, isto é, do seu próprio filho, pegava numa faca e ameaçava a mãe de que cortaria os pulsos se ela não lhe desse dinheiro. O percurso do homem, já preso por vários crimes de roubo e de violência, oscilava entre o risível e o repelente. Por exemplo, dizia que tinha trabalhado anos e anos, só interrompendo durante mês e meio, quando afinal nunca trabalhara nada a não ser, precisamente, mês e meio na empresa “Aventuras Pitorescas”. Por exemplo, um dia foi ao Banco Alimentar contra a Fome, para alimentar o filho pequeno e a mãe, saiu de lá com dez latas de atum e logo foi trocar cinco das latas de atum por cocaína. O procurador leu os factos provados, levantou a cabeça e disse:
“Dúvidas não nos restam que o arguido praticou o crime de violência doméstica agravada no domicílio comum, na pessoa da sua mãe. Quanto à violência sobre o filho, o menor confirma alguns dos factos relativamente à avó, lembro-me de um ditado popular, e de uma expressão de... não me lembro agora de quem... relativamente à questão da violência doméstica quando praticada sistematicamente na presença de menores de tenra idade, que era o caso, 7 ou 8 anos de idade tinha o filho do arguido, e é óbvio, até pelas declarações do menor, que são traumatizantes. E não são só traumatizados, como podem de tal forma estigmatizar o menor que — esperemos que não! — um dia o menor venha a poder praticar factos semelhantes em relações que venha a ter no futuro. Aliás, se calhar é a situação que aqui temos, o próprio arguido admitiu que a sua mãe foi vítima de violência doméstica durante alguns anos. Vejamos o que o arguido presenciava e vejamos o que é que temos aqui hoje. Das duas expressões de que me lembrei, uma é o provérbio português
— “Filho és, pai serás, conforme o fizeres assim acharás”
que aqui tem, parece-nos, plena aplicação, e esperamos que não tenha no futuro consequências no desenvolvimento do menor. E uma outra expressão, não sei agora de quem é o autor, mas é uma expressão que ouvi, e que é:
— A mão que embala o berço governa o mundo.
[Bem, senhor procurador da República, trato eu dessa parte, sentado à mesa em que escrevo, o sol de um novo dia a bater-me nos olhos, teclo a frase — para isso serve a Internet — e vejo que a disse Abraham Lincoln, o grande presidente norte-americano do século XIX, citando o poeta William Ross Wallace, o que desgraçadamente nos lembra a mão cruel do presidente que começou agora mesmo, século XXI, a atacar a liberdade e a razão nos Estados Unidos. Tem a palavra de novo o senhor procurador:]
“A mão que embala o berço governa o mundo. Ou seja, aquilo que nós recebemos na nossa infância profunda até ao início da nossa juventude é aquilo que vai delinear de forma indelével a nossa personalidade, os nossos comportamentos futuros. E se estes eram os comportamentos a que o menor assistia, parece-nos que se tem de considerar que uma criança de tão tenra idade — o menor não tinha 17, nem 16, nem 15 anos, tinha 7-8 quanto teve de presenciar estes comportamentos do seu pai para a sua avó, ver as agressões, e obviamente que o traumatizaram e o punham infeliz.”
O procurador pediu um mínimo de dois anos e meio de prisão efectiva. A advogada de defesa solicitou que o homem entrasse num programa vigiado de tratamento da toxicodependência.
Numa última palavra ao tribunal, antes da sentença, o homem pediu desculpas, mas afinal não eram desculpas, nem assim admitiu que batera na mãe, só que lhe agarrou o braço e a juíza interrompeu-o:
— Já percebi tudo, isso não é pedir desculpa.
A mãe dele soluçava a duas cadeiras de mim. Depois, enquanto era algemado para voltar para a prisão, o homem pediu à mãe:
— Dá cá um beijinho, vá, dá cá um beijinho.
A mãe olhou-o devagar, mas foi ter com ele, que já tinha as mãos presas atrás das costas, e deram um beijinho rápido, lábio com lábio, e a mãe voltou para trás, destroçada, e então reparei nos belos olhos do homem, enormes, brilhantes, vidrados, olhos de berlinde abafador.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
