Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Os tempos estão aptos a retirarmos metáforas políticas das coisas que acontecem. Desta vez não, acho que não, vamos lá ver.
O ferimento aconteceu no último dia do ano de há três anos e, segundo o médico-cirurgião de S. José, foi na perna direita, “com porta de entrada e sem porta de saída”. Um homem tinha entrado com uma bala na barriga da perna. O atirador desapareceu, foram-no buscar a casa. Carlos, jardineiro cabo-verdiano há trinta anos em Portugal, estava agora de pé, diante do juiz, com as mãos ao correr do corpo, como se o Sol lhe batesse nos olhos.
— Quero falar. Nesse dia era fim do ano. Estive num convívio com a minha família. Saí um pouco e estava a voltar a casa...
(Agora terá talvez que explicar que tinha saído, na maior alegria, com uma pistola no bolso, senhor Carlos.)
— Mas eu quando tirei a arma era para disparar ao alto, nem me apercebi. Depois ouvi uma senhora gritar: “O meu marido, o
senhor já feriu o meu marido!” E como já tinha feito muito barulho, fui-me para casa. Eu até fiquei admirado, fiquei espantoso por ter ferido o homem. Eu não estava a fazer mal a ninguém. Não foi de propósito.
— Alguma vez falou com este senhor a quem deu um tiro?
— Fui falar com o filho, que foi falar com o pai. Para pedir desculpa, foi sem querer.
— Mas ficou arrependido?
— Fiquei arrependido porque tinha comprado a arma há pouco tempo. Foi quase na ocasião da passagem do ano. Onde eu moro, um dia voltei e tinham arrancado a minha porta, que estava presa com 40 pregos. A seguir fui outra vez assaltado em casa. Depois, partiram-me o carro.
— E foi por isso que comprou uma pistola?
— Foi a curiosidade. Apareceu o senhor ali no Campo Grande e comprei a pistola por 250 euros.
— O senhor diz que queria disparar para cima, mas atingiu a perna do senhor.
— A bala apanhou-o, foi um “incidente”, não estava à espera de acertar no senhor.
— Mas ele não estava nem no cimo de prédio, nem em terraço, estava na rua encostado ao carro, por isso é que é estranho.
A não ser que lembremos que o senhor Carlos não carregou só a arma, carregou-se a si mesmo:
— Bebi uns copos de vinho, misturei aguardente, whisky. Foi com intenção de disparar para cima, fazer barulho!
Então chamaram a vítima, um taxista alto, forte, que balançava a metade do corpo como se enxertado da anca de John Wayne. Isto passou-se na Charneca, nome de western.
— Então o que é que sabe sobre isto?, perguntou o juiz.
— Eu sei que levei um tiro, disse o homem.
— Onde é que o senhor estava?
— Estava perto do sítio onde vivia. Estava encostado a um carro e levei um tiro. Já lá não estou há dois anos, este senhor não vivia no meu quarteirão.
— Quem mais estava consigo?
— Estava lá a minha ex-mulher e levei um tiro.
— Na perna.
— Aqui, quer ver?
E o homem levantou a bainha direita dos jeans vaqueiros e mostrou a porta de entrada rosada do tiro que não teve porta de saída. Foi pelo mesmo buraco que saiu a bala, na cirurgia do hospital de S. José. O juiz tentou, pela última vez, perceber se havia um passado, se havia dilema, se havia duelo ao pôr-do-ano.
— Não tinha nenhuma questão com este senhor?
— Não. Não o conhecia nem o quero conhecer.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
