Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Agora que recomeçam os ódios, e nem sei se os ódios futebolísticos tiraram sequer um dia de férias, recordo o Pedro que perdeu o baço no futebol, durante uma insignificante partida de juvenis, rebentado a pontapé pelo treinador da equipa adversária.
Cem pessoas saltaram das bancadas para racharem a cabeça umas às outras e a zaragata começou, como quase sempre, com o árbitro, porque se ouviu o seu apito ou porque não se ouviu. Mas este árbitro conseguiu a proeza de, após marcar a falta, ter ficado a salvo enquanto um tufão arrasava o gimnodesportivo. Fugiu a tempo.
A testemunha Mafalda declarou à polícia ter visto uma estalada saltar entre dois jogadores, como uma faísca, antes da confusão. Guilherme foi mais longe e viu que, “a dado momento, o senhor árbitro da partida apitou uma falta, tendo os ânimos entre os jogadores de ambas as equipas se exaltado e, sem que ninguém o previsse, o Mário R. entrou no recinto e agrediu o Pedro A. com dois pontapés na zona do abdómen”.
Pedro ficou com uma cicatriz de 17 cm no lado esquerdo da barriga, foi por ali que os médicos lhe tiraram o baço após um jogo de futebol de cinco. Um jogo modesto entre duas equipazecas de bairro de Lisboa, mas “um jogo bastante viril” como se diz e ninguém duvida.
Pedro contou como começou a violência. Tinha 17 anos na altura. Lembro-me que a cara do Pedro, à luz fraca do tribunal, era cor de cinza. Pode-se viver sem baço, mas não é a mesma coisa.
Ele era guarda-redes suplente e quando viu que um jogador dava uma estalada no seu colega, e o seu colega já estava a responder, entrou para os separar. O árbitro tê-lo-á mandado sair, e viu então que Mário, o treinador da equipa adversária, se dirigia para ele, de punho fechado, para lhe desferir um murro, mas ele desviou-se e caiu sobre os que já estavam no chão. Pedro não viu quem lhe deu os pontapés, mas recorda uma dor lancinante, uma dor que o enviava para os subterrâneos do mundo, passado inteiro por um funil, furado do umbigo à alma. E quando olhou a primeira coisa que viu foi a cara do treinador, mais uma vez, e tem a certeza de que foi ele. O treinador era redondo de cara, cabelo rapado, largo como uma arca no peito. Ainda não tinha vinte anos e pesava 127 quilos naquele triste dia. Agora, no tribunal, já ex-treinador, negava toda a parte dos pontapés. Respondia de maneira insolente à juíza e à advogada. Dizia “evidentemente”, e “com certeza…”, e “claro, como eu já lhe tinha dito”, mas no tom de quem faz um favor a ignorantes. Tinha uma claque atrás dele que se riu quando Pedro contou como perdera um órgão à biqueirada.
A juíza disse ao arguido que, ou mudava de modos, ou faria o julgamento com ele expulso da sala, e ele mudou. Mário contou que havia uma grande confusão e que um seu colega o empurrara para fora do campo. Outro terá pontapeado a barriga de Pedro: os espectadores tinham invadido tudo e ninguém se entendia. E contou também, para provar o mau carácter do queixoso, que mais de vinte amigos de Pedro tinham aparecido noutra noite para espancar a sua equipa com correntes e barras de ferro galvanizado. Só a intervenção da polícia evitara a barbaridade.
Mas uma frase tinha ficado pendurada, incriminando, tal como as testemunhas oculares, o treinador. Pedro ia no túnel dos balneários, doente da barriga, sem saber ainda a gravidade do seu caso, quando Mário se aproximou:
— Pois é, primo, umas vezes dá-se, outras leva-se.
— Mas ele é seu primo?, perguntou a juíza.
— Não, mas foi o que ele disse, respondeu Pedro.
O futebol português sempre foi uma grande família, amadores, profissionais, opinadores, demagogos, subornadores, subornados. Os mais novos percebem cedo que o que interessa é o desporto, não é? Mas ainda não recomeçou a época e já cheira como quando acabou, o odor da violência.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.
