Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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“Já viveste muitos anos, podes trabalhar só com a memória.” Gosto desta frase, mas também me assusta, parece que cada vez estou mais perto dela, já passei muita estação e apeadeiro. Alguém a diz no romance A Escavação, de Andrei Platonov, um excelente “escritor soviético” que, como era normal, seria perseguido, destruído profissionalmente pelo regime soviético, morrendo tuberculoso e na miséria. Platonov é também autor do conto O Mundo Belo e Feroz, a história de um maquinista de comboios que chegava sempre a horas e estimava o material da locomotiva, sabendo exactamente como avançar por subidas, curvas e descidas. Até ao dia em que enfrenta uma tempestade com relâmpagos, pó, chuva e, finalmente, um raio e explosão eléctrica que o cegou. Mas ele continuou a conduzir velozmente a máquina quase até ao desastre, o maquinista continuava a ver a linha do comboio na sua imaginação, tal era o conhecimento dos carris. O maquinista cegara com a onda electromagnética imediatamente antes do raio, só que seria condenado em tribunal, ninguém acreditou nisto ou, se acreditaram, não quiseram saber.
Ontem, 11 de Setembro, data mundial do atentado das Torres Gémeas, passaram 40 anos da grande tragédia portuguesa de Alcafache. Por erro humano, um comboio internacional de ligação à Europa e um regional chocaram de frente no distrito de Viseu, matando cerca de 200 pessoas, grande parte emigrantes de regresso a França. Nunca se saberá ao certo quantos porque de muitos corpos não sobraram nem as cinzas. Lembro-me dessa noite de calor, estava uma multidão no Rossio de Portalegre quando começaram a chegar em farrapos as notícias do horror.
Ontem, uma reportagem no Público de Carlos Cipriano, jornalista que sabe tudo de comboios, recordou-me os minutos fatais e as sequelas físicas, emocionais, jurídicas e burocráticas, como este relatório da CP: “Dada a clareza exigida para os telefonemas regulamentares resultou logo, de forma bem evidente, que na mesma comunicação telefónica havida entre os dois chefes de estação, essa clareza não se terá verificado, e assim a estação de Alcafache teria tomado indevidamente como concessão de avanço ao comboio 1324 apenas o número de referência de mensagem e a hora que Nelas [Nelas, a estação...] estaria a referir por seu lado como se fosse o pedido de avanço para o comboio 315 aquilo que Alcafache teria referido, como se fosse o pedido de avanço para o comboio 1324.”
É incrível como se pode falar de clareza desta forma abstrusa, é uma das nossas estranhas qualidades, um dia saberemos, ou não saberemos, como é que a ligação de segurança de um cabo no elevador da Glória não é vistoriada como parte do cabo, e como é que um senhor Moedas que exigia clareza e responsabilidade política aos outros, foge depois de um acidente horrível gritando que não foge.
A empresa comboios de Portugal, em 1985, responsabilizou e puniu com baixa de categoria ou despedimento quatro dos responsáveis ferroviários. O tribunal de Mangualde, no entanto, viria a absolvê-los, parece que o erro humano seria inevitável no fraco sistema de controlo telefónico que existia, e depois o processo desapareceu do tribunal, o que ainda deu mais jeito.
Já agora, a memória traz-me outra coisa pessoal. Dias depois de Alcafache, viemos a saber que um dos meus colegas e amigos de turma teria morrido no desastre. Seria um dos desaparecidos e a minha tristeza foi ainda maior. Durante anos, pensei nele sempre que entrava no comboio. Até que um dia o vi, em directo, num programa dominical de Júlio Isidro, a cair, levantar-se, rodopiar no chão, era concorrente num concurso de break dance e, fora prova em contrário, continuava vivo neste mundo belo e feroz.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
