Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Um homem deve ter objectivos na vida. Mas alterar a noção universal do Tempo exige paciência, não é coisa que se imponha numa única noite inspirada. Se um homem chega à estação de comboios do Rossio e anuncia
— O dia tem 32 horas, ou mais!
Deverá preparar-se para as dúvidas, a desconfiança científica e mesmo para alguns que gostariam de o ver com a boca tapada com um molho de algodão, porque o dia tem 24 horas, é o que se ensina há milhares de anos. Einstein patenteou as suas ideias sobre a relatividade do tempo. Joaquim só relativamente as conseguiu explicar, por falta de tempo.
— …quando me encontrava de serviço à referida estação, verifiquei que um indivíduo alterava o horário do comboio que estava parado na linha 8…
O relatório da polícia, escrito desde o início neste tom oficial, entra depressa na matéria revolucionária da proposta de Joaquim.
— … alterava o horário de partida das 23h30 para as 32h30.
O polícia aproximou-se do indivíduo, misturando na cabeça noções básicas de ciências naturais, de sabedoria popular, e a desconfiança inata da profissão que escolheu.
— O senhor é empregado da CP?
— Não me chateies, não recebo ordens tuas!
Foi arrogância ou o polícia vinha destruir a experiência? Ainda houve tempo para um funcionário chegar e repor o horário certo das partidas, descansando os passageiros no cais de embarque. Mas Joaquim “de imediato voltou a alterar o horário” e o tempo daqueles homens entrou numa espiral, foi tudo sugado como a luz no buraco negro. Joaquim nunca se lembrará de nada.
No tribunal, esteve quase a chorar. Na noite em que mudou o horário dos comboios para uma hora impossível atravessava uma violenta crise alcoólica. A sua antiga profissão extinguira-se. Bebia todos os dias e noites. Andava, deste modo, no ritmo do tempo que ele próprio criava: ainda agora eram dez da manhã e de repente era noite, ou era noite e as pessoas à sua volta começavam, sem aviso, a almoçar. Joaquim admitiu tudo, hoje é professor num instituto e a o seu alcoolismo está dominado. Agora ele não morde polícias como um cão morde carteiros. Disse o guarda:
— …tive de lhe pegar num braço para o pôr fora dali, o qual com um gesto repentino mordeu-me no braço esquerdo e quando me tentava libertar dele torci o dedo da mão direita, pelo que tive que receber tratamento no hospital de S. José.
Uma longa baixa de 60 dias. Descobriu-se que o polícia fracturou mesmo o polegar direito e sem polegar não se pega numa arma. Não se pode policiar a rua com “fractura da segunda falange do dedo polegar da mão direita”. Na sentença, o tribunal usou um termo elegante, largo, para a dentada de Joaquim: amplexo. Provou-se que mordeu deliberadamente para magoar mas
— … não se provou que o arguido tivesse torcido o dedo polegar da mão direita do ofendido, mas sim que tal aconteceu quando este procurou desenvencilhar-se do amplexo do arguido.
Uma dentada é um amplexo. Joaquim acabou o curso depois destes factos calamitosos.
— Estou muito arrependido. Mas não me lembro, disse ele, com a cara muito magra.
Disse-o como se soubesse que a chegar aos 40 anos, sozinho num apartamento, sabe de outro Joaquim que ainda quer andar pelas estações. A fazer partir comboios a horas que não existem.
PS: Boas férias a todos, de comboio, carro, avião, mota, bicicleta, a pé e a nado! Levante-se o Réu regressa em Setembro.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.
