Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Escutando pelo telefone a minha voz de gripe e as minhas dificuldades em sair de casa, neste deprimente Janeiro, para ir pescar uma história fresca aos tribunais, o amigo Edgar sugeriu-me que, em vez de Levante-se o Réu, escrevesse esta semana a crónica Deite-se o Enfermo. O caso, acrescentou ele, podia ser assim apresentado: “Eu não estou bem e o mundo também não se recomenda”, frase que logo me fez lembrar o saudoso Torcato, que avançava pela redacção, num passo ironicamente revolucionário, cabelo e barba entre Nietzsche e Bakunine, explicando aos mais novos: “Deus morreu, Marx está em crise e também eu não me sinto lá muito bem.”
Tenho-me estendido a acompanhar as deprimentes notícias dos Estados Unidos da América, acelerando a agenda conservadora, reaccionária e cruel de Donald Trump como se não houvesse amanhã. Ou melhor, como se houvesse amanhã, tendo em conta que já roeu os Acordos de Paris e relançou o mundo na febre do petróleo e das catástrofes climáticas, contra toda a ciência e o bom-senso. Este monstro neste “tempo dos monstros”, como dizia Antonio Gramsci, seres que surgem entre um mundo que ainda não acabou e outro que ainda não se implantou, como será o próximo da Inteligência Artificial, este monstro Trump levanta questões jurídicas que são, por assim dizer, cristalinamente obscuras. Primeiro, prova que a Constituição dos Estados Unidos da América, supostamente democrática para sempre, é afinal um documento esburacado que permite o aparecimento de um imperador sem escrúpulos e com poderes impensáveis. A ordem executiva de Trump a perdoar e a chamar heróis e “pessoas adoráveis” aos facínoras que atacaram o Capitólio a 6 de Janeiro de 2021, esmagando o poder dos tribunais legítimos, é Trump a perdoar-se a si próprio do crime de os ter levado ao ataque. É como Napoleão Bonaparte a coroar-se a si mesmo imperador, em 1804, traindo os princípios que jurara cumprir. Por isso mesmo, avisou antes Napoleão: “A partir deste momento, já não há Constituição”, e logo começou a governar por decretos.
Também me lembra o ovo gigante e vaidoso de Alice no País das Maravilhas, Humpty Dumpty, sentado em cima de um muro (vai cair, isso vai), a usar a palavra “glória” de forma errada: “quando eu uso uma palavra, esta significa o que eu quero que signifique, nem mais em menos.” “A questão é, disse Alice, se podemos pôr as palavras a significar tantas coisas diferentes. A questão é, disse Humpty Dumpty, quem é que manda, e é tudo.”
Vi agora que o deputado do Chega Miguel Arruda continua a abrir os telejornais, mostrando que, por uma vez, a posição de destaque dada na nossa imprensa ao partido de André Ventura cumpre critérios jornalísticos válidos. Com esta vantagem: basta-nos, ou chega-nos lembrar que os deputados dessa agremiação têm todos, sem excepção, escrito “vigarista” na testa a letras de latão. Pois se usam a mentira descarada nas suas mensagens e internet, porque não roubar malas nos aeroportos, retirar as cuecas e vendê-las na internet?
A propósito, a primeira ou segunda crónica Levante-se o Réu que escrevi, faz este Março 35 anos, chamava-se precisamente O Ladrão de Cuecas. Alguns pensariam que era tema demasiado pequeno para assunto num jornal, ou rádio, mas a riqueza do mundo é mesmo esta: alguém que rouba cuecas tem decerto uma bela história para nos contar, triste e cómica.
O homem de há 35 anos consumia heroína, este senhor Arruda, pelos vistos, viciou-se em ódio, mentiras e roubo, o senhor deputado do Chega, agora não inscrito. Espero assistir ao seu julgamento, assim tenha saúde.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
