Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Nestes dias funestos, cercados por mais uma morte mal explicada de um homem, Odair Moniz, às mãos da polícia, de inadmissíveis queimaduras num motorista de autocarro, de ferro e fogo e pedras nos bairros da periferia de Lisboa, de indignações e revoltas mútuas e, claro, da mediática estrebaria chunga da extrema-direita parlamentar, lembrei-me de um terror das minhas juvenis leituras góticas: ser emparedado. Isto é, fecharem-nos vivos dentro de muros, das paredes de uma casa, até morrermos, ideia que o escritor Edgar Allan Poe desenvolveu várias vezes nos seus contos. Por exemplo, em O Gato Preto, há um gato meio fantasma que, emparedado inadvertidamente pelo assassino ao lado do cadáver da sua mulher, revela à polícia o crime, começando a miar dentro das paredes. Por exemplo, em O Barril de Amontillado, um homem confessa-nos como, décadas antes, levou para a cave outro homem que, estando bêbedo, foi convencido pelo seu falso amigo a ir provar um barril de xerês. Aí, é acorrentado e é informado pelo outro do que lhe vai acontecer, e em pânico por lá fica, emparedado até hoje.
Um das coisas que mais impressiona no conto é que o autor do crime nunca revela ao outro a razão concreta, a não ser um vago insulto que o outro lhe terá feito e que nunca perdoou, e também nós não ficamos a saber.
Parece que agora estamos assim, a tentar perceber sem as devidas explicações o que está a acontecer a Portugal.
Mas acontece que eu há dias assisti no tribunal a um caso que faz pensar em que pé, em que muro andamos agora. Estava no banco dos réus uma mulher cabisbaixa, acusada de ter invadido ilegalmente um espaço que não lhe pertencia, mais o companheiro. Foi no Bairro Padre Cruz, uma das zonas de habitação camarária, ou municipal, que vive agora mesmo distúrbios violentos.
Estava uma mulher-polícia a responder à procuradora:
— Senhora agente, disse que aquela zona do Bairro Padre Cruz é de moradias que estão para demolição e que portanto as casas estarão devolutas. Não vive lá ninguém, é isso?
— Exacto. Há muito tempo.
— É uma zona pela qual a sua esquadra passa patrulha?
— Sim.
— Porque sabem da existência deste património que não está atribuído a ninguém e, portanto, para aferir de eventuais intrusões, é isso?
— Por uma série de situações, mas essa também.
— Tem ideia de uma patrulha ter passado pelo local e ter visto uma moradia, aquele fogo, protegido, e quando digo protegido digo emparedado e com a porta encerrada?
— A janela, sim. As pessoas entraram pela janela e saíram pela janela.
Uma intrusão. Um buraco nos tijolos. Depois entrou um coordenador de fiscalização residencial da Gebalis, a empresa que gere os bairros municipais. Explicou como é que se fecha uma moradia:
— Normalmente é com portas que lá estão no local, porque esta habitação estava emparedada e tive que arranjar uma forma adequada para fechar a habitação. Aquela zona do bairro vai ser demolida e a regra da empresa é serem emparedadas.
— Janelas e portas?
— Exactamente.
À tarde, os técnicos foram reemparedar a casa. Mas o casal voltou à noite, entrando na casa pela segunda vez e assim foram apanhados pela polícia. Emparedados vivos de livre vontade,
porque para eles era ao menos, temporiamente, uma casa para viver em Lisboa.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
