Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Quando nos morre alguém, na aceleração do Tempo e do Universo que se dá quando chega a altura dos nossos mortos, às vezes inesperadamente, outras esperadamente, há logísticas que nem sempre se explicam com clareza em Portugal. Por exemplo, as pessoas dizem os meus sentimentos pela tua perda, condolências a toda a família, mas é melhor ires já ao banco, se tens acesso vai hoje mesmo levantar tudo, e lá vão os frescos enlutados a correr ao banco fazer de conta com a conta do falecido e o banco dessa conta também a fazer de conta que não se passou nada, pois se toda a gente cumprir a lei, o dinheiro de quem — como dizem as pessoas — “já não está entre nós” fica para ali congelado, inútil, tristonho, à espera da garra d’aço das Finanças. Terminada a pequena farsa da transferência, do levantamento, ao luto pode juntar-se a sensação de ridículo clandestino.
Mas ouçam este homem que ouvi há tempos no tribunal, magro, de meia idade, na cadeira das testemunhas quando o advogado lhe perguntou:
— Qual foi a sensação dos herdeiros quando foram ao banco?
— Esta subtracção de valores, para nós, foi uma surpresa total. Não imaginámos que houvesse alguém que fosse proceder a um... um quase saque de todo o dinheiro que o meu pai tinha. Foi uma surpresa.
— Ficaram indignados?
— Não vou dizer indignado... Mas só quando há injustiças é que fico um bocado virado, disse o homem.
O julgamento rolava suavemente, ao ponto de dar sono... A certa altura, comecei a escrever as frases sem chama nem glória que ouvia na sala e que agora reencontro no bloco-notas:
— Era por serem despesas relacionadas com o seu pai.
— Não, não, não é isso que está em causa. Aliás, foram apresentados comprovativos de pagamento, isso eu não coloco em causa...
Mas o seu advogado pediu, àquele que seria o futuro réu, que devolvesse a totalidade do dinheiro.
— O arguido devolveu uma parte do valor que tinha retirado, e que dizia respeito ao levantado em ATM e ao grosso que levantou na altura do falecimento, e alegou que não devolvia tudo, apresentando provas desses pagamentos, como o funeral.
Foram devolvidos 240 mil euros à família, mas, pelos vistos, para a acusação ficaram por devolver oito mil euros, queriam agora que aquele homem no banco dos réus, de caracóis prateados, lhes passasse esse dinheiro, e por isso o tinham acusado de apropriação do dinheiro da herança. Mas quem era o arguido? Seria “um primo afastado do falecido” de quem os herdeiros nunca tinham ouvido falar e que tinha tido acesso aos códigos bancários. Mas a coisa complicou-se, no tribunal, no momento em que a advogada do acusado disse:
— O senhor começou por dizer que não tinha nenhum relacionamento familiar com este senhor Ernesto. Mas o senhor não sabe se é primo deste senhor Ernesto que está ali atrás...
— Vamos ser honestos e objectivos: quando estamos a falar em aldeias, há primos de terceiro, quarto e quinto grau, mas que, na prática, perderam qualquer laço. Se fosse primo direito, eu conhecia as pessoas.
Só que o filho não trocava uma palavra com o pai desde os anos 80, estavam zangados, e tinha sido o senhor Ernesto, acusado em tribunal, quem tinha tomado conta do homem na sua velhice, pagando enfermeiras, funeral, etc., anos e anos e anos. Qual era então a grande surpresa dos herdeiros? Como disse a advogada de defesa:
— Se diz que não falava com o pai desde os anos 80, e quem nem o conhecia, ao Ernesto, por que carga de água é que acha que o senhor Ernesto devia ter o seu contacto?
Em memória de quem já cá não está, espero que tenha havido acordo.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
