Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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O jovem Lucílio trazia um trunfo para sua defesa que era também um exemplo da sua vida. Era uma rapariga bonita, de longos cabelos escuros na pele branca, tatuadíssima, as unhas como garras esmaltadas, o carnudo perfil kardashiano e uma certa leveza de ser. Era empregada de mesa, disse ela, que se identificou com nomes compridos de quatro sílabas, Gabriela, Adriana e outros. Conhecia Lucílio desde 2023.
— É pai do meu filho.
— Continua a manter relação com ele?, perguntou a procuradora do Ministério Público.
— Não!, disse a rapariga, como se a pergunta fosse um disparate.
— Mas mantêm uma relação de amizade?
— Sim.
— Ele é violento?
— Não, ele nem sequer me levantou alguma vez a voz! E estivemos juntos um ano. O meu filho vai fazer 3 anos.
— Mas chegaram a viver os dois juntos?
— Não!, disse a rapariga, como se naquele tribunal só se fizessem perguntas descabidas.
Atrás dela estava Lucílio no banco dos réus, um jovem negro musculado, de calças apertadas propositadamente envelhecidas, esfarrapadas em máquinas da moda que lavam com pedras até fazer buracos, e que são mais caras assim. Depois percebeu-se: Lucílio, o belo, saltita à noite de discoteca em discoteca e de mulher em mulher, e tem escrita na pedra uma regra de liberdade e diz esta regra que os relacionamentos amorosos são abertos, hoje nesta cama, amanhã naquela, mas, estranhamente, é uma lei só para ele, elas já não o podem fazer.
É aqui que entra a ausente Maria, terceiro elemento do caso, que acusou Lucílio de várias agressões continuadas, e por isso mesmo Lucílio aguardava uma sentença por violência doméstica. Durante seis anos foi coleccionando episódios, lembrados pela procuradora nas alegações.
Não era levantar a voz, era bem pior.
Uma vez uma cabeçada na discoteca Cristal, outra vez apertar-lhe o pescoço, bofetadas, discussões, puxões, agressões, insultos, esperas nos locais de trabalho. Em Março de 2022, na zona vip da discoteca onde Maria trabalhava, Lucílio colocou-lhe o braço à volta do pescoço e fê-la desmaiar.
A coisa complica-se. Mesmo depois de acabarem o relacionamento, os dois continuaram — palavras do tribunal — o “relacionamento íntimo”, o que fora confirmado por Maria em declarações para memória futura. Uma vez estava ela com outro namorado no carro, apareceu o Lucílio e foi a maior confusão. Maria contara também que ele uma vez tentara ter acesso ao telemóvel dela, levado por ciúmes, e dera-lhe muitas bofetadas das quais pouco se apercebera porque estava muito embriagada.
O senhor Lucílio, detalhou a procuradora, tinha outros relacionamentos (e até um filho, como dissemos no início), mas por sentimento de posse não admitia que Maria também tivesse. A situação era, de certo modo, cristalina, pois foi o actual namorado de Maria que veio confirmar que ela na altura tinha mais do que um namorado.
E aqui entramos num dos abismos comuns da humanidade: Lucílio não aguentou as suas próprias regras amorosas.
A advogada de Lucílio trazia bons argumentos: ele não fora a tribunal “contar histórias”, admitia várias agressões, o Lucílio “nunca se retirou da importância do que aconteceu.” Desde que tinha sido intimado a não se aproximar de Maria, tinha cumprido a ordem judicial. E será mesmo violência doméstica o crime?
— Não tivemos aqui um relação de dois namorados... eles não tinham uma relação exclusiva. Podiam encontrar-se de mês a mês. Por diversas vezes ela teve a iniciativa de retomar a relação, mesmo depois dos episódios de violência. Não é violência doméstica, mas ofensa à integridade física.
Coisas bem modernas que acabam à antiga.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.
