Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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A senhora tinha rabo de cavalo e segurava um papel na mão, que ia lendo mais uma vez. A funcionária disse-lhe:
— Pode arrumar a cartinha, não precisa de estar com a cartinha na mão.
Mas a senhora manteve a cartinha na mão. Chamava-se Cátia e estava ali por causa de uma bicicleta velha. Alguém pusera à venda a bicicleta, um homem transferiu 100 euros para uma conta, o dinheiro foi levantado, mas a bicicleta nunca chegou ao destino. A conta era de Cátia, agora acusada de crime contra o património, receptação.
— O que é que eu vou dizer?, explicou Cátia à juíza, eu não sei de nada, eu nem sei mexer nisso. O meu telefone é de teclas. Se eu recebi na minha conta, eu não sei. Só abri esta conta para frequentar um curso, era um curso de pastelaria.
Um curso obrigatório do programa de reinserção social, para poder receber o rendimento mínimo. Cátia tem sete filhos e cinco netos.
— Então quem é que levantou o dinheiro?
— Eu não levantei nada, sotôra.
— Quem é que tinha acesso ao seu cartão?
— Ninguém tinha acesso ao meu cartão. O meu cartão foi muito pouco usado. Era só quando eu tinha os cursos.
Esse cartão, continuou Cátia, foi perdido ou alguém o roubou depois do curso terminar, em Junho.
— Só que estes pagamentos que aqui estão, disse a juíza, saem todos antes da data em que diz ter perdido o cartão. E os valores do curso, nenhum está aqui...
— Sotôra, se foi levantado eu não sei.
— O que estou a dizer é que não faz sentido o que está a dizer porque aqui não está o registo dessas verbas do curso. A única coisa que tenho aqui são transferências MB Way.
Suspiro pesado no banco dos réus. Cátia perdia a paciência, não tinha já explicado o suficiente, que o seu telefone é de teclas? Ela, se de cartões não sabe, de internet também não percebe nada, o endereço electrónico que tem é o da cunhada, quando vai receber o rendimento mínimo é sempre ao balcão do banco, jamais no multibanco, e nunca passou os seus dados a ninguém lá em casa, aos sete filhos, às noras, aos cinco netos, a ninguém. O único dinheiro que recebeu do curso foi ao balcão e com ele, disse, “comprei comer para dar às crianças que tenho em casa.” Portanto, não lhe competia a si explicar o mistério dos 100 euros de uma bicicleta velha, comprada por um desgraçado que nunca a recebeu. A prova compete a quem, não será ao tribunal? Não era decerto a Cátia, que agora falava mais alto, já sem a cartinha na mão:
— Sôtora, há provas contra mim?! Há câmaras para ir ver?! Se foi levantado da minha conta, eu não fui. Há câmaras a filmar? Eu não levantei.
O caso fica pendurado enquanto não se encontrar o senhor lesado, que desapareceu no éter das moradas trocadas. Quando chamarem Cátia de novo, atenção, ela pode estar na apanha da fruta em Espanha. Fui atrás de Cátia, naquela disposição mista de confiança ingénua e de suspeita. Ela ia entrar no elevador.
— Alguém enganou a senhora.
— E bem enganada!
E desceu pelo elevador. Outra pessoa que assistiu ao julgamento se aproximava no átrio.
— Acha que esta senhora pode ter sido enganada?
— Não, infelizmente.
— Isto envolve outras pessoas, suspirei eu.
— Já são esquemas muito elaborados.
E então desci eu no elevador. Caramba, que mundos virão com a inteligência artificial, depois de fraudes no MB Way que já levam a tribunal agregados familiares inteiros?
E por aí anda, ou não anda, uma bicicleta velha a enferrujar.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
