Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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É Julho, depois Agosto e como todos os anos, há pessoas cujas férias começam por abandonar o seu cão num bosque, numa estrada, num descampado qualquer, com o bichinho a tentar perceber o que vai ser da sua vida: morrer, fazer-se selvagem?, coisas dessas em que um cão nunca pensou. Agora lembrei-me de um caso há anos e de um cão, o Poli, em que se deu o caso contrário. A mulher do senhor António garantiu em tribunal que esteve dez dias a chorar, sem pausas, quando o Poli foi fazer chichi e desapareceu.
— Eu tenho-o desde os dois meses dele, disse ela. É um serra-da-estrela puro. Faz oito anos agora.
O senhor António tinha-o largado às dez da manhã e ficou à espera. À noite, o Poli não regressou e a vida deles transformou-se, por assim dizer, numa vida de cão.
— Fui a todo o lado, aos canis, à polícia, aos bombeiros. Nada… Dez dias!
Já pensava em desgraças quando uma vizinha disse que tinha visto um cão grande num quintal, a cerca de um quilómetro. Estava preso e era estranho porque no mesmo sítio havia mais cães, mas eram todos pequenos. O senhor António tinha palavras desagradáveis para esses cães.
— Muito feios, uns caniches, uns peluches, assim com uns bigodes, muito feios!
Ele foi lá e levou um rafeirito com bom faro e olho, porque é mesmo assim que estas coisas se fazem.
— Os dois conheceram-se imediatamente, quando se viram. Fiquei logo sem dúvidas de que tratava do meu cão.
A casa era de Maria da Luz e, na sua versão, ela tinha guardado o cão porque um vizinho o encontrara perdido e sem qualquer placa ou coleira. A seu favor, tinha mandado as filhas colarem uns avisos nos supermercados e paragens de autocarro da zona: “PROCURO OS MEUS DONOS. Ando perdido. Sou da raça serra da estrela. Tenho muitas saudades dos meus donos. Venham-me buscar, estou numa casa da Amadora. Urgente. Liguem para o número em baixo indicado.” Faltava a assinatura da pata do Poli, com as suas almofadas de carne, e o seu estilo sentimental, mas alguém tinha escrito o aviso por ele. Quando António chegou perto do Poli, alega a acusação, as primeiras palavras que dirigiu a Maria da Luz foram:
— Então foi você que roubou o meu cão?
Ofendida, ela exigiu que António provasse que o cão era dele e exigiu o pagamento da despesa de dez dias de alimentação.
— Aquilo é um cão muito grande. Come muito!, disse ela no tribunal.
— Minha senhora, por esse preço deve ter comido sempre marisco, respondeu o advogado do senhor António.
O problema esteve no que António fez ou não fez a seguir. Segundo Maria da Luz, ele terá dito:
— Eu não te pago, mas é nada, tu roubaste-me o cão e eu dou-te é um tiro. És uma peixeira!
Maria da Luz acusou-o de meter a mão no bolso como se fosse sacar de uma pistola, assustando-a. Maria da Luz pediu, no início do processo, 1500 euros de indemnização. Para retirar a queixa, agora, o mínimo a que descia eram os 250 euros. O senhor António só estava disposto a pagar 50 euros. Era ele quem, no tribunal, estava nesse momento ofendido com a história do tiro.
— Dar-lhe um tiro! Que disparate é esse?! Fui campeão nacional de judo vários anos, alguma vez andava de pistola!…
O senhor António é enorme, tem um bigode grande como uma escova de fatos, pode arrancar árvores com os braços. O acordo ficou nos 75 euros e num pedido de desculpas.
— Peço desculpa… mas não foi nada disso que se passou.
— Eu aceito as desculpas, disse ela, mas só é pena que o senhor Magalhães não tenha vindo para repetir o que o senhor me chamou!
Por causa do Poli, saíram os dois mais ou menos com as mãos, mais ou menos de cauda a abanar.
E se alguém aí desse lado, se me ouve, ou se me lê, abandonar o seu cão, desejo-lhe as piores férias de sempre.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
