Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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— O senhor conhece a acusação?
— Eu sei o que fiz, disse o homem.
É tão raro isto, um acusado admitir à primeira, e conscientemente, a culpa do que dizem que ele fez, que ou vinha aí um caso aborrecido ou interessante novidade. O homem chamava-se Tiago e nasceu em S. Sebastião da Pedreira, isto é, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, como tantos e tantos milhares de cidadãos neste e no outro século, não era por aí a novidade.
A juíza, no entanto, resolveu recordar-lhe que é que estava em causa. Há dois anos, o senhor Tiago foi contactado pelo vendedor de uma empresa de TV Cabo, das várias que existem no mercado, para fazer uma assinatura. Só que, no final, Tiago e o vendedor assinaram o contrato usando o nome e a morada de outra pessoa que não tinha nada a ver com o caso. Foi assim que Tiago passou a ter TV cabo em casa, porque os dois combinaram usar fraudulentamente o nome e a falsa assinatura de um terceiro cidadão, dizia a juíza...
— Combinaram, não! Ele é que deu a ideia!
— Explique lá isso.
— Eu disse-lhe que não podia porque tinha dívidas já atrasadas. Eu deixara de pagar porque não tinha dinheiro e devia alguns meses à companhia. Mas ele disse-me que tinha uma maneira de resolver a coisa.
Tiago parou por um segundo, óptimo timing dramático.
— Passados dois dias, ele vai a minha casa e monta-me a instalação. Já lá estava a minha irmã, eu não estava. Ele disse que tinha tudo arranjado. O que eu sei é que fiquei com telecomunicações em casa. No prazo de três meses teria de pagar duas facturas.
— Então o senhor teria de pagar as facturas em nome de outro?
— E paguei as três primeiras!
— Não assinou contrato?
— Eu dei-lhe o meu BI e o da minha irmã. Passados dois dias, eu tinha telecomunicações em casa.
— Então o senhor aceitou!, disse a juíza mais alto.
Tiago ficou então mais enevoado. Afinal, não sabia bem o que fez, ou sabia? Por exemplo, agora, no tribunal, já não se recordava se tinha os papéis guardados em casa, nem sequer se lembrava se o contrato era com a NOS se com a MEO, achava que era com a MEO, ou com a NOS, certezas não tinha.
— O contrato devia ser em nome do outro senhor que ali está fora, o Diogo, suspirou finalmente Tiago.
— Então o senhor recebe serviços em casa, vê que estão em nome de outra pessoa e aceita?
— Mas não fui eu a fazer o contrato, eles é que montaram a instalação!
Pagou três facturas, depois deixou de pagar porque ficou desempregado, a companhia deu-lhe mais dois meses e cortou. E assim se começa a deslindar um pequeno crime à portuguesa, com cabos de fibra óptica, praticado a seis mãos: o vendedor, que queria a todo o custo instalar a TV onde não podia, porque ganhava comissão por cada contrato, o senhor Tiago a quem caiu do céu o sistema, eu disse seis mãos, mas baixo para quatro, retiro as duas mãos do pobre Diogo que um dia perdeu a carteira e de repente começa a receber em sua casa cartas ameaçadoras a pedirem-lhe dinheiro de um serviço que desconhecia.
E o motivo final de Tiago era este: crianças.
— Como estava necessitado, aceitei. Tinha sobrinhos em casa a pedir-me televisão e eu não tinha.
— Não pensou nos problemas que colocava a este senhor?
— Sim, pensei nisso.
— E a sua consciência?, perguntou a procuradora.
— Mas o que é que eu ia fazer: ia telefonar à NOS a dizer “Olhem, afinal fiz isto”?!
A consciência quando pesa é mais bonita. Quanto ao vendedor, nem apareceu no tribunal, andará a vender.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
