Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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O homem de cabelo branco parecia pronto a fazer não só o balanço do ano 2024, como as contas da sua vida inteira. Ao levantar-se, a pedido da juíza, no banco dos réus, cruzou os braços abaixo da cintura e humildemente curvou a cabeça, como alguém que reza na igreja ou aceita a derrota do seu clube, no estádio. O homem de cabelo branco explicava porque tinha faltado ao seu próprio julgamento, um mês antes e agora estava ali para falar.
— Peço desculpa ao tribunal. Eu tive um cancro no intestino há dois anos mas agora voltaram os sintomas e fiquei baralhado.
— Mas tratou-se, na altura?, perguntou a juíza.
— Tratei-me, mas os sintomas voltaram há um mês e fechei-me em casa e... Eu gostava de ter estado cá para me explicar.
— Agora como é que está?
— À espera de novas análises, disse o homem de cabelo branco.
Divorciado, vive sozinho. É encarregado geral de construção civil e o acto que praticou vem de um diferendo profissional que se transformou em crime: apropriação indevida de máquinas.
— Eu fui contratado por uma empresa para fazer uma obra. Mas, de repente, não havia dinheiro nem para a obra, nem para pagar a mim e aos homens que eu próprio contratara.
Então, começou a receber ameaças.
— As pessoas pensaram que era eu o dono da obra e decidi sair dali. Como não recebi, fiquei com as máquinas até me pagarem.
O homem do cabelo branco esteve três meses a trabalhar para nada, ficaram-lhe a dever, só a ele, 2500 euros e então encerrou tudo nas traseiras de casa.
— Porque é que não entregou as máquinas?, perguntava a juíza.
— Pode não ter sido a melhor decisão da minha vida, suspirou o homem, a cabeça branca abanando.
— E como é que está a obra?
— Está abandonada, está como eu a deixei. Passei lá ontem..
— Não lhe ocorreu que estava a criar um problema para si?
— Às vezes há dias em que não nos devemos levantar, continuou o homem.
Ele ia telefonando, sempre na esperança de receber. Segundo a acusação, as máquinas têm um valor muito superior ao que lhe deviam, eram máquinas para quase dez mil euros. Esteve com elas mais de um ano.
— Nunca as usou?
— Não. E quando a polícia me disse que eu as tinha, eu entreguei logo.
A juíza queria uma resposta com nexo. Porquê um acto com tão poucas hipóteses de êxito? É que o homem do cabelo branco nunca tentara receber o dinheiro via Tribunal do Trabalho, não tinha energia para processos judiciais. E agora ali estava ele com um.
— Foi daqueles dias em que eu devia ter escorregado numa casca de banana e batido com a cabeça.
— Isso também não!, exclamou a juíza.
— Foi um daqueles dias em que eu devia ter parado...
— Para pensar um bocadinho, disseram a juíza e o homem do cabelo branco ao mesmo tempo.
Depois a juíza ouviu a procuradora, que pediu a condenação, mas admitindo que a explicação tardia do homem tinha qualquer coisa de explicável, dava-lhe “mais credibilidade”, e a advogada defendeu mesmo que não havia apropriação de máquinas coisíssima nenhuma, o que aconteceu “vamos chamar-lhe direito de retenção”, disse a advogada. A juíza olhou o homem:
— Sobre a sua saúde, além da questão psicológica, há mais alguma coisa?
— Há também os limites físicos. Dói um bocado. Há dois anos disseram-me que estava bem. Mas já voltou tudo outra vez.
Olhava as mãos com se as inspeccionasse no estaleiro das obras.
Bom 2025, boa sorte, homem do cabelo branco.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
